A outorga conjugal na separação convencional de bens – realidade e operabilidade – Por: Vitor Frederico Kumpel

* Vitor Frederico Kümpel

O objetivo da coluna de hoje é discutir a aplicabilidade da Outorga Uxória no regime de separação convencional de bens, passando pelo direito intertemporal, em vista dos casamentos celebrados na vigência da codificação de 1916, chegando, por fim, à operabilidade e à funcionalidade do instituto na atualidade. O Código de 2002 introduziu a prescindibilidade da vênia conjugal no regime de separação convencional de bens. Agora, resta saber se a regra é aplicável aos casamentos celebrados na vigência da codificação anterior. Embora a discussão seja antiga, pautando-se desde os idos de 2003, mais precisamente 11 de janeiro, questiona-se além de tudo o limite interpretativo do tabelião de notas e do registrador imobiliário no exercício de suas atribuições, além de se propor um novo olhar à realidade em benefício da concatenação normativa e da adequação à complexificação social do ordenamento.

É bom lembrar que a outorga ou vênia conjugal é a autorização que um cônjuge concede ao outro para alienação ou oneração de bens imóveis com a finalidade de controle, a fim de evitar prejuízo econômico para o cônjuge não titular do referido bem, lembrando ainda que nos regimes de comunhão os frutos, por exemplo, se comunicam, ainda que os bens sejam de titularidade exclusiva de apenas um dos consortes.

Apesar de a dispensa da autorização conjugal, em regime de separação total convencional de bens, para alienação ou constituição de ônus reais sobre imóvel ser uma das grandes inovações da codificação de 2002, (art. 1.647, inciso I), na medida em que o Código anterior não dispensava vênia conjugal em nenhuma hipótese, a novidade gerou inúmeras discussões com diversos detalhes problemáticos, principalmente no que toca à atuação do notário no momento da instrumentalização da vontade jurídica de seus usuários e do registrador no momento do assentamento do título no fólio registral. O Código atual gerou uma diferenciação nos regimes de separação total convencional e obrigatória na medida em que a comunidade jurídica continuou a entender vigente a súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que determina vênia no regime de separação total obrigatória, questão que refoge à discussão deste artigo. Quando, de fato, caberia ao notário o controle da outorga conjugal? Em regime de separação total legal cabe o controle? Em casamentos celebrados sob o regime da separação convencional total antes da vigência do Código cabe o controle? Os casamentos realizados anteriormente a 2003 foram ou não abrangidos pelo novo dispositivo? O fato de o Código anterior tratar a matéria vênia conjugal como nulidade absoluta e o atual como anulabilidade gera alguma diferenciação no controle? As dúvidas são múltiplas e as tentativas de soluções ainda mais variáveis. Na prática, o que tem ocorrido é que, por prudência, o tabelião de notas e o registrador imobiliário acabam não dispensando o controle da outorga na separação total obrigatória. Já na separação total convencional, os notários e registradores dispensam a vênia independentemente da época do casamento, adotando, portanto, posição monolítica para ambas as hipóteses. Contudo, quais seriam os benefícios deste instituto na sociedade atual? Ele ainda é operável no que toca à proteção familiar? A reflexão é essencial em vista da complexidade social: graças à família mosaico, à isonomia social e jurídica entre o homem e a mulher, bem como consequência das concepções culturais cambiantes que tornam muitos institutos anacrônicos, principalmente os inseridos no direito de família, sujeitos a ebulições.

No diploma de 1916, o artigo 235 previa a anuência recíproca entre os cônjuges como requisito de validade para a alienação ou oneração de bens imóveis, qualquer que fosse o regime conjugal. Anuência esta que se traduz em um consentimento, na verdade uma autorização, que de modo algum se confunde com a representação ou com a assistência. Na representação temos a prática de um ato por um terceiro em nome do representado, na assistência o ato é praticado em conjunto por assistido e assistente, prevalecendo a carga volitiva do assistido. Já na autorização, o sujeito pratica o ato por si só, sendo avalizado por terceiro expressamente imputado por lei. A carga volitiva compete exclusivamente ao praticante, e o outorgante apenas autoriza sua prática. Tanto que a representação e a assistência são hipóteses de validação em matéria de consentimento genérico negocial, enquanto a vênia é matéria de validação no que toca à capacidade específica ou legitimação negocial. São certamente institutos com naturezas jurídicas diversas.

A outorga ou vênia é um ato pessoal manifestado, como já dito, por pessoa expressamente prevista em lei, com objetivo de controle dos atos de disposição imobiliária. Os atos de autorização são exigidos pelo artigo 1.647 do Código Civil de 2002 quando da venda, da doação, da troca, da alienação em geral, da cessão de direitos, da renúncia ou de qualquer oneração ou gravame imobiliário, como usufruto, servidão, superfície, hipoteca ou alienação fiduciária, em vista da importância que o sistema confere ao bem de raiz e à sua proteção. Entretanto, qual o motivo da imprescindibilidade da autorização conjugal, evidentemente quando tratamos de um bem particular de um único cônjuge não sujeito à meação?

A existência legal da outorga conjugal encontra razão nos regimes de comunhão, também chamado de condomínio germânico, onde não há cota ou fração sobre a coisa na vigência da sociedade conjugal, muito embora os bens, ora em discussão, não estejam sujeitos à referida comunhão. São bens particulares e assim conservam essa qualidade. Porém, os efeitos reflexos é que implicam no referido controle. Como já mencionado, entram na comunhão as benfeitorias em bens particulares (art. 1.660, inc. IV) e os frutos dos bens particulares (art. 1.660, inc. V), logo, uma edícula construída por um cônjuge no imóvel do outro gera comunhão na referida edícula. Por isso todo ato que tenda a onerar ou desfalcar o patrimônio, reduzindo a sua capacidade de utilização, carece do assentimento do cônjuge1 não titular, no caso de bens imóveis ou de direitos a eles relativos.

A outorga que se diz uxória, adjetivo correspondente a uxoria, feminino de uxorius, do latim uxor, uxoris, ou seja, referente à mulher casada1, espelha, na verdade, a realidade da primeira metade do século XIX, em que a mulher não estava inserida no mercado de trabalho de forma plena e era financeiramente dependente do marido para sobrevivência. Por isso, o instituto sempre foi utilizado como forma de evitar a dilapidação patrimonial do casal pelo marido, ou seja, a ideia da proteção à mulher casada. Nesse sentido temos o artigo 235 do Código Civil de 1916 (o marido nunca prescindia da outorga uxória em qualquer que fosse o regime de bens estabelecido), bem como o art. 259, que dispunha sobre a comunicação dos aquestos mesmo na ausência da comunhão de bens.

Existia tanto a outorga uxória quando a marital. Ao marido conferia-se a condição de chefe da sociedade conjugal, com a colaboração da mulher no interesse da família (Art. 233 do Código Civil de 1916). Assim, ele era responsável pela representação legal da família, com a administração tanto de bens comuns, quanto particulares da mulher, além do provimento da família e da manutenção do domicílio (Incisos I a V do diploma de 1916 mencionado). A justificativa para tanto era que o homem, por possuir maiores atividades profissionais, sociais e econômicas fora do lar, adquiria maior experiência de vida, por conseguinte, maiores condições para solucionar problemas e conduzir a família1.

A abordagem que distinguia a outorga marital da uxória terminou com a implantação da moldura isonômica de direitos entre as figuras masculina e feminina pela Constituição Federal de 1988 (Art. 226, parágrafo 5º). Por isso diz-se que a expressão verdadeiramente técnica, a ser usada hoje, seria Outorga Conjugal, válida tanto para o homem quanto para a mulher. Atualmente a outorga é necessária aos atos elencados nos regimes da comunhão parcial de bens, da comunhão universal, bem como no regime de participação final nos aquestos, com exceção do previsto pelo art. 1.656 do CC, que faculta a livre disposição dos imóveis neste último regime, desde que expressamente previsto no pacto antenupcial.

É sabido – e já foi reiterado aqui – que o Código Civil de 2002 dispensou a outorga conjugal no regime da separação total convencional, chamada de separação absoluta. No entanto, a dúvida começa pela própria nomenclatura adotada. Na codificação de Beviláqua, a separação podia ser tanto legal quanto convencional, no caso da separação convencional a dispensa da outorga é clara no artigo 1.687 Código de 2002, que dispõe sobre a livre alienação ou gravação dos bens incomunicáveis. A dúvidaocorre na separação obrigatória, se há a incidência ou não da antiga súmula 377 do STF, que determina a comunicação dos bens adquiridos durante o casamento pelo esforço comum (aquestos) no regime da separação convencional. Singular é a súmula ser complementação do artigo 259 do Código de 1916 e que hoje está expressamente revogado. Porém, para não causar mais polêmica ainda, aliamo-nos à jurisprudência que dita a permanência da súmula2, muito embora a mesma esteja com seus dias contados.

A segunda dúvida nos remete ao direito intertemporal. A dispensa da outorga é aplicável apenas aos casamentos celebrados após 2003 ou também aos anteriores à vigência da codificação mais recente? A sociedade mudou e o Código atual diz exatamente o contrário do anterior na separação convencional. Agora se prescinde da vênia em regime de separação convencional. O problema, contudo, ocorreu com a uniformização das decisões administrativas, que desqualificaram a outorga para os casamentos sob a égide do regime de separação absoluta, na codificação de Beviláqua3. Observe:

CSMSP- Apelação Cível 356-6/0 da Comarca de São José do Rio Preto. Ementa: REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura pública de venda e compra – Recusa com base no art. 235, I, do Código Civil de 1916, combinado com o art. 2.039 do Código Civil de 2002 – Ausência de outorga uxória – Dúvida improcedente – Formalidade legal não inerente o regime de bens adotado – Incidência do art. 1.647, I, do diploma atual, que não afeta ou modifica tal regime – Registro cabível – Recurso não provido.”Entendeu-se pela dispensa da outorga em regime de separação na vigência do Código de 2002, qualquer que fosse o tempo da celebração do casamento. A outorga foi entendida como elemento de eficácia do negócio, interpretação, de modo geral, problemática, ignorando o direito adquirido, um ato jurídico perfeito, corroborando na contra mão do estabelecido pelo próprio Código de 2002 em seus artigos 2.039 e 2.035. Para deixar mais claro, foi entendido que a vênia incorporaria o negócio celebrado após a vigência do Código atual. Porém a outorga diz respeito à situação de casado e que segundo o art. 2.039 do CC, obviamente adota as regras do sistema anterior. Não bastasse isso, o art. 2.035 declara: tudo que diz respeito à validade dos negócios (nulidades e anulabilidades), constituídos antes da entrada em vigor do Código atual (casamento), obedece a legislação anterior, obviamente.

Tanto que repisando o art. 2.039 da lei Federal 10.406/2002, as regras dos regimes de bens estabelecidas no Código de 1916 devem ser aplicadas aos casamentos celebrados sob sua égide, mesmo na vigência do diploma atual, o que não poderia ser diferente em respeito à garantia fundamental do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Ademais, no art. 6º da LINDB , "a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada", sendo que o parágrafo primeiro caracteriza ainda o ato jurídico perfeito como o "o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou". Segundo Alexandre de Moraes, "ato jurídico perfeito é aquele que reuniu todos os seus elementos constitutivos exigidos pela leie o “princípio constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito aplica-se a todas as leis e atos normativos, inclusive às leis de ordem pública"4. O respeito ao ato jurídico perfeito é garantido pela própria Lei Fundamental, art. 5º, inciso XXXVI.

Por isso, a regra, de modo geral, é que os efeitos da nova lei apenas alcançam os fatos ocorridos posteriormente ao início da vigência da mesma, trocando em miúdos, trata-se do princípio da irretroatividade das leis. Assim, mesmo no caso da revogação de uma norma, ela não deixa de existir, apenas a sua validade e eficácia ficam prejudicadas, pois ainda permanecem em vigor no que toca ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, ou seja, em situações que se prolongam no tempo por ultratividade.

O direito adquirido se incorpora definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, com efeitos latentes, pois nem a lei, nem o fato posterior podem alterá-lo. Desse modo a outorga em casamentos anteriores a 2003 deveria permanecer até mesmo na vigência do novo ordenamento, mesmo por uma questão de segurança do sistema. Como afirma Maria Helena Diniz, "a segurança do ato jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido pela proteção que se concede ao seu elemento gerador, pois se a nova norma considerasse como inexistente, ou inadequado, ato já consumado sob o amparo da norma precedente, o direito adquirido dele decorrente desapareceria por falta de fundamento"5. Logo, se o casamento ocorreu em tempo hábil, na vigência da lei que contempla o direito, e obedeceu aos requisitos de validade do negócio, tais como agente capaz, objeto lícito e forma prevista ou não proibida em lei (art. 82, CC 1916 e art. 104 do atual), além dos requisitos próprios do casamento, gerou direito adquirido, que irradia efeitos.

A todo direito corresponde uma ação, de forma que não existe direito sem ação que o assegure ou o faça valer, tornando-o exigível. Direito sem ação não é direito. É bem possível, que os cônjuges, casados sob o regime da separação de bens pelo código anterior, já esperassem ser sua autorização indispensável à venda ou à oneração de imóveis por seu consorte, lembrando ainda que a vênia gerava nulidade absoluta e não a mera anulabilidade do Código atual. Por isso, se um consorte vende um imóvel do seu patrimônio particular sem a outorga ou o suprimento judicial do outro, nasce para o cônjuge ignorado o direito de invalidar a alienação, ou seja, um direito de ação consectário do direito subjetivo. Explicada a questão retomemos o artigo 2.039 CC/02. Para melhor compreender a questão, vale pequena incursão histórica. Conforme exposto nos comentários ao Novo Código Civil sob coordenação do relator Deputado Ricardo Fiuza, o texto original do projeto proposto na Câmaraestabelecia que "O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido, mas se rege pelas disposições do presente código" Após a passagem pelo Senado com a emenda do senador Josaphat Marinho, o dispositivo ganhou a redação atual, sob a seguinte justificativa: "houve necessidade de se promover a modificação porque se, como dito na parte inicial do dispositivo, 'o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por este estabelecido', não se regerá pelo novo"6 (grifos nossos). Ora, se o próprio legislador suprimiu a expressão “mas se rege pelas disposições do presente código” foi exatamente para fazer permanecer as disposições de 1916 para os casamentos anteriores a 2003. Trocando em miúdos, o notário ao lavrar qualquer escritura de situação ou de matrimônio anterior a 2003 deve aplicar os artigos do Código de 1916 e jamais os do atual.

Ainda no que diz respeito às disposições transitórias do Código de 2002, em uma interpretação sistemática, combinando o artigo 2.039 com o 2.035, que diz que a validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor do Código de 2002, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução, ambas as normas conjugadas trazem à baila a regra do código anterior para os casamentos realizados em sua vigência, vez que a outorga conjugal se trata essencialmente de um elemento de validade, como já dito, nulificava o negócio no Código anterior e o torna anulável no atual. Elemento de eficácia é, por exemplo, condição, termo ou encargo, mas jamais algo invalidante.

Anote-se ainda que pelo diploma anterior, a ausência da outorga era causa de nulidade absoluta do negócio (arts. 235, 242 e 252), conforme exaustivamente mencionado, portanto, as regras jurídicas concernentes à outorga marital do Código de 1916 são de ordem pública, não se subordinando às conveniências pessoais de um ou outro cônjuge, e não podendo ser dispensadas a qualquer pretexto1. A nulidade é o estado do negócio que ingressou no mundo jurídico descumprindo requisitos de validade considerados essenciais ao interesse social e à ordem pública. Por isso, em função de sua relevância e gravidade, em caso de infringência de nulidades, a ordem jurídica reage vigorosamente, imputando o grau máximo de invalidade ao negócio7.

Todavia, admite-se que o Código de 1916 não era nada didático, pois previa as nulidades em geral, o que acabava gerando confusões e discussões e, por si só, já denotava a imprecisão e agramaticalidade do mesmo. Não obstante, o que concluímos, por se tratar de uma nulidade, é que no diploma anterior, a ausência da outorga era verdadeira afronta à ordem social, vez que de ordempública. Por tal motivo é que jamais tabelião e registrador praticavam os atos em seu mister sem a vênia, porém autorizavam a alienação do pai para o filho sem anuência dos demais descendentes, pois a matéria sempre foi anulável, de ordem privada, portanto.

No Código atual, por sua vez, a outorga é elemento de anulabilidade, neste caso a afronta envolve primariamente o interesse do particular, com tratamento diverso dos casos de nulidade. Destarte, nos casamentos posteriores a 2003, o controle da outorga é de ordem privada, pois o negócio é anulável, já se o casamento se deu antes da codificação atual e, nos dias atuais, haja uma dispensa do controle, o negócio é nulo, incidindo questão de ordem pública. Em qualquer hipótese, abordamos atos de legitimação, ou seja, da capacidade especial exigida por lei, que implica em elementos de validade (art. 104, inciso I) do ato. E a atitude da jurisprudência tem sido contra legem, dispensando a outorga para casamentos, sob fundamentos os mais variados e inusitados.

E é aí que surge o nosso maior problema, pois embora pragmaticamente essa abordagem jurisprudencial realmente seja a opção mais simples, ela não é técnica, pois, como dito, tratamos de elemento de validade do negócio jurídico, não de eficácia como entendeu a jurisprudência mencionada.

Diante de toda essa complexidade normativa, como ficam os tabeliães e registradores? Como atos administrativos, os atos dos oficiais extrajudiciais adstringem-se às regras do ordenamento jurídico, devendo sempre pautar-se pelo princípio da legalidade. Seus atos não são dotados de discricionariedade (conveniência e oportunidade). Ademais, a inobservância das prescrições normativas pelo oficial é motivo de infração disciplinar, conforme art. 31, inciso I, da lei Federal 8.935/1994. É nesse sentido que os oficiais de modo geral acabam exigindo a outorga conjugal em qualquer hipótese para o ingresso do negócio no fólio real. Porém, na prática dispensam, na separação total convencional, a outorga conjugal, qualquer que seja o período do casamento e gerando, como consequência, uma série de negócios nulos.

Arrematando tudo o que foi dito, fica apenas a reflexão: O fenômeno jurídico é em sua essência multifacetado, e deve ser lido, entendido, examinado e interpretado apesar de sua complexidade. A sociedade atual tende a simplificar institutos como os ora analisados, apesar de sua alta complexidade. Como deve se pautar o notário e o registrador diante de situações como a ora analisada? Toda ação deve basear-se na análise e observação da jurisprudência e, então praticar o ato? Ou deve se pautar por um estudo e reflexão e negar a prática do ato, que em tese implica em nulidade absoluta, e, portanto vício insanável de ordem pública, e que na prática pode ocasionar sérios prejuízos ao cônjuge prejudicado. Fica a reflexão.

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1. Enciclopédia Saraiva do Direito. Coordenação Prof. R. Limongi França. São Paulo. Saraiva. 1977.

2. STJ – REsp 1.163.074-PB. DJ 04.02.2010

3. CSMSP – Apelação Cível 356-6/0.

4. MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada, Atlas, São Paulo, 2002, p. 299

5. DINIZ, Maria. Helena. Lei de Introdução do Código Civil Brasileiro Interpretado. Saraiva: São Paulo, 9ª edição, 2002, p. 185

6. Novo Código Civil Comentado. Coordenador: Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1858

7. VELOSO, Zeno. Invalidade do Negócio Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 35.

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

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STJ: É válida fiança prestada durante união estável sem anuência do companheiro

Não é nula a fiança prestada por fiador convivente em união estável sem a autorização do companheiro – a chamada outorga uxória, exigida no casamento. O entendimento é da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso interposto por uma empresa do Distrito Federal. 

“É por intermédio do ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança”, afirmou o relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão. 

Outorga uxória

A empresa ajuizou execução contra a fiadora devido ao inadimplemento das parcelas mensais, de dezembro de 2006 a novembro de 2007, relativas a aluguel de imóvel comercial. Com a execução, o imóvel residencial da fiadora foi penhorado como garantia do juízo. 

Inconformada, a fiadora opôs embargos do devedor contra a empresa, alegando nulidade da fiança em razão da falta de outorga uxória de seu companheiro, pois convivia em união estável desde 1975. O companheiro também entrou com embargos de terceiro. 

O juízo da 11ª Vara Cível da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília rejeitou os embargos da fiadora, mas o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) reformou a sentença. 

“Em que pese o Superior Tribunal de Justiça entender não ser cabível à fiadora alegar a nulidade da fiança a que deu causa, ao companheiro é admitida a oposição de embargos de terceiro quando não prestou outorga uxória na fiança prestada por seu par”, afirmou o TJDF. 

Como foram acolhidos os embargos do companheiro, para declarar nula a fiança prestada pela fiadora sem a outorga uxória, o TJDF entendeu que deveria julgar procedentes os embargos apresentados pela própria fiadora, a fim de excluí-la da execução.

Regime de bens

No STJ, a empresa sustentou a validade da fiança recebida sem a outorga uxória, uma vez que seria impossível ao credor saber que a fiadora vivia em união estável com o seu companheiro. 

O ministro Salomão, em seu voto, registrou que o STJ, ao editar e aplicar a Súmula 332 – a qual diz que a fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia –, sempre o fez no âmbito do casamento. 

Se alguém pretende negociar com pessoas casadas, é necessário que saiba o regime de bens e, eventualmente, a projeção da negociação no patrimônio do consorte. A outorga uxória para a prestação de fiança, por exemplo, é hipótese que demanda “absoluta certeza, por parte dos interessados, quanto à disciplina dos bens vigentes, segurança que só se obtém pelo ato solene do casamento”, segundo o relator. 

Diferença justificável

Ao analisar os institutos do casamento e da união estável à luz da jurisprudência, Salomão disse que não há superioridade familiar do primeiro em relação ao segundo, mas isso não significa que exista uma “completa a inexorável coincidência” entre eles. 

“Toda e qualquer diferença entre casamento e união estável deve ser analisada a partir da dupla concepção do que seja casamento – por um lado, ato jurídico solene do qual decorre uma relação jurídica com efeitos tipificados pelo ordenamento jurídico, e, por outro lado, uma entidade familiar, das várias outras protegidas pela Constituição”, afirmou o ministro. 

“O casamento, tido por entidade familiar, não se difere em nenhum aspecto da união estável – também uma entidade familiar –, porquanto não há famílias timbradas como de segunda classe pela Constituição de 1988”, comentou. 

Salomão concluiu que só quando se analisa o casamento como ato jurídico formal e solene é que se tornam visíveis suas diferenças em relação à união estável, “e apenas em razão dessas diferenças que o tratamento legal ou jurisprudencial diferenciado se justifica”. 

Para o relator, a questão da anuência do cônjuge a determinados negócios jurídicos se situa exatamente neste campo em que se justifica o tratamento diferenciado entre casamento e união estável. 

Escritura pública 

Luis Felipe Salomão não considerou nula nem anulável a fiança prestada por fiador convivente em união estável, sem a outorga uxória, mesmo que tenha havido a celebração de escritura pública entre os consortes. 

Ele explicou que a escritura pública não é o ato constitutivo da união estável, “mas se presta apenas como prova relativa de uma união fática, que não se sabe ao certo quando começa nem quando termina”. 

Como a escritura da união estável não altera o estado civil dos conviventes, acrescentou Salomão, para tomar conhecimento dela o contratante teria de percorrer todos os cartórios de notas do Brasil, “o que se mostra inviável e inexigível”.

A notícia refere-se ao seguinte processo: REsp 1299894.

Fonte: STJ | 28/02/2014.

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1ª VRP|SP: Dúvida – Instrumento particular de compromisso de venda e compra eivado de irregularidades – Pluralidade de promitentes vendedores – Necessidade de outorga uxória, muito embora parte ideal do imóvel seja de propriedade exclusiva de um dos promitentes vendedores, casado sob regime da comunhão parcial de bens (inteligência dos arts. 1.642,II; 1.647 e 1.668, I, CC/2002) – Necessidade de alvará judicial que autorize o espólio a prometer sua fração ideal à venda – CND do INSS da promitente compradora: reconhecida sua inexigibilidade pelo registrador – Necessidade de procuração com poderes específicos aos promitentes vendedores que assinaram em nome de outros promitentes vendedores – Dúvida procedente.

Processo 0066698-28.2013.8.26.0100
CP 363
Dúvida – Registro de Imóveis
Primax Empreendimentos Imobiliários Ltda
Dúvida – instrumento particular de compromisso de venda e compra eivado de irregularidades – pluralidade de promitentes vendedores – necessidade de outorga uxória, muito embora parte ideal do imóvel seja de propriedade exclusiva de um dos promitentes vendedores, casado sob regime da comunhão parcial de bens (inteligência dos arts. 1.642,II; 1.647 e 1.668, I, CC/2002) – necessidade de alvará judicial que autorize o espólio a prometer sua fração ideal à venda – CND do INSS da promitente compradora: reconhecida sua inexigibilidade pelo registrador – necessidade de procuração com poderes específicos aos promitentes vendedores que assinaram em nome de outros promitentes vendedores – dúvida procedente.
Vistos etc.
1. O 13º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo (RI) suscitou dúvida a requerimento de PRIMAX EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA. (PRIMAX).
1.1. Segundo o termo de dúvida (fls. 02-04), em 12 de junho de 2013 fez-se prenotar, sob o número 277.875, no 13º RI, instrumento particular de promessa de venda e compra, datado de 14 de maio de 2013 (fls. 12-18). O objeto do título é o imóvel de matrícula 27.974 daquela serventia. No referido instrumento a suscitada figura como promitente compradora e, na qualidade de promitentes vendedores, comparecem Ivo Rosset (casado sob o regime da separação obrigatória de bens – v. fls. 18), Isaac Mauro Rosset e sua esposa Silvia Rosset (casados sob o regime da comunhão universal de bens – v. fls. 29), Aron Rosset (casado sob o regime da separação total de bens – v. fls. 32), Carlos Maurício Rosset (casado sob o regime da comunhão parcial de bens v. fls. 30) e Espólio de Henrique Rosset (falecido em 05/12/2012 – v. fls. 31), representado pelos promitentes vendedores já citados.
1.2. Apresentado o título ao 13º RI, houve qualificação negativa (fls. 26) pelos seguintes motivos: (a) o registrador entendeu ser necessária a outorga uxória da esposa de Carlos, por força do artigo 1.647, I, do Código Civil – CC/2002; (b) indispensável se faz a apresentação de alvará judicial que autorize o Espólio de Henrique Rosset a alienar a sua parte ideal no imóvel; (c) deve-se apresentar Certidão Negativa de Débitos (CND) do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ou declaração de não vinculação da PRIMAX como empregadora; e (d) deve ser apresentada procuração com poderes específicos outorgados para Aron e Isaac, vez que ambos assinaram o título em nome de Ivo e Silvia.
1.3. Pela leitura dos autos (em especial fls. 25 verso), parece que o título já fora apresentado ao 13º RI em mais de uma ocasião. Inconformada com as exigências, a suscitada requereu procedimento de dúvida (fls. 09). A prenotação vigente tem o número 280.757 (v. fls. 05 e 06).
1.4. O termo de dúvida veio instruído com documentos essenciais e outros de interesse para a causa (fls. 05-46). 1.5. PRIMAX está representada ad judicia (fls. 10-11).
2. A suscitada apresentou impugnação (fls. 48-54), rechaçando, uma a uma, as exigências do registrador.
3. O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida (fls. 60-62).
4. É o relatório. Passo a fundamentar e decidir.
5. PRIMAX pretende o registro de instrumento particular de promessa de venda e compra em desconformidade com a legislação registrária e civil.
6. Primeiramente, discorro sobre a exigência de outorga uxória para aperfeiçoar o negócio do promitente vendedor Carlos. A suscitada tenta afastar a exigência com o argumento de que a parte ideal que pertence a Carlos está gravada pela cláusula de incomunicabilidade (v. fls. 50 e AV.05/27.974 – fls. 23-24).
6.1. Como bem foi exposto pelo Ministério Público (fls. 61), é verdade que os bens gravados com cláusula de incomunicabilidade estão excluídos da comunhão entre os cônjuges, tudo nos termos do artigo 1.668, I, do Código Civil. Portanto, tem-se que a parte ideal do imóvel de matrícula 27.974, do 13º RI, pertencente exclusivamente a Carlos (casado sob o regime da comunhão parcial de bens), configurando seu patrimônio próprio.
6.2. O artigo 1.642 do Código Civil assim dispõe: “Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livremente: […] II – administrar os bens próprios” (g. n.)
6.3. Porém, na lição de Silvio Rodrigues, a leitura deste dispositivo deve ser integrada com as restrições do artigo 1.647 do mesmo diploma legal: “Assim, na administração, mesmo de patrimônio próprio, conforme o regime de bens, haverá vedação à venda ou oneração sem autorização do Cônjuge”(Direito Civil: Direito de Família: Vol. 6 – 28 ed. rev. E atual por Francisco José Cahali; de acordo com o novo Código Civil (Lei. n. 10.406, de 10.01.2002), – São Paulo: Saraiva, 2004, p. 161 – g. n.) “Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis” (g. n.)
6.4. Portanto, mesmo que a parte ideal de Carlos lhe pertença com exclusividade, a sua alienação não escapa à necessidade de outorga uxória. Situação diferente haveria se Carlos fosse casado pelo regime da separação absoluta de bens.
7. Analisemos, agora, a exigência de alvará judicial que autorize o Espólio de Henrique Rosset a alienar sua parte ideal no imóvel.
7.1. Tal óbice tem fundamento no artigo 992, I, do Código de Processo Civil, e sua inobservância acarreta a nulidade do ato: “Art. 992. Incumbe ainda ao inventariante, ouvidos os interessados e com autorização do juiz: I – alienar bens de qualquer espécie;” (g. n.)
7.2. Pela leitura dos elementos dos autos, infere-se que ainda não foi ultimada a partilha dos bens de Henrique Rosset, logo: “Falecendo o titular de domínio sem a ultimação da partilha em processo de inventário, durante o interregno a alienação de bens pelo inventariante só pode ocorrer mediante prévia autorização judicial, nos termos do art. 992, I, do Código de Processo Civil. É necessária a comprovação da representação legal das partes, quando não comparecem para a lavratura do ato.” (Proc. 100.10.001900-4 – 1VRP – São Paulo – j.24.03.2010 – rel. Gustavo Henrique Bretas Marzagão – g. n.)
8. No que tange à exigência de CND do INSS, assim como foi reconhecido pelo registrador (fls. 03), esta se encontra superada em face de atual entendimento jurisprudencial do E. Conselho Superior da Magistratura, que a entende como sendo sanção indireta (v. Apel. Cív. 9000003-22.2009.8.26.0441 – TJSP e Proc. 0035785-63.2013.8.26.0100 – 1VRP – SP).
9. Por fim, A necessidade de procuração, com poderes específicos outorgados a Aron e Isaac, encontra guarida no artigo 661, § 1º, do Código Civil. O documento apresentado a fls. 27 é uma certidão de procuração outorgada pela suscitada aos seus representantes legais e em nada serve aos promitentes vendedores.
10. Por tudo, há de se reconhecer a razão do registrador em obstar o ingresso do título em fólio real.
11. Do exposto, julgo procedente a dúvida suscitada pelo 13º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo, a pedido de PRIMAX EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA, para que se mantenha o impedimento de registro do título (prenotação nº 280.757). Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Desta sentença cabe apelação, com efeito suspensivo, para o E. Conselho Superior da Magistratura, no prazo de quinze dias. Uma vez preclusa esta sentença, cumpra-se a LRP/1973, art. 203, I, e arquivem-se os autos se não for requerido mais nada.
P. R. I. C.
São Paulo, . Josué Modesto Passos JUIZ DE DIREITO
(D.J.E. de 08.01.2014 – SP)

Fonte: D.J.E. | 08/01/14

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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