Reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva pode ser realizado em cartório em São Paulo

Decisão da Corregedoria de Justiça permitiu a criança ter o nome das duas mães no registro de nascimento sem que o casal tivesse que recorrer à Justiça

O reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva pode ser realizado em cartório sem a necessidade de apresentação de provas de filiação. Com este entendimento, a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo (CGJ-SP) autorizou a inclusão do nome de mãe socioafetiva na qualidade de mãe e os nomes dos pais dela como avós no registro de nascimento da criança, em um caso envolvendo um casal de mulheres.

O casal de mulheres, que vive em união estável desde 2006, se submeteu à inseminação heteróloga – quando o esperma é doado por terceira pessoa -para conceber seu filho. A criança, atualmente com um ano de idade, tinha apenas o nome da mãe biológica no registro de nascimento, motivo pelo qual o casal formulou requerimento ao oficial de registro civil pedindo a inclusão do nome da mãe socioafetiva também na qualidade de mãe, e dos pais dela como avós.

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) interpôs recurso contra decisão da CGJ-SP alegando que a competência para tal decisão cabe à Vara de Família, em razão da ausência de determinação de vínculo biológico entre a criança e mãe socioafetiva, e que a decisão não interpretou corretamente o artigo 1.597, do Código Civil. O MP alegou, ainda, que o princípio constitucional da isonomia foi violado.  A CGJ-SP opinou pelo não provimento do recurso ministerial e manteve a decisão recorrida.

Presunção de paternidade -Segundo o artigo 1.597 do Código Civil, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

De acordo com o parecer do juiz assessor da Corregedoria, Gustavo Henrique Bretas Marzagão, após o julgamento da ADI-4277 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, todos os dispositivos legais que, de alguma forma, permitam ou induzam tratamento diverso entre os casamentos e uniões estáveis heterossexuais e homoafetivos, devem passar por uma releitura para atender às suas novas finalidades.

Assim, se a presunção da paternidade contida no artigo 1.597 do Código Civil vale para companheiros que vivem em união estável e se, aos casamentos e uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo são garantidos os mesmos direitos, não se pode recusar à mãe socioafetiva o direito de reconhecer como seu o filho havido nestas circunstâncias, “do contrário, criar-se-ia a seguinte situação injustificada de desigualdade: os cônjuges ou companheiros de sexos diferentes (relacionamento heterossexual) teriam acesso à via mais rápida do reconhecimento direto perante o registrador, ao passo que os companheiros ou cônjuges de mesmo sexo (relacionamento homoafetivo) teriam de trilhar a morosa e dispendiosa via judicial”.

Discriminação – Gustavo Marzagão aponta que, em relação aos filhos biológicos havidos durante a constância do casamento, a lei presume a filiação; quanto aos filhos concebidos fora do casamento, basta a declaração do pai perante o registrador para que a paternidade seja averbada no registro de nascimento, ou seja, a lei não exige qualquer prova específica daquele que se apresenta como pai para registrar uma criança, sendo suficiente a afirmação desta qualidade perante o registrador ou juiz.

Nesse sentido, quanto à filiação por socioafetividade, a via judicial também é dispensável,pois a Lei nº 8.560/92 cuida do reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, sem discriminar o tipo de filiação, seja biológica ou socioafetiva. Assim, impedir o reconhecimento da filiação socioafetiva na via administrativa implicaria discriminação da filiação, o que é vedado pela lei. “Deste modo, se o filho biológico pode ser reconhecido voluntariamente pelo pai mediante simples declaração – desacompanhada de qualquer prova – feita perante o oficial de registro civil, o mesmo direito, nas mesmas condições, deve ser concedido ao filho socioafetivo”, ressaltou.

Desjudicialização – O juiz destaca que a utilização da via administrativa representa, ainda, medida de desjudicialização, porque transfere a órgão não jurisdicional questão que dispensa manifestação do Estado-Juiz. Além disso, o reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva em cartório já é realidade em diversos Estados como Pernambuco, Maranhão e Ceará, onde as respectivas Corregedorias Gerais de Justiça editaram Provimentos regulamentando a matéria. A decisão é do dia 22 de outubro último.

Fonte: IBDFAM | 19/11/2014.

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CGJ/SP: É possível o reconhecimento da filiação socioafetiva perante o RCPN.

DICOGE 5.1

PROCESSO Nº 2014/88189 – SÃO PAULO – MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Parte: A. B. e OUTROS – Advogados: MAURÍCIO TRALDI, OAB/SP 147555 e PATRÍCIA SAGGIORO LEAL, OAB/SP 288.042. Parecer (321/2014-E)

Registro Civil das Pessoas Naturais – Reconhecimento da filiação socioafetiva perante o Registro Civil das Pessoas Naturais – Possibilidade – Recurso não provido

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a r. decisão do MM. Juízo Corregedor Permanente (fls. 55/58 e 71/72) que autorizou a inclusão do nome de A. B. como genitora socioafetiva de R. P. e os nomes dos pais dela como avós.

Alega, em síntese, que a competência para o reconhecimento é da Vara de Família em razão da ausência de determinação de vínculo biológico entre a criança e A., e que a decisão não interpretou corretamente o art. 1597, do Código Civil. Ainda, que o princípio constitucional da isonomia foi violado. Afirma, também, inexistir erro de registro. Aduz que a decisão administrativa não faz coisa julgada e que não garante segurança jurídica à criança em virtude de eventual questionamento futuro. Contrarrazões às fls. 75/90.

A D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso Ministerial (fls. 96/99), mantendo-se a r. decisão recorrida.

É o relatório.

Opino.

M. C. P. S. e A. B. formularam requerimento ao Oficial de Registro Civil do 24º Subdistrito da Capital objetivando a inclusão, no assento de R. P., do nome de A. B., como mãe de R., e dos pais dela, como avós. Solicitaram, ainda, que o nome do R. passasse a constar R. P. B.

Consta do requerimento de M. C. P. S. e A. B. que vivem em união estável desde 2006 e se submeteram conjuntamente à fertilização in vitro com doador anônimo em 2013. Houve estimulação dos ovários, colheita e fertilização dos óvulos de ambas com sêmem de doador anônimo e, por fim, seleção e transferência dos melhores embriões para o útero de M. C., que foi a escolhida para ser a gestante. O nascimento de R. ocorreu em 08.11.13 e, em seu assento de nascimento, constou apenas o nome de sua mãe biológica M. C., motivo pelo qual buscam a inclusão, na qualidade também de mãe, de A. B., dos pais dela como avós, e a alteração do nome de R., acrescendo-lhe o sobrenome B.

O requerimento foi instruído com:

a) declaração de nascido vivo que atesta que R. P., filho de M. C. P. S., nasceu no dia 08.11.2013, no Hospital Israelita Albert Einstein (fl. 08);

b) certidão de nascimento de R. P., com número de matrícula 115030 01 55 2013 1 00302 230 0027865 92, em que consta o nome de M. C. P. S. como genitora (fl. 09);

c) escritura pública de união estável lavrada em 04.04.2012, nas notas do 29º Tabelionato da Capital, por meio da qual declaram viver em união estável, como companheiras, desde 15.05.2006, estabelecem a comunicabilidade de todos os bens adquiridos onerosamente após a constituição da entidade familiar, e que, em caso de enfermidade, a companheira sã pode deliberar, prioritariamente aos demais familiares, sobre as providências médico-hospitalares oportunas, fixam-se como beneficiárias para fins previdenciários (fls. 10/12);

d) Relatório final de tratamento por FIV, subscrito por médico que declara que A. e M. C., em regime de união estável, foram por ele submetidas a tratamento de fertilização in vitro com sêmen de doador e transferência de embriões no dia 03.03.2013 no Projeto Alfa-Aliança de Laboratórios de Fertilização Assistida, e que referido tratamento ensejou a gestação única de M. C. da qual resultou o nascimento de RN vivo, masculino (fl. 13);

e) fotos do nascimento no hospital e do chá de bebê (fls. 14/17);

f) Relatório médico complementar ratificando que houve fertilização in vitro dos oócitos de A. e M. C. e transferência de embriões ao útero desta última independentemente da origem dos oócitos, tudo com autorização de A. (fls. 42/43);

g) Relatório médico atestando que A. esteve presente em todas as consultas acompanhando M. C., participando ativamente tanto no período de fertilização quanto de todo o período pré-natal. Informa, ainda, que A. recebeu medicações para produzir leite materno e, desta forma, foi capaz de amamentar o recém-nascido desde os primeiros dias (fl. 44);

h) Declaração da médica responsável pela puericultura dando conta de que R. sempre está acompanhado das mães A. e M. C., as quais participam ativamente do desenvolvimento do menor, que vem evoluindo de forma bastante saudável, com desenvolvimento adequado sendo nítido que reconhece igualmente a voz e os chamados das duas mães quando interagem com ele, reagindo com atenção, fixação do olhar e sorriso social desde 1 mês e meio, reações comuns apenas na relação muito próxima com o familiar, demonstrando convívio diário (fl. 45).

É incontroverso nos autos que a inclusão do nome de A. B., como genitora, e dos pais dela, como avós, no assento de nascimento de R. P., é medida justa e necessária.

O que se discute é se o reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva pode ser realizado perante os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais ou se necessita de ação judicial.

A D. Procuradoria Geral da Justiça, forte nos fundamentos da r. decisão recorrida, é favorável ao reconhecimento nesta via administrativa.

A r. decisão recorrida, por seu turno, traz os seguintes argumentos: a) demonstração da relação familiar; b) presunção de paternidade no caso de inseminação artificial heteróloga precedida de autorização do marido (CC 1.597, V); c) a expressão “marido”, contida no art. 1.597, V, do Código Civil, não deve servir de óbice ao reconhecimento socioafetivo porque a união estável é reconhecida pela Constituição Federal como entidade familiar e a ADI nº 4277 reconheceu a união estável homoafetiva nos mesmos moldes da heterossexual.

De fato, após o julgamento da ADI 4277-DF pelo E. Supremo Tribunal Federal, todos os dispositivos legais, notadamente os do Código Civil, que, de alguma forma, permitam ou induzam tratamento diverso entre os casamentos e uniões estáveis heterossexuais e homoafetivos devem passar por uma releitura para atender às suas novas finalidades.

Assim, de acordo com a lógica construída na r. decisão e acatada pelo D. Procuradoria Geral de Justiça, se a presunção da paternidade contida no art. 1.597, V, do Código Civil, vale também entre companheiros, e se aos casamentos e uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo são garantidos os mesmos direitos, não se pode recusar à mãe socioafetiva o direito de reconhecer como seu o filho havido nestas circunstâncias.

Do contrário, criar-se-ia a seguinte situação injustificada de desigualdade: os cônjuges ou companheiros de sexos diferentes (relacionamento heterossexual) teriam acesso à via mais rápida do reconhecimento direto perante o registrador, ao passo que os companheiros ou cônjuges de mesmo sexo (relacionamento homoafetivo) teriam de trilhar a morosa e dispendiosa via judicial.

Mas não é só.

Milton Paulo de Carvalho¹ lembra que a opção do legislador pela filiação socioafetiva se manifesta nos arts. 1.593, 1.596, 1.597, V, 1.605 e 1.614, todos do Código Civil:

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito:

I – quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente;

II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.

E, ao comentar o art. 1.596, explica que a legislação estabelece quatro tipos de estado de filiação: por consanguinidade, por adoção, por inseminação artificial e em em virtude de posse de estado de filiação.

Na jurisprudência, é tranquilo o reconhecimento da socioafetividade como um dos modos de filiação.

Nos autos do Recurso Especial nº 1000356/SP, a Ministra Nancy Andrighi destacou que a filiação socioafetiva tem alicerce no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, e envolve não apenas a adoção, como também parentescos de outra origem, conforme introduzido pelo art. 1.593, do Código Civil, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural.

A jurisprudência deste E. Tribunal de Justiça caminha no mesmo sentido, podendo-se citar, por exemplo, trecho do voto proferido nos autos da apelação nº 01637-05.2010.8.26.0510, relatada pelo Desembargador Francisco Eduardo Loureiro:

O artigo 1.593 do novo Código Civil, afinado com o espírito da Constituição Federal, dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem” (grifo noso). O termo outra origem, usado pelo legislador, admite como fontes do parentesco os casos de reprodução artificial e as relações socioafetivas, sem vínculo biológico ou de adoção.

Na lição de Edson Luiz Fachin, a verdadeira filiação só pode vingar no terreno da afetividade, da intensidade das relações que unem pais e filhos, independente da origem biológico-genética (Comentários ao Novo Código Civil, Forense, V. XVI, p. 25; ver, também, Eduardo Oliveira Leite, Temas de Direito de Família, RT, 1.94, p. 121, entre outros).

Como se vê, o Código Civil prevê diversas causas de parentesco: civil, consanguíneo e com “outras origens”, aí incluídas a socioafetiva e a procriação por reprodução artificial.

O parentesco civil se constitui por meio de adoção e, para esta hipótese de filiação, a via judicial é indispensável, nos termos exigidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Diversas, porém, são as hipóteses de reconhecimento de filho biológico e por socioafetividade.

Em relação aos filhos biológicos, para os havidos durante a constância do casamento, a lei presume a filiação (CC 1.597); quanto aos concebidos fora dele, basta a declaração do pai perante o registrador para que seja averbada a paternidade no assento de nascimento (art. 1º, I, da Lei nº 8.560/92).

No caso do filho havido fora do casamento, é importante destacar que não se exige qualquer prova específica daquele que se apresenta como pai, sendo suficiente a afirmação desta qualidade perante o registrador – ou mesmo perante o juiz (o art. 2º, § 3º, da Lei nº 8.560/92).

Quanto à filiação por socioafetividade que, repita-se, não se confunde com a adoção, a via judicial também é prescindível porque a Lei nº 8.560/92 cuida do reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, sem discriminar o tipo de filiação: biológica ou socioafetiva.

Assim, impedir o reconhecimento da filiação socioafetiva na via administrativa implicaria inegável afronta à vedação da discriminação da filiação em virtude da natureza prevista no § 6º, do art. 227, segundo o qual:

Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação

Deste modo, se o filho biológico pode ser reconhecido voluntariamente pelo pai mediante simples declaração – desacompanhada de qualquer prova – feita perante o oficial de registro civil, o mesmo direito, nas mesmas condições, deve ser concedido ao filho socioafetivo.

A desnecessidade da via judicial se evidencia ainda mais no caso em exame porque o filho permanecerá na família de origem e apenas terá o nome de sua mãe socioafetiva, que assim se declarou voluntaria e espontaneamente, inserido em seu registro.

A utilização da via administrativa representa, ainda, medida de desjudicialização, porque transfere a órgão não jurisdicional questão que prescinde da manifestação do Estado-Juiz.

O reconhecimento da filiação socioafetiva é modalidade de parentesco ainda precoce em nosso ordenamento jurídico e em nossa jurisprudência pátria, de modo que precisa ser interpretado à luz dos novos princípios informadores do direito de família, abandonando-se conceitos antigos arraigados em nossa cultura já incompatíveis com a realidade.

Não por outra razão, o Ministro Eduardo Ribeiro já observou, com total razão, que as normas jurídicas hão de ser entendidas tendo em vista o contexto legal em que inseridas e considerando os valores tidos como válidos em determinado momento histórico. Não há como interpretar-se uma disposição, ignorando as profundas modificações por que passou a sociedade, desprezando os avanços da ciência e deixando de terem conta as alterações de outras normas, pertinentes aos mesmos institutos jurídicos (STJ, Resp 194866).

E é dentro deste novo contexto do direito de família que o reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva deve ser analisado.

Nos Estados do Pernambuco, Maranhão e Ceará, as respectivas Corregedorias Gerais de Justiça editaram Provimentos autorizando o reconhecimento voluntário por socioafetividade perante o registro civil de pessoas naturais (Provimentos nºs 09/2013, 21/2013 e 15/2013).

Referidos provimentos tomaram por base as seguintes premissas: igualdade de filiação; inexistência de hierarquia da filiação biológica sobre a civil; o art. 226, da Lei Maior, segundo o qual a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; a inserção de novos valores; os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana; que o instituto da paternidade socioafetiva tem a sua existência ou coexistência reconhecidas no âmbito da realidade familiar; a possibilidade do reconhecimento voluntário de paternidade perante o Oficial de Registro Civil, devendo tal possibilidade ser estendida às hipóteses de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, já que ambos estabelecem relação de filiação, cujas espécies devem ser tratadas com igualdade jurídica; que as normas consubstanciadas nos Provimentos nº 12, 16, e 26 do Conselho Nacional de Justiça, as quais visam a facilitar o reconhecimento voluntário de paternidade biológica devem ser aplicáveis, no que forem compatíveis, ao reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva, tendo em vista a igualdade jurídica entre as espécies de filiação; o Enunciado Programático nº 06/2013, do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, segundo o qual “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental; o art. 10, II, do Código Civil, segundo o qual “os atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação devem ser averbados em registro público”; a existência de um grande número de crianças e adultos sem paternidade registral estabelecida, embora tenham relação de paternidade socioafetiva já consolidada.

No Estado de São Paulo, como não há provimento regulamentando a matéria, é preciso examinar o caso concreto.

Pois bem. Os documentos acostados aos autos demonstram, de forma mais do que suficiente e, sobretudo, objetiva, a existência do convívio familiar, desde 2006, por meio da constituição de união estável registrada por escritura pública.

Os atestados médicos apresentados e até mesmo as fotos demonstram, por sua vez, que, juntas, as recorrentes se submeteram conjuntamente à fertilização in vitro com doador anônimo em 2013. Assim, houve estimulação dos ovários, colheita e fertilização dos óvulos de ambas com sêmem de doador anônimo e, por fim, seleção e transferência dos melhores embriões para o útero de M. C., que foi a escolhida para ser a gestante e que deu à luz a R. ocorreu em 08.11.13.

O cenário fático encontra-se objetivamente demonstrado, carecendo de qualquer outra prova.

No que diz respeito à atribuição do registrador civil de pessoas naturais para aferir o vínculo socioafetivo, anoto que, se para o reconhecimento do filho biológico não se exige qualquer comprovação, o mesmo tratamento deve ser dispensado ao reconhecimento da filiação por socioafetividade.

Mas, ainda que assim não fosse, a análise documental em questão é meramente objetiva, extrínseca, portanto a pleno alcance do registrador, desde que exercida, como sempre, mediante prudente critério.

A propósito do exame notarial e registral, sublinho que as últimas modificações feitas por V. Exa. nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça têm prestigiado – em razão da eficiência, da boa prestação de serviços, da meta de desjudicialização e da inexistência de impedimento legal – o desenvolvimento e o estímulo da qualificação registral que, se de um lado, transferem mais confiança e atribuições aos notários e registradores, de outro, trazem maior responsabilidade.

Apenas para exemplificar o incremento da atividade qualificatória notarial e registral, cito alguns casos: a possibilidade de o tabelião de protestos recusar o protesto dos chamados “cheques podres” (item 34, do Capítulo XV); permissão para o registrador de imóveis rejeitar as impugnações infundadas nas retificações registro (item 138.19, I, do Capítulo XX); autorização para registrador de imóveis, seguindo o critério da prudência e à vista dos demais documentos e circunstâncias de cada caso, verificar se os documentos apresentados pelos interessados na regularização fundiária podem embasar o registro da propriedade (item 291, Capítulo XX); autorização para os notários e registradores realizarem conciliação e mediação nas Serventias Extrajudiciais (Provimento CG nº 17/2013).

Todos os fatos acima indicados demonstram que inexistem motivos jurídicos ou razoáveis a impor às recorrentes o moroso e dispendioso caminho da via judicial.

Quanto ao risco de fraude, destaco que, para os casos como o presente, nenhuma segurança a mais se conseguiria com a remessa das recorrentes à via judicial haja vista que, nela, seriam os mesmos documentos ora apresentados e examinados que serviriam de alicerce para a inevitável sentença de procedência de eventual ação de investigação de paternidade socioafetiva.

De mais a mais, nenhum sistema é imune a fraudes e a prova disso são as inúmeras adoções à brasileira que, infelizmente, ainda ocorrem e, posteriormente, vêm a ser chanceladas pelo Judiciário com base justamente na socioafetividade e, ainda, no princípio do melhor interesse da criança.

A sistemática do reconhecimento administrativo estabelecido pela Lei nº 8.560/92, da mesma forma, também é suscetível a burlas, na medida em que não exige mais do que a simples declaração voluntária do pai em relação ao filho a ser reconhecido.

Por fim, também a via judicial pode ser usada para chancelar situação de filiação socioafetiva inexistente, bastando que os fraudadores se casem ou constituam união estável por escritura pública para dar aparência de convivência familiar e, com isso, alcançar o espúrio objetivo.

Assim, também sob o prisma da segurança, não se pode obstar o reconhecimento da filiação socioafetiva na via administrativa.

Em contrapartida, deve-se sempre lembrar que a boa-fé é sempre presumida, de modo que não se pode impedir o benefício para muitos em virtude do eventual desvio de conduta de alguns.

E que, em caso de suspeita de fraude, o registrador sempre poderá recorrer ao juiz corregedor permanente.

Por último, quanto à alegada insegurança jurídica decorrente da inexistência de trânsito em julgado material das decisões administrativas, destaco que o art. 1.604, do Código Civil, dispõe que ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

Assim, somente por meio de decisão judicial o estado de filiação poderá ser alterado – apenas nos casos de erro ou falsidade -, de onde se conclui que a segurança ora requerida é, em verdade, a mesma já existente que protege o reconhecimento da filiação biológica.

Em suma: seja pelo suporte legal e jurisprudencial indicado na r. decisão recorrida, seja pelos argumentos ora apontados, o recurso do Ministério Público não comporta provimento.

Diante do exposto, o parecer que respeitosamente submeto à elevada consideração de Vossa Excelência é no sentido de que seja negado provimento ao recurso.

Em caso de aprovação, sugiro publicação, por três dias alternados no DJE, para conhecimento geral.

Sub censura.

São Paulo, 22 de outubro de 2014.

(a) Gustavo Henrique Bretas Marzagão

Juiz Assessor da Corregedoria

_________________________

1. Código Civil Comentado, Manole, 6ª Ed., p. 1767

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso. Para conhecimento geral, determino a publicação na íntegra do parecer por três dias alternados no DJE. São Paulo, 23 de outubro de 2014. (a) HAMILTON ELLIOT AKEL, Corregedor Geral da Justiça.

Fonte: DJE/SP | 07/11/2014.

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STJ reconhece filiação socioafetiva e mantém adoção de neto por avós

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão que permitiu a adoção de neto por seus avós, reconhecendo a filiação socioafetiva entre ele e o casal. O colegiado concluiu que os avós sempre exerceram e ainda exercem a função de pais do menor, concebido por uma mãe de oito anos de idade que também foi adotada pelo casal.

“A adoção foi deferida com base na relação de filiação socioafetiva existente”, afirmou o relator do recurso, ministro Moura Ribeiro, para quem não se trata de um caso de simples adoção de descendente por ascendentes – o que é proibido pela Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA).

“O constrangimento a que o menor é submetido a cada situação em que precisa apresentar seus documentos é altíssimo, sobretudo se se levar em conta que tal realidade não reflete a vivenciada no dia a dia por ele, filho que é de seus avós”, acrescentou o relator.

O casal adotou a mãe do menino quando ela tinha apenas oito anos e estava grávida, vítima de abuso sexual. Tanto a menina quanto seu bebê passaram a ser cuidados como filhos pelo casal, que mais tarde pediu a adoção formal também do menino.

Ordem familiar

O menino – hoje um adolescente de 16 anos – foi registrado apenas no nome da mãe e com informações desatualizadas, pois após o registro a genitora teve o próprio nome alterado sem que houvesse a retificação no documento.

A sentença deferiu o pedido de adoção. O Ministério Público de Santa Catarina apelou, sustentando que o menor já residia com sua mãe biológica e com os avós adotivos, razão pela qual a situação fática não seria alterada pela adoção. Alegou também que a adoção iria contrariar a ordem familiar, porque o menino passaria a ser filho de seus avós, e não mais neto.

O Tribunal de Justiça, entretanto, manteve a sentença, levando em conta as peculiaridades do caso e o princípio constitucional da dignidade humana, com vistas à satisfação do melhor interesse do menor.

Segundo o tribunal, a mãe biológica concordou com a adoção no depoimento prestado em juízo. Além disso, o estudo social foi favorável à adoção ao reconhecer a existência de relação parental afetiva entre as partes.

Como irmãos

No STJ, o Ministério Público afirmou que a adoção somente pode ser deferida quando a criança ou o adolescente não mais tem condições de ser mantido na família natural (formada por pais e seus descendentes) ou na família extensa (que inclui parentes próximos). Sustentou ainda a impossibilidade jurídica da adoção pelos avós do filho da filha adotiva e defendeu a extinção do processo sem resolução de mérito.

De acordo com o MP, a adoção de pessoas com vínculo de ascendência e descendência geraria confusão patrimonial e emocional, em prejuízo do menor.

Em seu voto, o ministro Moura Ribeiro concluiu que a decisão do tribunal estadual deve ser mantida. Segundo ele, não é o caso de simplesmente aplicar o artigo 42 do ECA, que proíbe a adoção por ascendentes, uma vez que esse dispositivo se destina a situações diferentes daquela vivenciada pela família.

“Ainda que se fale em ascendentes e descendente, a realidade trazida é outra. Não foi o adotando tratado pelos requerentes como neto e, por isso mesmo, eles buscam a sua adoção, até porque não houve um dia sequer de relação filial entre a mãe biológica e o menor, que sempre se trataram como irmãos”, afirmou o relator.

Interesse do menor

Ao fazer uma retrospectiva sobre a história legal da adoção no Brasil, Moura Ribeiro disse que no Código Civil de 1916 a principal característica era a preocupação com os anseios dos adotantes, que, na maioria das vezes, queriam assegurar a continuidade de suas famílias quando não pudessem ter prole natural.

Seguiram-se três leis sobre o tema (3.133/574.655/65 e 6.697/79) antes da elaboração do ECA, que privilegia o interesse do menor.

Moura Ribeiro afirmou que é inadmissível que a autoridade judiciária se limite a invocar o princípio do superior interesse da criança para depois aplicar medida que não observe sua dignidade.

“Frise-se mais uma vez: o caso é de filiação socioafetiva. Em verdade, em momento algum pôde essa mãe criança criar laços afetivos maternais com seu filho, porquanto nem sequer deixou de ser criança à época do parto. A proclamada confusão genealógica gritada pelo MP aqui não existe”, disse o ministro.

“Não se pode descuidar, no direito familiar, de que as estruturas familiares estão em mutação. E, para lidar com essas modificações, não bastam somente as leis. É necessário buscar subsídios em diversas áreas, levando-se em conta aspectos individuais de cada caso. É preciso ter em mente que o estado deverá cada vez mais estar atento à dignidade da pessoa humana”, concluiu.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ | 31/10/2014.

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