Direito constitucional e civil – Recurso Extraordinário – Repercussão geral – Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 878.694 MINAS GERAIS

RELATOR :MIN. ROBERTO BARROSO

RECTE.(S) :MARIA DE FATIMA VENTURA

ADV.(A/S) :MONIQUE DE LADEIRA E THOMAZINHO E OUTRO(A/S)

RECDO.(A/S) :RUBENS COIMBRA PEREIRA E OUTRO(A/S)

PROC.(A/S)(ES) :DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DO ESTADO DE MINAS GERAIS

AM. CURIAE. :ASSOCIAÇÃO DE DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES – ADFAS

ADV.(A/S) :IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

ADV.(A/S) :DANILO PORFÍRIO DE CASTRO VIEIRA E OUTRO(A/S)

AM. CURIAE. :INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMILIA – IBDFAM

ADV.(A/S) :RODRIGO DA CUNHA PEREIRA E OUTRO(A/S)

AM. CURIAE. :INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS

ADV.(A/S) :TECIO LINS E SILVA

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.

3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.

4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da do Supremo Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, na conformidade da ata de julgamento, sob a presidência da Ministra Cármen Lúcia, em, apreciando o Tema 809 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Ministro Relator, dar provimento ao recurso, para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 e declarar o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002, vencidos os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que votaram negando provimento ao recurso. Acordam, vencido o Ministro Marco Aurélio, em fixar tese nos seguintes termos: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”. Ausentes, justificadamente, os Ministros Dias Toffoli e Celso de Mello, que votaram em assentada anterior, e, neste julgamento, o Ministro Luiz Fux, que votou em assentada anterior, e o Ministro Gilmar Mendes. Não votou o Ministro Alexandre de Moraes, sucessor do Ministro Teori Zavascki, que votara em assentada anterior.

Brasília, 10 de maio de 2017.

MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – RELATOR

RELATÓRIO

1. Trata-se de recurso extraordinário, com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal, no qual se discute a constitucionalidade do regime sucessório das uniões estáveis, na forma estabelecida pelo art. 1.790 do Código Civil de 2002 (CC/2002). Foi reconhecida a repercussão geral da matéria (tema 809), nos seguintes termos: “Possui caráter constitucional a controvérsia acerca da validade do art. 1.790 do Código Civil, que prevê ao companheiro direitos sucessórios distintos daqueles outorgados ao cônjuge pelo art. 1.829 do mesmo Código”.

2. Em primeiro grau, os pedidos da companheira foram julgados parcialmente procedentes, para lhe atribuir a totalidade da herança deixada pelo companheiro falecido (excluindo-se da sucessão os irmãos do de cujus), e para lhe conceder direito real de habitação e indenização de seguro de vida. A sentença se baseou na ideia de que o Código Civil de 2002 configura um retrocesso ilegítimo ao tratamento sucessório dado ao companheiro, e sua aplicação violaria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, assim como do tratamento paritário das entidades familiares.

3. Um dos irmãos do falecido interpôs apelação, na qual a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu a existência de controvérsia constitucional sobre a matéria, de modo que, embora entendendo ilegítima a distinção estabelecida pelo art. 1790 do CC/2002, suscitou incidente de inconstitucionalidade, e remeteu os autos à Corte Superior daquele Tribunal, com base no art. 97 da CF/1988 e na Súmula Vinculante nº 10.

4. Antes de iniciar o julgamento desse incidente, foi constatada a preexistência de outro incidente de idêntico objeto (nº 1.0512.06.032213-2) no âmbito do TJ-MG, já julgado. Nele, o Ministério Público havia opinado pela procedência total do incidente de inconstitucionalidade, mas a Corte Superior do TJ-MG, por maioria, acabou julgando-o improcedente, por entender que “o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro pode não ter sido a melhor opção do legislador ordinário, mas encontra guarida na própria Constituição Federal”. Assim, considerando a existência desse precedente recente, a Corte Superior do TJ-MG não conheceu do incidente de inconstitucionalidade que se originou nos presentes autos.

5. Em seguida, os autos retornaram à 8ª Câmara Cível do TJ-MG para julgamento de mérito do recurso. Quanto ao aspecto fático, ficou consignado que a recorrente vivia em união estável, com regime de comunhão parcial de bens, até que seu companheiro veio a falecer, sem deixar testamento. O falecido possuía bens e não tinha descendentes nem ascendentes, tendo como parentes mais próximos três irmãos, os quais figuram no polo passivo deste recurso. Esses, portanto, são os fatos incontroversos.

6. Quanto aos aspectos jurídicos, a Câmara, partindo da premissa de constitucionalidade do art. 1790 do CC/2002 (en razão do que fora decidido pela Corte Superior do TJ-MG), deu provimento à apelação para, nos termos do inciso III do art. 1790, limitar o direito sucessório da companheira a um terço dos bens adquiridos onerosamente durante a existência da união estável, excluindo-se os bens particulares do companheiro. O acórdão foi assim ementado:

“APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA. DIREITOS SUCESSÓRIOS DA COMPANHEIRA. ARTIGO 1.790, III, DO CÓDIGO CIVIL. CONSTITUCIONALIDADE. RECONHECIMENTO PELO ÓRGÃO ESPECIAL DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DO DIREITO DE A COMPANHEIRA SOBREVIVENTE HERDAR TÃO SOMENTE OS BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL, EM CONCORRÊNCIA COM OS PARENTES COLATERAIS DE SEGUNDO GRAU, EXCLUÍDOS, PORTANTO, OS BENS PARTICULARES. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1) O Órgão Especial deste Tribunal reconheceu a constitucionalidade do art. 1.790, quando do julgamento do Incidente de nº 1.0512.06.0322313-2/002, por entender que o ordenamento jurídico constitucional não impede que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma diferenciada, visto que respectivas entidades familiares são institutos que contêm diferenciações.

2) A teor do inciso III do art. 1790 do Código Civil, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro faz jus tão somente a um terço dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável a título de herança, pois concorre com os colaterais até quarto grau, devendo ser excluídos sua participação como herdeiro dos bens particulares do de cujus.”

7. Contra essa decisão, a companheira interpôs recursos especial (REsp) e extraordinário (RE), os quais foram inadmitidos no TJ-MG. O REsp foi julgado intempestivo, e a decisão foi mantida no STJ mesmo após após a interposição de AREsp e recursos subsquentes. Já o RE foi inadmitido na origem sob o fundamento de que a controvérsia não possuía natureza constitucional. Essa decisão foi objeto de agravo, ao qual dei provimento, de modo a convertê-lo em recurso extraordinário.

8. Neste recurso, a companheira sustenta que o regime sucessório estabelecido no art. 1.790 do CC/2002 é incompatível com o dever estatal de proteção à família (art. 226, §3º, da CF/1988) e com o princípio da igualdade (art. 5º, CF/1988) entre as diferentes constituições familiares. Assim, entende que o regime sucessório a ser aplicado à união estável deve ser equivalente àquele previsto para o casamento. Por sua vez, um dos recorridos (os demais não apresentaram contrarrazões) defende a constitucionalidade do citado art. 1.790 do CC/2002, alegando que a CF/88 reconheceu a união estável como entidade familiar, mas não a equiparou ao instituto do casamento.

9. A Procuradoria-Geral da República emitiu parecer pelo não provimento do recurso. Além de corroborar os argumentos do recorrido, acrescentou que “tanto a união estável quanto o casamento constituem manifestação da autonomia privada dos contraentes, pois, se não há impedimento para o casamento e, mesmo assim, os conviventes optam pela união estável, é porque a entendem mais adequada às suas necessidades e anseios, ou, ainda, por preferirem ficar livres das regras rígidas impostas pelo casamento”.

10. Após, deferi os pedidos de ingresso no feito como amici curiae formulados pela Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS, pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, e pelo Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB.

11. É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (RELATOR):

INTRODUÇÃO

I. A HIPOTESE

1. O presente recurso extraordinario analisa a validade do artigo 1.790 do Codigo Civil de 2002 (CC/2002), que outorga ao companheiro direitos sucessorios distintos daqueles conferidos ao conjuge pelo artigo 1.829 do mesmo Codigo. A controvérsia constitucional em questao pode ser sintetizada na seguinte proposicao: é legítima a distinção, para fins sucessórios, entre a família proveniente do casamento e a proveniente de união estável?

2. No caso concreto, a recorrente vivia em uniao estavel, em regime de comunhao parcial de bens, ha cerca de 9 anos, ate que seu companheiro veio a falecer, sem deixar testamento. O falecido não possuia descendentes nem ascendentes, mas apenas tres irmaos. Diante desse contexto, o Tribunal de origem, com fundamento no art. 1.790, III, do CC/2002, limitou o direito sucessorio da recorrente a um terco dos bens adquiridos onerosamente durante a uniao estavel, excluindo-se os bens particulares do falecido, os quais seriam recebidos integralmente pelos irmaos. Porem, caso fosse casada com o falecido, a recorrente faria jus a totalidade da heranca.

3. O voto que se segue esta estruturado em tres partes. A Parte I cuida do delineamento da controversia. A Parte II e dedicada a apreciar a compatibilidade do dispositivo impugnado com a Constituicao de 1988. Por fim, a Parte III trata da resolucao do caso concreto submetido a apreciacao desta Corte neste recurso extraordinario.

Parte I

DELINEAMENTO DA CONTROVÉRSIA

II. A ATUALIDADE DA CONTROVERSIA CONSTITUCIONAL

4. O tema objeto deste recurso tem gerado significativa judicializacao, com frequentes decisoes em sentidos divergentes. A titulo ilustrativo, os Tribunais de Justica de Sao Paulo e do Rio de Janeiro chegaram a conclusoes opostas sobre a questao, ambos em sede de arguicao de inconstitucionalidade. O TJ-SP – a exemplo do TJ-MG – entendeu pela constitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 [1], enquanto o TJRJ manifestou-se pela sua inconstitucionalidade [2]. No Superior Tribunal de Justica, a controversia acerca da constitucionalidade do dispositivo do Codigo Civil chegou a ser afetada a Corte Especial [3]. No entanto, ainda nao houve decisao final de merito. Por fim, vale observar que o Supremo Tribunal Federal, no RE 646.721, reconheceu repercussao geral a outro recurso que trata da validade do art. 1.790 do Codigo Civil de 2002, mas que tem como foco sua aplicacao as unioes homoafetivas.

III. A CONTEXTUALIZACAO DA CONTROVERSIA CONSTITUCIONAL: A EVOLUCAO DO CONCEITO DE FAMILIA

III.1. Família e direito sucessório

5. O fundamento do Direito Sucessorio no Brasil e a nocao de continuidade patrimonial como fator de protecao, de coesao e de perpetuidade da família [4]. O regime sucessorio no pais envolve a ideia de protecao em dois graus de intensidade. O grau fraco aplica-se a parte disponivel da heranca, em relacao a qual o sucedido tem liberdade para dispor, desde que respeitados os requisitos legais para sua manifestação de vontade. Quanto a essa parte, a lei tem carater supletivo, conferindo direito de heranca aos herdeiros vocacionados somente no caso de inexistir testamento.

6. Ja o grau forte refere-se a parte indisponivel da heranca (a chamada legítima), que corresponde a metade dos bens da heranca que a lei impõe seja transferida a determinadas pessoas da familia (os herdeiros necessários), que so deixarao de recebe-la em casos excepcionais também previstos em lei. Sobre essa parcela, o sucedido nao tem liberdade de decisao, pois se trata de norma cogente. Apenas se nao houver herdeiros necessarios, nao havera legitima, e, portanto, o sucedido podera dispor integralmente de sua heranca. Esse regime impositivo justifica-se justamente pela necessidade de assegurar aos familiares mais próximos do sucedido um patamar de recursos que permita que preservem, na medida do possivel, o mesmo padrao existencial ate entao desfrutado.

III.2. Família e casamento

7. O regime sucessorio encontra-se, assim, vinculado ao conceito de familia. Na historia brasileira, em decorrencia da forte influencia religiosa, o conceito juridico de familia esteve fortemente associado ao casamento. Seu objetivo principal era a preservacao do patrimonio e da paz domestica, buscando-se evitar interferencias de agentes externos nas relacoes intramatrimoniais e nas relacoes entre pais e filhos. Nesse sentido, todas as Constituicoes anteriores a de 1988 que trataram expressamente do tema dispunham que a familia se constitui pelo casamento [5]. Em sentido similar, no plano infraconstitucional, o CC/1916 dispunha que a familia legitima era criada pelo casamento (art. 229).

8. Ate pouco tempo atras, o prestigio ao matrimonio tinha suporte em uma concepcao da familia como ente autônomo, e nao como um ambiente de desenvolvimento dos individuos. A familia era tutelada pelo Estado ainda que contra a vontade de seus integrantes, ou seja, independentemente dos custos individuais a serem suportados. Alguns exemplos ilustram bem essa concepcao. Na redacao original do CC/1916, a familia era chefiada pelo marido (poder marital – art. 233), de modo que a mulher, embora dotada de plena capacidade juridica enquanto solteira, tornava-se relativamente incapaz ao se casar (art. 6o, II, Parte Geral). A mulher passava entao a depender de autorizacao de seu marido para a pratica de diversos atos da vida civil, inclusive para trabalhar. Apenas com a edicao da Lei nº 4.121/1962, a mulher casada deixou de ser incluida, junto com prodigos e silvicolas, na relacao dos relativamente incapazes.

9. Alem disso, na redacao originaria do CC/1916, o casamento era indissolúvel, de modo que mesmo que os cônjuges vivessem em plena infelicidade conjugal deveriam permanecer casados, em prol de um suposto bem maior para a sociedade. Ressalvava-se apenas a possibilidade de desquite, que, porem, impedia novo matrimonio. Foi somente com o advento da EC nº 09/1977, objeto de calorosos debates, que se passou a admitir a possibilidade de separação judicial e de divorcio. Outra ideia existente nessa epoca era a de “debito conjugal”, segundo a qual a mulher deveria estar sexualmente disponível para o marido, ainda que contra sua vontade. Com fundamento no modelo de familia instituido pelo CC/1916, havia quem defendesse que a copula forcada pelo marido nao configurava crime de estupro por se tratar de exercicio regular de um direito.

III.3. Família e filiação

10. A mesma concepcao que orientava as relacoes entre conjuges aplicava-se as relacoes entre pais e filhos. O pai/marido, na condicao de chefe de familia, exercia o patrio poder (art. 380, CC/1916). Como lembra Gustavo Tepedino [6], ao pai eram conferidos poderes que permitiam, por exemplo, a imposicao de processo educacional extremamente autoritario, que se expressava, por vezes, em castigos corporais severos, contra os quais nao era possivel haver oposicao sem que se contestasse o patrio poder, e, de forma reflexa, a paz familiar. Apenas com o advento da CF/1988 e do Estatuto da Crianca e do Adolescente (ECA), os filhos deixaram a condicao de objetos para se tornarem sujeitos de seu processo educacional.

11. Era ainda pior a situacao de boa parte dos filhos havidos fora do casamento. A despeito do criterio biologico de paternidade, os filhos nascidos de relacoes adulterinas e incestuosas nao poderiam ser reconhecidos por expressa disposicao legal (art. 358, CC/1916). Desse modo, estavam condenados a viver sem registro civil que os identificasse de forma digna e condizente com a verdade dos fatos, assim como estavam impedidos de demonstrar parte essencial de sua individualidade – sua origem e historia familiar – como se integrassem uma classe inferior de individuos. Pagavam o preco de uma conta que nao era sua apenas para que o conceito rigido de familia entao vigente nao sofresse abalos.

12. Nao e preciso ir mais longe para se perceber que a tradicional concepcao juridica de familia, baseada no casamento, tratava a entidade familiar como um fim a ser protegido (ainda que a um custo muito alto), e nao como um meio para o desenvolvimento da personalidade e da dignidade de seus membros. Seus integrantes eram muitas vezes forcados a relegar projetos individuais de vida boa a um segundo plano, tudo em prol da manutencao de uma dada concepção sobre as relacoes familiares-matrimoniais e sobre o papel do Estado em sua protecao.

III.4. Os diferentes modelos de família

13. Durante a segunda metade do seculo XX, porem, operou-se uma lenta e gradual evolucao nesta concepcao na sociedade brasileira, com o reconhecimento de multiplos modelos de familia. Nesse periodo, parcela significativa da populacao ja integrava, de fato, nucleos familiares que, embora nao constituidos pelo casamento, eram caracterizados pelo vinculo afetivo e pelo projeto de vida em comum. Era o caso de uniões estáveis [7], de unioes homoafetivas, e tambem de familias monoparentais, pluriparentais ou anaparentais (sem pais, como a formada por irmaos ou primos). Na estrutura social, o pluralismo das relacoes familiares sobrepos-se a rigidez conceitual da familia matrimonial [8].

14. Contudo, muito embora tais entidades pudessem ser socialmente identificadas como nucleos familiares, elas nao recebiam reconhecimento juridico adequado [9]. Em alguns casos, a injustica era tamanha que a jurisprudencia comecou a buscar solucoes hermenêuticas para assegurar algum direito aos integrantes dessas unioes, especialmente as mulheres em uniao estavel. Com a boa intencao de não deixar desamparada a companheira, chegou-se a entender que ela teria direito a uma justa reparacao por servicos prestados durante a sociedade de fato constituida com seu companheiro [10]. Equiparava-se, assim, uma relacao de amor e uniao a uma relacao negocial, como a de uma barraca de verduras em uma feira.

15. Sensivel as mudancas dos tempos, a Constituicao de 1988 aproximou o conceito social de familia de seu conceito jurídico. Tres entidades familiares passaram a contar com expresso reconhecimento no texto constitucional: (i) a familia constituida pelo casamento (art. 226, § 1º); (ii) a uniao estavel entre o homem e a mulher (art. 226, § 3º); e (iii) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada familia monoparental (art. 226, § 4º). A Constituicao rompeu, assim, com o tratamento juridico tradicional da familia, que instituia o casamento como condicao para a formacao de uma familia “legitima”.

16. A consagracao da dignidade da pessoa humana como valor central do ordenamento juridico e como um dos fundamentos da Republica brasileira (art. 1o, III, CF/1988) foi o vetor e o ponto de virada para essa gradativa ressignificacao da familia. A Carta de 1988 inspirou a repersonalização do Direito Civil, fazendo com que as normas civilistas passassem a ser lidas a partir da premissa de que a pessoa humana e o centro das preocupacoes do Direito, que e dotada de dignidade e que constitui um fim em si próprio [11]. A familia passou, entao, a ser compreendida juridicamente de forma funcionalizada, ou seja, como um instrumento (provavelmente o principal) para o desenvolvimento dos individuos e para a realizacao de seus projetos existenciais. Nao e mais o individuo que deve servir a familia, mas a familia que deve servir ao individuo.

III.5. Família e papel do Estado

17. Paralelamente, modificou-se a compreensao a respeito do papel do Estado na protecao das relacoes familiares. Ao Estado importa garantir a possibilidade de autorrealizacao dos individuos, assegurando o ambiente e os meios propicios para que possam perseguir as suas proprias concepcoes de vida boa. Essa missão é a justificativa e também olimite do Estado para intervir nas relações familiares e na liberdade dos indivíduos. E, portanto, sua justa medida. Qualquer intervencao a mais ou a menos sera tida como ilegitima.

18. O reconhecimento do carater instrumental da familia para a promocao da dignidade dos individuos e deste novo papel do Estado na tutela das entidades familiares encontra amplo amparo no texto constitucional. Nesse sentido, o art. 226, caput, da CF/1988 dispoe que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Tambem o art. 226, §7o, da Carta de 1988 determina que o planejamento familiar “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável”, “é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito”. Na mesma linha, o art. 205, estabelece que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ja os arts. 227 e 230 impoem a familia, a sociedade e ao Estado os deveres de assegurar a crianca, ao adolescente e ao jovem sua dignidade e demais direitos fundamentais, e de amparar pessoas idosas, defendendo sua dignidade e bem-estar.

19. Logo, se o Estado tem como principal meta a promocao de uma vida digna a todos os individuos, e se, para isso, depende da participacao da familia na formacao de seus membros, e logico concluir que existe um dever estatal de proteger nao apenas as famílias constituidas pelo casamento, mas qualquer entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes, pelo amor, pelo afeto e pela vontade de viver junto. Nao por outro motivo, a Carta de 1988 expandiu a concepcao juridica de familia, reconhecendo expressamente a uniao estavel e a familia monoparental como entidades familiares que merecem igual protecao do Estado. Pelas mesmas razoes, esta Corte reconheceu que tal dever de protecao estende-se ainda as unioes homoafetivas, a despeito da omissao no texto constitucional [12]. Como assentou o Min. Marco Aurelio no julgamento da ADPF 132,

Revela-se, entao, a modificacao paradigmatica no direito de familia. Este passa a ser o direito ‘das familias’, isto e, das familias plurais, e nao somente da familia matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimonio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterizacao da entidade familiar. Alterou-se a visao tradicional sobre a familia, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum. Abandonou-se o conceito de familia enquanto ‘instituicao-fim em si mesmo’, para identificar nela a qualidade de instrumento a servico da dignidade de cada participe.

Parte II

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS

IV. EQUIPARACAO E DESEQUIPARACAO ENTRE CONJUGE E COMPANHEIRO EM MATERIA SUCESSORIA

IV.1. A progressiva equiparação legal entre cônjuge e companheiro

20. A Constituicao de 1988, como se viu, constitui o marco de uma importante mudanca de paradigma em relacao ao conceito – social e constitucional – de familia. A familia passa a ser protegida nao como um “bem em si”, mas como meio para que as pessoas possam se realizar, o que independe da configuracao de familia adotada. Entretanto, como se vera, o Codigo Civil de 2002 nao foi capaz de acompanhar essa evolução no tratamento do regime sucessorio aplicavel aos companheiros e aos conjuges.

21. Antes do CC/2002, embora existissem algumas leis esparsas conferindo, a conta-gotas, alguns direitos aos companheiros, o regime juridico da uniao estavel (incluindo aspectos sucessorios) apenas ganhou o devido destaque com a edicao de duas leis especificas, as Leis nº 8.971, de 29.12.1994 e nº 9.278, de 10.02.1996. A primeira delas (Lei nº 8.971/1994) [13] praticamente reproduziu o regime sucessorio estabelecido para os conjuges no CC/1916 [14], vigente a epoca. Desse modo, (i) estabeleceu que o companheiro seria o terceiro na ordem sucessoria (atrás dos descendentes e dos ascendentes); (ii) concedeu-lhe direito de usufruto identico ao do conjuge sobrevivente, e (iii) previu o direito do companheiro a meacao quanto aos bens da heranca adquiridos com sua colaboracao. Embora esta Lei nao tenha tornado o companheiro um herdeiro necessario (era apenas herdeiro legitimo), tal regramento em nada diferia daquele previsto para o conjuge, que tambem nao era herdeiro necessario no CC/1916.

22. A diferenca entre os dois regimes sucessorios era basicamente a ausencia de direito real de habitacao para o companheiro. Tal direito era concedido somente aos conjuges casados sob o regime da comunhao universal, apenas enquanto permanecessem viuvos, e, ainda assim, so incidia sobre o imovel residencial da familia que fosse o único daquela natureza a inventariar [15]. Porem, logo essa diferenca foi suprimida. A Lei nº 9.278/1996, ao reforcar a protecao as unioes estaveis, concedeu direito real de habitacao aos companheiros [16]. E o fez sem exigir o regime de comunhao universal de bens, nem que o imovel residencial fosse o unico de tal natureza. Ou seja, a legislacao existente ate a entrada em vigor do Codigo Civil de 2002 previa um regime juridico sucessório ate mesmo mais favorável ao companheiro do que ao cônjuge [17-18].

23. As leis relativas ao regime sucessorio nas unioes estáveis foram, portanto, progressivamente concretizando aquilo que a CF/1988 já sinalizava: conjuges e companheiros devem receber a mesma proteção quanto aos direitos sucessorios, pois, independentemente do tipo de entidade familiar, o objetivo estatal da sucessao e garantir ao parceiro remanescente meios para que viva uma vida digna. Conforme já adiantado, o Direito Sucessorio brasileiro funda-se na nocao de que a continuidade patrimonial e fator fundamental para a protecao, para a coesao e para a perpetuacao da familia.

IV.2. A desequiparação de regimes sucessórios trazida pelo art. 1790 do CC/2002

24. Essa evolucao, no entanto, foi abruptamente interrompida pelo Codigo Civil de 2002. O Codigo trouxe dois regimes sucessórios diversos, um para a familia constituida pelo matrimonio, outro para a familia constituida por uniao estavel. Com o CC/2002, o conjuge foi alcado a categoria de herdeiro necessario (art. 1.845), o que nao ocorreu – ao menos segundo o texto expresso do CC/2002 – com o companheiro [19]. Assim, caso se interprete o Codigo Civil em sua literalidade, um individuo jamais podera excluir seu conjuge da heranca por testamento, mas este mesmo individuo, caso integre uma uniao estavel, podera dispor de toda a heranca, sem que seja obrigado a destinar qualquer parte dela para seu companheiro ou companheira [20].

25. Alem disso, o CC/2002 nao previu direito real de habitação para o companheiro, embora o tenha feito para o conjuge (art. 1.831, CC/2002). Passou-se, entao, a debater se o companheiro ainda teria esse direito com base na Lei nº 9.278/1996 ou se ele teria sido revogado pelo novo Codigo Civil. O mais curioso e que, relativamente ao direito real de habitacao do conjuge, o CC/2002 incorporou os requisitos mais brandos que a Lei nº 9.278/96 previa para as unioes estaveis. Ou seja, melhorou a situacao do conjuge, dando a ele os direitos atribuidos ao companheiro, mas nada disse em relacao a este ultimo.

26. O grande marco na involucao na protecao do companheiro foi, porem, o art. 1.790 do CC/2002, questionado nesta acao direta, que dispos sobre o regime da sucessao legitima nas unioes estaveis de forma diversa do regime geral previsto no art. 1.829 do mesmo Codigo em relacao ao conjuge. Veja-se a redacao de ambos os dispositivos:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participara da sucessao do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigencia da uniao estavel, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, tera direito a uma quota equivalente a que por lei for atribuida ao filho;

II – se concorrer com descendentes so do autor da heranca, tocar-lhe-a a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessiveis, terá direito a um terco da heranca;

IV – nao havendo parentes sucessiveis, tera direito a totalidade da heranca.

Art. 1.829. A sucessao legitima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrencia com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhao universal, ou no da separacao obrigatoria de bens (art. 1.640, paragrafo unico); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da heranca nao houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrencia com o conjuge;

III – ao conjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

IV.3. Principais diferenças entre os regimes sucessórios de cônjuge e companheiro no novo Código Civil

27. Da leitura conjunta desses artigos do Codigo Civil, a primeira diferenca que se nota e que o novo regramento restringe a participacao hereditaria do companheiro aos bens adquiridos onerosamente na vigencia da uniao estavel, em relacao aos quais o companheiro ja possuia meacao. A regra de que o companheiro so e herdeiro quando for meeiro nao possui qualquer similar no regime sucessorio do conjuge, e, alem disso, nao se coaduna com a ideia de protecao do regime sucessorio, ja que, em relacao a esses bens, o companheiro ja teria direito a meacao. Por outro lado, o caput do art. 1.790 do CC/2002 exclui da sucessao qualquer bem adquirido gratuitamente pelo falecido, assim como qualquer bem adquirido onerosamente em periodo anterior a vigencia da uniao estavel.

28. A segunda diferenca entre as ordens de vocação hereditaria nos dois regimes e que, em regra, quando o companheiro tem direito a sucessao, seu quinhao e muito inferior ao que lhe seria conferido caso fosse casado com o falecido. Nesse ponto particular, a situacao dos presentes autos e simbolica. No caso concreto, a recorrente vivia em união estavel, em regime de comunhao parcial de bens, ate que seu companheiro veio a falecer. O falecido nao possuia descendentes nem ascendentes, mas apenas tres irmaos. Pelo regramento do CC/2002, em referida hipotese, a companheira recebe apenas um terco dos bens adquiridos onerosamente durante a vigencia da uniao, enquanto os irmaos recebem todos os demais bens. No entanto, se, diversamente, a recorrente fosse casada com o falecido, ela teria direito a todo o monte sucessorio.

29. De forma ainda mais contraria a logica do Direito das Sucessoes, a distribuicao citada acima seria a mesma, caso, ao inves de irmaos, o falecido houvesse deixado apenas um tio-avo, um primo, ou um sobrinho-neto. Esses receberiam todos os bens adquiridos gratuitamente, todos os adquiridos antes da uniao estavel, e mais dois tercos daqueles adquiridos onerosamente durante a uniao estavel. E que, nos termos do Codigo Civil, os colaterais ate o quarto grau sao parentes sucessiveis (art. 1.729, III c/c art. 1.839). Acerca dessa escolha legislativa, vale destacar a fina percepcao de Zeno Veloso:

“A lei nao esta imitando a vida, nem esta em consonância com a realidade social, quando decide que uma pessoa que manteve a mais intima e completa relacao com o falecido, que sustentou com ele uma convivencia seria, solida, qualificada pelo animus de constituicao de familia, que com o autor da heranca protagonizou, ate a morte deste, um grande projeto de vida, fique atras de parentes colaterais dele, na vocação hereditaria”. [21]

30. Nesse panorama, e possivel constatar a discrepancia não razoavel entre o grau de protecao legal do conjuge superstite e do companheiro superstite. O CC/2002 confere amplos recursos para que o conjuge remanescente consiga levar adiante sua vida de forma digna, em um momento em que estara psicologica e economicamente mais vulneravel, mas, na maior parte dos casos, trata de forma diametralmente oposta o companheiro remanescente, como se este fosse merecedor de menor protecao.

31. Porem, o regime sucessorio tracado pelo Codigo Civil de 2002 nem sempre privilegia o casamento em relacao a uniao estavel. Mesmo que esta nao tenha sido a intencao do legislador, a literalidade do texto da ensejo a que, em algumas circunstancias, os companheiros passem a ter mais direitos que os conjuges na sucessao. Um exemplo pode facilitar a demonstracao. Imagine-se uma situacao em que o de cujus tenha deixado descendentes comuns, que todo o seu patrimonio tenha sido adquirido onerosamente durante a vigencia da uniao estavel (sem deixar bens particulares), e que o regime de bens entre os companheiros seja o da comunhao universal, da separacao obrigatoria ou da comunhão parcial. Nessa hipotese, o companheiro teria direito a uma quota equivalente a que por lei for atribuida a cada filho comum (art. 1.790, I). No entanto, caso fossem casados, o conjuge superstite nao teria direito a participar da sucessao (art. 1.829, I), e, logo, nao herdaria nada.

32. O exemplo serve para demonstrar que, ainda que o proposito do legislador fosse a de colocar o casamento em um patamar hierarquico superior ao da uniao estavel, a grande complexidade e variedade de regimes e situacoes constantes do art. 1.790 do CC/2002 fez com que tal objetivo se perdesse pelo caminho. Hoje, a distincao de regimes sucessorios estabelecida pelo CC/2002 desprotege o companheiro em inumeras situacoes, retirando-lhe direitos que ja haviam sido conferidos por lei, ao mesmo tempo em que, em outras situacoes, privilegia a uniao estavel, protegendo o companheiro, mesmo que involuntariamente, de forma mais intensa que o conjuge.

33. E preciso, entao, verificar se essa diferenciacao de regimes juridicos sucessorios tem algum amparo constitucional ou se, ao contrario, viola os direitos e garantias previstos na Constituicao Federal.

V. INEXISTENCIA DE HIERARQUIA CONSTITUCIONAL ENTRE AS FORMAS DE FAMILIA

V.1. As famílias na Constituição

34. A Constituicao de 1988, em seu artigo 226, caput, dispoe, genericamente, que “a família, base da sociedade civil, terá especial proteção do Estado”. Nos paragrafos seguintes, o texto constitucional confere previsão expressa a tres categorias de organizacao familiar: o casamento (§§ 2º e 3º), a uniao estavel (§ 3º) e a familia monoparental (§ 4º), nos seguintes termos:

Art. 226. A familia, base da sociedade, tem especial protecao do Estado.

§ 1º O casamento e civil e gratuita a celebracao.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da protecao do Estado, e reconhecida a uniao estavel entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversao em casamento.

§ 4º Entende-se, tambem, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

35. Como se ve, a ampliacao do conceito juridico de família pela CF/1988 nao significou uma equiparacao absoluta do casamento as demais entidades familiares. Especificamente em relacao a uniao estavel, a Constituicao, de um lado, dispoe que ela e reconhecida como entidade familiar para efeito de protecao do Estado, mas, de outro, preve que a lei deve facilitar sua conversao em casamento. A luz do texto constitucional, casamento e uniao estavel sao, assim, organizacoes familiares distintas. Caso nao o fossem, nao haveria sentido trata-las em trechos distintos da Constituicao, nem se afirmar que a lei deve facilitar a conversao da união estavel em casamento.

36. Na verdade, ha varias diferencas entre casamento e união estavel, que decorrem de fatores diversos, como os modos de constituicao, de comprovacao e de extincao. A questao que se coloca, porem, e saber se e possivel extrair do art. 226 alguma hierarquia constitucional entre as formas de constituicao de familia, que autorize a instituicao de regimes sucessorios diversos em relacao a elas. Em outras palavras, resta analisar se as diferencas entre casamento e uniao estável justificam uma disparidade de tratamento no que diz respeito ao regime sucessorio de conjuges e de companheiros.

V.2. Demonstração da ilegitimidade da hierarquização das formas de família

37. Os quatro elementos tradicionais de interpretacao jurídica – o gramatical, o teleologico, o historico e o sistematico – podem auxiliar na solucao desta materia. Examina-se, em primeiro lugar, a interpretação semântica, tambem referida como gramatical, literal ou filologica. Trata-se do ponto de partida do interprete, sempre que exista uma norma expressa acerca da questao que lhe caiba resolver. Embora, naturalmente, o espirito e os fins da norma sejam mais importantes que a sua literalidade, é fora de duvida que os sentidos minimo e maximo das palavras figuram como limites à atuacao criativa do intérprete. Pois bem: a norma aqui analisada estabelece, de forma inequivoca, que a família tem especial protecao do Estado, sem fazer qualquer mencao a um modelo familiar que seria mais ou menos merecedor desta protecao. Vejase: o texto do art. 226, seja em seu caput, seja em seu § 3o, nao traca qualquer diferenciacao entre o casamento e a uniao estavel para fins de protecao estatal. Se o texto constitucional nao hierarquizou as famílias para tais objetivos, o legislador infraconstitucional nao deve poder fazelo.

38. Em segundo lugar, a interpretação teleológica reforca a inexistencia de hierarquia entre ambas as formas de constituicao familiar. A interpretacao teleologica tem como objetivo a realizacao dos fins previstos na norma, a concretizacao, no mundo dos fatos, do proposito abrigado na Constituicao. Quais seriam, entao, os fins visados pelo art. 226? Parece inequivoco que a finalidade da norma e garantir a proteção das familias como instrumento para a propria tutela de seus membros. Como ja se expos, se o Estado tem como principal meta a promocao de uma vida digna a todos os individuos, e se, para tanto, a família desempenha um papel essencial, e natural concluir que o dever estatal de protecao nao pode se limitar as familias constituidas pelo casamento, estendendo-se a outras entidades familiares igualmente formadas pelo afeto e pelo desejo de comunhao de vida, e igualmente capazes de contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes. Dai poder-se concluir que a Constituicao impede a discriminacao entre indivíduos unicamente como resultado do tipo de entidade familiar que formam. Todos os individuos, sejam eles conjuges ou companheiros, tem direito a igual protecao legal.

39. Em terceiro lugar, a interpretação histórica do dispositivo constitucional aponta para o mesmo resultado. A partir dos anais da Constituinte de 1987/1988, percebe-se que a inspiracao da norma do art. 226 da CF/1988 foi inclusiva, e nao segregativa [22]. Nao se buscou dividir as familias em classes de primeira e segunda ordem. Muito pelo contrario, o objetivo foi ampliar a protecao estatal as diversas configurações familiares (biologicas e afetivas) existentes de fato na sociedade, mas juridicamente desamparadas ate entao. Tudo isso com o objetivo de assegurar que todos possam ser igualmente respeitados e protegidos, independentemente da formalizacao de suas unioes pelo matrimonio. Nesse sentido, a defesa de uma hierarquia entre casamento e união estavel vai de encontro a vontade originaria do constituinte, em nítida interpretacao involutiva.

40. Por fim, a interpretação sistemática traz uma importante contribuicao para a analise do ponto. Como se sabe, o sistema constitucional, como qualquer outro, pressupoe unidade e harmonia. A interpretacao sistematica situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo a conexao própria com outras normas, de modo a evitar contradicoes e antinomias. No caso em exame, cabe verificar as interacoes entre o caput e os paragrafos do art. 226, bem como de outros dispositivos constitucionais que tratam dos papeis da familia.

41. Apesar de nao reconhecer qualquer diferenca entre as entidades familiares para fins de protecao estatal, a parte final do § 3º do art. 226 da CF/1988 estipula que a lei deve facilitar a conversao da união estavel em casamento. Esta implicita nesta clausula a possibilidade de o legislador infraconstitucional tracar contornos distintos para as duas entidades familiares. Afinal, se a lei deve facilitar a conversao de uma em outra, pressupoe-se que ambas sao figuras juridicamente (e nao apenas socialmente) distintas. Essa e uma primeira constatacao importante que decorre do sistema constitucional: o legislador pode atribuir regimes jurídicos diversos ao casamento e à união estável. Todavia, como sera detalhado adiante, a partir da interpretacao conjunta de diversos dispositivos da Constituicao de 1988, que trazem a nocao de funcionalização da familia, alcanca-se uma segunda constatacao importante: só será legítima a diferenciação de regimes entre casamento e união estável se não implicar hierarquização de uma entidade familiar em relação à outra, desigualando o nível de proteção estatal conferido aos indivíduos.

V.3. Situações de desequiparação legítima entre formas de família

42. Assim, a partir da ideia de que o legislador pode adotar regimes juridicos diversos para o casamento e a uniao estavel, torna-se necessario separar as situacoes em que a diferenciacao de regimes juridicos e feita de forma legitima daquelas em que e feita de forma arbitraria. Essa e uma questao importante, pois, para parcela da doutrina e da jurisprudencia, o fato de o texto constitucional prestigiar a facilitação da conversao da uniao estavel em casamento significa que o constituinte conferiu um tratamento privilegiado as unioes matrimoniais. Segundo esse entendimento, tal privilegio autorizaria o legislador a instituir, de forma legitima, regimes juridicos diversos para as duas entidades familiares, inclusive quanto a questao sucessória [23].

43. Essa, porem, nao parece ser a leitura mais adequada do texto constitucional. Como ja se disse, e possivel extrair da interpretação conjunta de diversos dispositivos da Constituicao de 1988 (e.g., arts. 205, 226, §7o, 227, 230), a nocao de funcionalização da familia, que aponta o seu carater instrumental em prol da dignidade e da realizacao existencial de seus membros. Se o papel de qualquer entidade familiar constitucionalmente protegida e contribuir para o desenvolvimento da dignidade e da personalidade dos individuos, sera arbitraria toda diferenciacao de regime juridico que busque inferiorizar um tipo de familia em relacao a outro, diminuindo o nivel de protecao estatal aos individuos somente pelo fato de nao estarem casados. Desse modo, a diferenciacao de regimes entre casamento e uniao estavel somente sera legitima quando nao promover a hierarquizacao de uma entidade familiar em relacao a outra.

44. Por outro lado, se a diferenciacao entre os regimes basearse em circunstancias inerentes as peculiaridades de cada tipo de entidade familiar, tal distincao sera perfeitamente legitima. E o caso, por exemplo, da diferenca quanto aos requisitos para a comprovacao do casamento e da uniao estavel. O casamento e um instituto formal, solene, e permite as partes comprovarem o estado civil de casadas com a mera exibicao da certidao matrimonial, independentemente de prova de convivencia. Na verdade, duas pessoas poderiam se conhecer e se casar em periodo de tempo muito curto, e nao haveria qualquer questionamento quanto ao estado civil de ambas. Da mesma forma, se os conjuges entenderem que nao ha mais razoes para o casamento perdurar, e preciso que passem por um procedimento igualmente formal e solene, ao fim do qual poderão exibir uma certidao que comprove o novo estado civil.

45. Diferentemente, a uniao estavel pressupoe (como demonstra o proprio nome) que as partes estejam em uma relação constante e prolongada no tempo, com a finalidade de constituicao de familia. Este ultimo elemento e o traco que a distingue, por exemplo, de outros tipos de relacoes amorosas informais. No entanto, nao há formalidade para a constituicao da uniao estavel: ela decorre dos fatos da vida. E verdade que as partes podem comparecer a um cartorio e registrar sua existencia, mas esse registro sera declaratorio, e nao constitutivo. Se a uniao estavel existir, seu registro apenas refletira um fato anterior. Ja se nao houver verdadeiramente uma uniao estavel, o registro nao passara de uma declaracao falsa, pois nao servira para cria-la.

46. E justamente nesse ponto que se pode identificar o motivo pelo qual o texto constitucional optou por facilitar a conversao da união estavel em casamento. Entra em cena a questao da seguranca juridica. A uniao estavel depende da verificacao de uma situacao de fato. Nao ha um documento unico que a constitua e que sirva de prova definitiva. Consequentemente, para todos os terceiros que se relacionam com os companheiros, e para a sociedade em geral, ha um nivel menor de seguranca. Imagine-se o caso de um particular que deseja adquirir um imovel de outro, que esteja registrado apenas no nome do vendedor. Não sera possivel ao comprador, por exemplo, saber se o vendedor vive em uniao estavel, nem se o imovel foi adquirido onerosamente durante a vigencia da referida uniao, o que podera gerar futuros riscos de questionamento da operacao por parte de eventual companheira.

47. E a citada inseguranca afeta tambem a Administracao Publica em diversas situacoes. Uma delas, muito comum, e representada por um significativo numero de processos judiciais em que, com o intuito de obter beneficio previdenciario, a parte requerente busca comprovar a existencia de uma uniao estavel com o segurado falecido. Mais recentemente, mesmo na ausencia de lei especifica, alguns entes públicos passaram a estender aos servidores em uniao estavel direitos de servidores casados, exigindo, porem, requisitos diferenciados que permitam aferir com um minimo de seguranca a existencia da união estavel, como o registro da uniao em cartório [24]. Como se ve, a exigência de documentos que comprovem a existencia de uniao estavel não configura hierarquizacao entre tipos de familia, pois decorre naturalmente das peculiaridades da entidade familiar. Tampouco representa distincao no grau de protecao estatal ao individuo, pois não confere a este menos direitos unicamente em razao de integrar uma ou outra forma de constituicao de familia.

48. Ante o exposto, conclui-se que a facilitacao da conversão da uniao estavel em casamento nao reflete suposta preferencia hierarquizada do casamento em relacao a uniao estavel. Representa, sim, o desejo estatal de garantir maior seguranca juridica nas relacoes sociais. Seria mais seguro e conveniente para o sistema juridico que todas as unioes fossem formalizadas pelo casamento. Mas uma coisa e ser mais seguro, e outra, totalmente diferente, e constituir condicao para que os individuos sejam tratados com igual respeito e dignidade. No julgamento da mencionada ADPF 132, o Min. Luiz Fux sintetizou o ponto com precisao:

“Existe razoavel consenso na ideia de que nao há hierarquia entre entidades. Portanto, entre o casamento e a uniao estavel heterossexual nao existe, em principio, distinção ontologica; o tratamento legal distinto se da apenas em virtude da solenidade de que o ato juridico do casamento – rectius, o matrimonio – se reveste, da qual decorre a seguranca jurídica absoluta para as relacoes dele resultantes, patrimoniais (como, v.g., o regime de bens ou os negocios juridicos praticados com terceiros) e extrapatrimoniais. A uniao estavel, por seu turno, demandara, em muitos casos, a producao de outras provas facilmente substituidas, num casamento, pela respectiva certidao, mas, como entidades familiares, funcionarão substancialmente do mesmo modo.”

49. Como decorrencia logica da inexistencia de qualquer hierarquia entre as diferentes entidades familiares e do direito a igual protecao legal de todas as familias, e inconstitucional o art. 1.790, do Codigo Civil, ao prever regimes sucessorios distintos para o casamento e para a uniao estavel. Se o legislador civil entendeu que o regime previsto no art. 1.829 do CC/2002 e aquele que melhor permite ao conjuge viver sua vida de forma digna apos o obito de seu parceiro, nao poderia, de forma alguma, estabelecer regime diverso e menos protetivo para o companheiro.

VI. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, PROIBICAO DE PROTECAO DEFICIENTE E VEDACAO AO RETROCESSO

VI.1. Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana

50. Alem de estabelecer uma inconstitucional hierarquização entre entidades familiares, o art. 1.790 do CC/2002 tambem viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Como ja defendi em trabalho doutrinario, a dignidade humana identifica (1) o valor intrinseco de todos os seres humanos, assim como (2) a autonomia de cada individuo, (3) limitada por algumas restricoes legitimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitario) [25]. No caso da previsao de um regime sucessorio diverso ao conjuge e ao companheiro, ha afronta tanto a dignidade na vertente do valor intrinseco, quanto a dignidade na vertente da autonomia, sem que haja qualquer valor social ou interesse estatal legitimo nessas limitacoes.

51. A dignidade como valor intrinseco postula que todos os individuos tem igual valor e por isso merecem o mesmo respeito e consideração [26]. Isso implica a proibicao de discriminacoes ilegítimas devido a raca, cor, etnia, nacionalidade, sexo ou idade, e tambem devido a forma de constituicao de familia adotada. Se o Direito Sucessorio brasileiro tem como fundamento a protecao da familia, por meio da transferencia de recursos para que os familiares mais proximos do falecido possam levar suas vidas adiante de forma digna, e incompatível com a ordem de valores consagrada pela Constituicao de 1988 definir que conjuges e companheiros podem receber maior ou menor protecao do Estado simplesmente porque adotaram um ou outro tipo familiar.

52. Ja a dignidade como autonomia garante a todos os individuos a possibilidade de buscarem, da sua propria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A autonomia privada consiste na capacidade de o individuo fazer escolhas pessoais ao longo da vida sem influencias externas indevidas. Quanto maior a conexao dessas escolhas com o desenvolvimento da personalidade e a autorrealizacao individual, maior deve ser a protecao conferida a autonomia. Nesse sentido, nao há duvida de que a opcao de constituir uma familia, bem como de adotar uma determinada forma de constituicao familiar e uma das mais relevantes decisoes existenciais. Trata-se de uma questao que toca a intimidade de cada individuo, de sua vontade de seguir (ou nao) tradicoes, crencas e sonhos, e de viver sua uniao segundo a sua própria concepcao de vida boa. Porem, quando o Codigo Civil cria regimes sucessorios diversos para os casais casados e para os que vivem em união estavel, restringe-se inequivocamente a autonomia de optar por um ou outro regime. Considerando-se que, na quase totalidade dos casos, o companheiro tera menos direitos sucessorios em relacao ao conjuge, o ordenamento juridico impoe um onus maior as familias em uniao estavel. Assim, acaba-se induzindo quem deseja viver em uniao estavel a adotar o modelo do casamento, por receio de que seus parceiros nao venham a fazer jus ao regime sucessorio devido.

53. Nao ha que se falar aqui que a diferenca de regimes sucessorios decorreria da propria autonomia da vontade, ja que conferiria aos individuos a possibilidade de escolher o sistema normativo (casamento ou uniao estavel) que melhor se ajusta aos projetos de vida de cada um. O que a dignidade como autonomia protege e a possibilidade de opcao entre um e outro tipo de entidade familiar, e nao entre um e outro regime sucessorio. Pensar que a autonomia de vontade do individuo referente a decisao de casar ou nao casar se resume a escolha do regime sucessorio e amesquinhar o instituto e, de forma geral, a ideia de vinculos afetivos e de solidariedade. E pensar de forma anacronica e desprestigiar o valor intrinseco da familia, restringindo-a a um aspecto meramente patrimonial, como costumava ocorrer anteriormente a Constituicao de 1988.

54. Em verdade, a ideia de se prever em lei um regime sucessorio impositivo parte justamente da concepcao de que, independentemente da vontade do individuo em vida, o Estado deve fazer com que ao menos uma parcela de seu patrimonio seja distribuída aos familiares mais proximos no momento de sua morte, de modo a garantir meios de sustento para o nucleo familiar. E nao faz sentido desproteger o companheiro na sucessao legitima apenas porque não optou pelo casamento. O fato de as unioes estaveis ocorrerem com maior frequencia justamente nas classes menos favorecidas e esclarecidas da populacao apenas reforca o argumento da impossibilidade de distinguir tais regimes sucessorios, sob pena de prejudicar justamente aqueles que mais precisam da protecao estatal e sucessoria.

55. Diante do exposto, conclui-se que a diferenciacao entre os regimes sucessorios do casamento e da uniao estavel promovida pelo art. 1.790 do Codigo Civil de 2002 viola o principio da dignidade da pessoa humana, tanto na dimensao do valor intrinseco, quanto na dimensao da autonomia.

VI.2. Violação ao princípio da proporcionalidade

56. Alem disso, ao outorgar ao companheiro direitos sucessorios distintos daqueles conferidos ao conjuge pelo artigo 1.829, o CC/2002 produz lesao ao princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente [27]. O principio da proporcionalidade, tal como e hoje compreendido, nao possui apenas uma dimensao negativa, relativa a vedação do excesso, que atua como limite as restricoes de direitos fundamentais que se mostrem inadequadas, desnecessarias ou desproporcionais em sentido estrito. Ele abrange, ainda, uma dimensão positiva, referente a vedação à proteção estatal insuficiente de direitos e principios constitucionalmente tutelados. A ideia nesse caso e a de que o Estado tambem viola a Constituicao quando deixa de agir ou quando não atua de modo adequado e satisfatorio para proteger bens jurídicos relevantes. Tal principio tem sido aplicado pela jurisprudencia desta Corte em diversas ocasioes para afastar a incidencia de normas que impliquem a tutela deficiente de preceitos constitucionais [28].

57. No caso em discussao, a violacao a proporcionalidade como vedacao a protecao deficiente e bastante evidente. Como se viu, o conjunto normativo resultante do art. 1.790 do Codigo Civil veicula uma protecao insuficiente ao principio da dignidade da pessoa humana em relacao aos casais que vivem em uniao estavel. A depender das circunstancias, tal regime juridico sucessorio pode privar o companheiro superstite dos recursos necessarios para seguir com sua vida de forma digna. Porem, a deficiencia da atuacao estatal em favor da dignidade humana dos companheiros nao e justificada pela tutela de nenhum outro interesse constitucional contraposto [29]. Conforme ja analisado, nao se pode defender uma preferencia constitucional ao casamento para justificar a manutencao da norma do Codigo Civil menos protetiva da uniao estável em relacao ao regime sucessorio aplicavel. A luz da Constituicao de 1988, nao ha hierarquia entre as familias e, por isso, nao se pode desigualar o nivel de protecao estatal a elas conferido.

VI.3. Violação ao princípio da vedação do retrocesso

58. Nao bastasse, o art. 1.790 promove uma involucao na protecao dos direitos dos companheiros que viola o princípio da vedação ao retrocesso [30]. Trata-se de principio constitucional implicito, extraido dos principios do Estado Democratico de Direito, da dignidade da pessoa humana e da maxima efetividade dos direitos fundamentais (art. 5o, §1º), que impede a retirada de efetividade das normas constitucionais. Entende-se que a Constituicao estabelece para o legislador a obrigacao de concretizar, por meio da legislacao, os direitos fundamentais estabelecidos no texto constitucional. Como resultado, quando o legislador tenha cumprido tal funcao, impede-se tanto que (i) possa revogar tais concretizacoes sem aprovar legislacao substitutiva, de modo a aniquilar a protecao constitucional conferida ao direito, quanto que (ii) possa editar legislacao substitutiva que limite ou reduza, de forma arbitraria ou desproporcional, o grau de concretizacao do direito fundamental anteriormente em vigor.

59. O principio nao significa, por obvio, que nenhum passo atras possa ser dado na protecao de direitos. Isso limitaria excessivamente o exercicio da funcao tipica do Poder Legislativo e seria incompativel com o principio democratico. Todavia, a proibicao de retrocesso veda que, diante de uma mesma situacao de fato, sejam implementadas involuções desproporcionais na protecao de direitos ou que atinjam o seu núcleo essencial.

60. Pois bem: nao ha duvida de que o regime sucessorio dos companheiros estabelecido pelo novo Codigo Civil representou uma involucao desproporcional na protecao dos direitos fundamentais dos individuos que vivem em unioes estaveis. Antes do CC/2002, o regime juridico sucessorio da uniao estavel estabelecido pelas Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 era substancialmente igual aquele previsto para o casamento no CC/1916, entao vigente. Conjuges e companheiros ocupavam a mesma posicao na ordem de vocacao hereditaria (ambos ficavam atras dos descendentes e dos ascendentes), possuiam idêntico direito a meacao, e ostentavam tanto o direito de usufruto, quanto o direito real de habitacao. Tais leis, portanto, concretizaram o imperativo constitucional de protecao as familias (independentemente de seu modo de constituicao), previsto no art. 226 da Carta de 1988.

61. Porem, conforme exposto ao longo deste voto, o Codigo Civil de 2002 aprovou regulamentacao alternativa que simplesmente anulou boa parte da protecao sucessoria conferida pelas Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 aos companheiros. No que concerne a essa involucao, convem destacar que a proposta de redacao originaria do artigo do CC/2002 que versava sobre regime sucessorio foi elaborada em 1985, antes mesmo da edicao da Constituicao de 1988. Embora tenham transcorrido mais de quinze anos entre o projeto original da norma sobre o regime sucessorio dos companheiros e a efetiva promulgacao do Codigo Civil (em 2002), a proposta permaneceu praticamente inalterada. Nao foram consideradas em sua elaboracao nem a completa alteracao dos paradigmas familiares pela nova Constituicao, nem a igualacao dos regimes sucessorios de conjuges e companheiros pelas leis posteriores. Nesse sentido, veja-se que o relatorio geral da Comissao Especial do Codigo Civil apontou uma preferencia expressa pelo instituto do matrimonio como fundamento do regime sucessorio dos companheiros aprovado pelo CC/2002 [31]:

“As diretrizes imprimidas a elaboracao do Projeto, fieis nesse ponto as regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impoem um tratamento diversificado, no plano sucessorio, das figuras do cônjuge superstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposicao ou confusao de direitos a sucessão aberta. Impossibilitado que seja um tratamento igualitario, inclusive por descaracterizar tanto a uniao estavel – enquanto instituicao-meio – quanto o casamento – enquanto instituicaofim – na conformidade do preceito constitucional. (…) Tomamos assim como diretrizes basicas, na caracterizacao dos direitos sucessorios do conjuge e do convivente, a prevalencia da relacao matrimonial em confronto com o relacionamento estavel”

62. Percebe-se assim que, nesse aspecto, o Codigo Civil de 2002 foi anacronico e representou um retrocesso vedado pela Constituicao na protecao legal das familias constituidas por uniao estavel. O regime sucessorio da uniao estavel tracado pelo CC/2002 ignorou as grandes transformacoes promovidas pela CF/1988, que funcionalizou a familia em favor do individuo, e, assim, jogou por terra a evolução legislativa infraconstitucional, que, seguindo a nova orientação constitucional, havia cuidado de aproximar os direitos de conjuges e companheiros, tendo como norte a ideia de que ambos merecem igual protecao.

63. Fica claro, portanto, que o art. 1.790 do CC/2002 e incompativel com a Constituicao Federal. Alem da afronta a igualdade de hierarquia entre entidades familiares, extraida do art. 226 da Carta de 1988, violou outros tres principios constitucionais, (i) o da dignidade da pessoa humana, (ii) o da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e (iii) o da vedação ao retrocesso.

Parte III

A SOLUÇÃO DA CONTROVÉRSIA

VII. O EXAME DO CASO CONCRETO

64. Fixadas as premissas juridicas que devem orientar a analise de qualquer situacao em que esteja em jogo o regime sucessório entre companheiros, e possivel alcancar a solucao para o caso versado no presente recurso. A decisao impugnada aplicou o texto literal do art. 1.790 do CC/2002, de modo que a companheira do falecido apenas foi reconhecido o direito a um terco dos bens adquiridos onerosamente na constancia da uniao estavel. O restante do patrimonio foi conferido aos tres irmaos do falecido.

65. No entanto, como se demonstrou anteriormente, a redação do art. 1.790 do CC/2002 nao encontra amparo na Constituicao de 1988. Trata-se de norma discriminatoria e anacronica, que busca hierarquizar entidades familiares de diferentes tipos, em violacao a igualdade entre as familias e aos principios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade como vedacao a protecao deficiente e da vedacao ao retrocesso. No caso dos autos, tal dispositivo produz como resultado a reducao da protecao sucessoria da companheira unicamente em razao da nao conversao de sua uniao em casamento. Consequentemente, a decisão recorrida (assim como qualquer decisao que se fundamente na regra do art. 1.790 do CC/2002) merece reparo.

66. E preciso, no entanto, esclarecer qual regramento e aplicavel para reger a sucessao dos companheiros, tendo em vista a exclusao do art. 1.790 do mundo juridico. Nesse ponto, duas alternativas poderiam ser aventadas. A primeira delas parte da ideia de que, retirada a validade da norma pela declaracao de sua inconstitucionalidade, as relacoes juridicas devem ser regidas pela norma anteriormente existente, que supostamente havia sido retirada do ordenamento pela norma declarada invalida. Na presente hipotese, isso significaria restabelecer a validade do regime estabelecido pelas Leis nº 8.971/1994 e 9.278/1996. Ja a segunda alternativa se funda na concepcao de que se deve garantir regimes sucessorios iguais a conjuges e companheiros, de modo a não promover uma diferenciacao ilegitima dessas duas formas de constituição familiar. Como resultado, no caso, o regime estabelecido pelo próprio CC/2002 para os conjuges seria estendido aos companheiros.

67. A solucao mais acertada e justamente esta ultima. Se e verdade que o CC/2002 criou uma involucao inconstitucional em seu art. 1.790 em relacao ao companheiro, e igualmente certo que representou razoavel progresso no que concerne ao regramento sucessório estabelecido no art. 1.829 para o conjuge. No citado artigo 1.829, reforcase a protecao estatal aos parceiros remanescentes do falecido, tanto pela sua elevacao a condicao de herdeiro necessario, como pelos criterios de reparticao da heranca mais protetivos em comparacao com a legislação ate entao existente. Considerando-se, entao, que nao ha espaco legitimo para que o legislador infraconstitucional estabeleca regimes sucessórios distintos entre conjuges e companheiros, chega-se a conclusao de que a lacuna criada com a declaracao de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 deve ser preenchida com a aplicacao do regramento previsto no art. 1.829 do CC/2002, e nao daquele estabelecido nas leis revogadas. Logo, tanto a sucessao de conjuges como a sucessao de companheiros devem seguir, a partir da decisao desta Corte, o regime atualmente tracado no art. 1.829 do CC/2002.

68. E importante observar, porem, que a declaracao de inconstitucionalidade da distincao de regimes sucessorios entre cônjuges e companheiros, prevista no art. 1.790 do CC/2002, nao impede uma futura atuacao do legislador no sentido de garantir a possibilidade de exercicio da autonomia da vontade pelos companheiros (e tambem pelos conjuges). Desde que mantenha a equiparacao de regimes sucessórios entre o casamento e a uniao estavel como regra geral, o Poder Legislativo podera criar regime sucessorio diverso, ao qual os companheiros poderão optar, em vida, mediante acordo escrito. Nesse caso, porem, para que não se viole a presente decisao, sera preciso fixar-se que, nao havendo convencao, sera aplicavel a uniao estavel o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002.

69. Por fim, nao se pode esquecer que o tema possui enorme repercussao na sociedade, em virtude da multiplicidade de sucessoes de companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Levando-se em consideracao o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam sobre as referidas sucessoes encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento (muitas ja finalizadas sob as regras antigas), entendo ser recomendavel modular os efeitos da aplicação do entendimento ora afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a inseguranca juridica, a solução ora alcancada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda nao tenha havido transito em julgado da sentenca de partilha, assim como as partilhas extrajudiciais em que ainda nao tenha sido lavrada escritura publica.

CONCLUSÃO

70. Ante o exposto, dou provimento ao recurso para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, por violar a igualdade entre as familias, consagrada no art. 226 da CF/1988, bem como os principios da dignidade da pessoa humana, da vedacao ao retrocesso e da protecao deficiente. Como resultado, declaro o direito da recorrente a participar da heranca de seu companheiro em conformidade com o regime juridico estabelecido no art. 1.829 do Codigo Civil de 2002.

71. Assento, para fins de repercussao geral, a seguinte tese:

No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002

É como voto.

ANTECIPAÇÃO AO VOTO

O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN – Senhora Presidente, eminentes Pares, quero inicialmente cumprimentar o eminente Relator pelo voto escrito e pela síntese oral que fez, à exceção evidentemente da menção a este que fala, no mais, portanto, expresso os meus sinceros cumprimentos. Também me associo aos cumprimentos aos ilustres advogados que ocuparam a tribuna e sustentaram as suas respectivas razões. Dos interessados neste tema, também recebi, examinei os memoriais e me permito, de um modo especial, destacar o memorial que recebi subscrito também pelo Professor Ives Gandra da Silva Martins, a quem muito estimo e admiro.

Senhora Presidente, eu tenho uma declaração de voto escrito que, para prestar contas da respectiva fundamentação, irei juntar ao feito na forma devida. Mas, sem embargo, brevemente, procuro sumariar as seguintes razões que me levam na conclusão que vai ao encontro da conclusão que Sua Excelência, o eminente Relator, chegou.

Creio que não há divergência nem na doutrina, nem na jurisprudência, ao reconhecer que a família é a base da sociedade e, portanto, estamos a partir dessa percepção para encontrar diferentes formas de constituição de família. Por isso, união estável e casamento são diferentes formas de constituição de famílias, e correspondem, portanto, a reconhecer que essa diferença, ou essa diversidade, tem assento constitucional.

A questão que se interroga no núcleo deste recurso, tal como muito bem exposta pelo eminente Ministro Luís Roberto Barroso, é saber se essa diferença se projeta no campo do direito sucessório como uma desigualdade discriminatória e incompatível com o texto constitucional e os diversos dispositivos que o eminente Relator acaba de mencionar.

Essa diferença, discriminatória ou não – portanto, que faz emergir a questão -, neste caso, está nucleada no teor do art. 1.790. E aqui me permito uma explicitação que se agrega às premissas e à conclusão do eminente Relator no sentido de dizer que estamos diante de uma discussão de cunho sucessório. Aqui não se está a falar de direito de meação. Portanto, tal como se postou o voto do eminente Ministro Luís Roberto Barroso, nós não estamos a discutir os efeitos da meação, que implicaria num outro debate; estamos, aqui, num terreno que está no campo de direito sucessório. Portanto, voltando à questão inicial, o art. 1.790 promove uma diferença ou uma discriminação injusta que é incompatível com o texto constitucional? A diferença ou a discriminação parte do pressuposto – aliás, o caso concreto, pelo que relatado pelo eminente Relator, apresenta essa ordem de ideias – de que o sentido teórico e prático embutido nesse dispositivo leva a uma distribuição sucessória para a companheira ou para companheiro de uma maneira diversa daquela que levaria para a cônjuge ou para o cônjuge; e de uma maneira diversa, substancialmente diversa, inclusive na distribuição dos respectivos direitos sucessórios.

Portanto, colocando essa questão no cerne do reconhecimento da diversidade da diferença e indagando-se, daí se extrai uma discriminação que não se justifica à luz do texto constitucional. É preciso ir precisamente onde foi o eminente Relator, especialmente no art. 226, parágrafos e seguintes da Constituição, para saber qual é a ratio que dá o governo jurídico da família como base da sociedade. E, efetivamente, nessa ratio que está na Constituição, não só nessa parte – o eminente Relator se fundou em outros dispositivos constitucionais que também cito, aqui, nessa declaração de voto -, essa ratio, em meu modo de ver, está no reconhecimento de que uma sociedade plural se faz, como escreveu Dworkin num outro contexto, por uma percepção de liberdade dos seus respectivos agentes morais. Em outras palavras, a opção por esse ou por aquele modelo de família não pode impor, àquele que realizou a opção, uma escolha de um modelo preferencial como se houvesse uma restrição da liberdade moral de eleição do respectivo modelo de família.

Essa ideia, parece-me, está na base da ratio do capítulo da família, que é a essência da sociedade. E aqui, quiçá cada um de nós poderia, até mesmo do ponto de vista pessoal, falar das suas inflexões, porque essa é a dimensão aberta e plural das formas de constituição de família – da família monoparental, da família derivada da união estável, da família matrimonializada. Portanto, de diversos desenhos jurídicos que, no meu modo de ver, levam em conta o sentido e a importância estrutural da ideia e da concreção da família na sociedade brasileira sem que haja, portanto, essa intervenção no sentido de indicar um modelo que, num juízo moral, seja preferencial. Porque aquele que pode ser o meu, numa sociedade como cidadão, e que de fato o foi, e que não é o da união estável, não pode ser imposto ao exercício da liberdade de outrem, que até mesmo pode, na relação de solteiro que adota, constituir uma família monoparental, e merecer, em igual dignidade, isonômica proteção constitucional.

Portanto, a declaração de voto que fiz agasalha-se nessa racionalidade, procura distinguir, como disse, meação de direito sucessório para deixar bem evidenciado, tal como o eminente Relator acentuou. Aqui se trata de buscar superar não a diferença, mas algo que, em meu modo de ver, também se traduz numa discriminação sem justificativa de índole constitucional, e que não confunde direito sucessório com direito à meação. E mais, que também separa modelos de conjugalidade de regime de bens, que é uma outra realidade que, de algum modo, aqui, não se coloca em questão.

Há doutrina produzida sobre isso, e eu vou tomar como inspiração um dos pioneiros nessa matéria, que é o Professor Álvaro Villaça de Azevedo, que me permito citar, ilustre professor do Largo de São Francisco. O Professor Álvaro escreveu:

O importante é proteger todas as formas de constituição familiar sem dizer o que é melhor. O homem é um ser gregário, que necessita viver em família, cujo modo de constituição ele escolhe, firmando-se um costume, admitindo sua coletividade, que vai transpondo gerações.

Esse anseio, embora nasça de um contrato convivencial, é algo que ultrapassa a noção do instituto jurídico, é um organismo institucional, e o direito humano deve intervir somente para evitar lesões, fazendo reinar a responsabilidade.

Portanto, Senhora Presidente, renovando meus cumprimentos ao eminente Relator, eu entendo que a matemática sucessória do art. 1.790 não se sustenta diante da Constituição, portanto, não estou partindo de um juízo moral sobre as formas de família, mas um juízo de adequação constitucional.

Não me parece que ali tenha uma solução constitucionalmente adequada, portanto, tal como acutissimamente posto no voto do eminente Ministro Luís Roberto Barroso, a hermenêutica constitucional conduz a uma equiparação, nos termos do inciso I do art. 5º e do § 3º do art. 226 da Constituição da República, entre regime sucessório dos cônjuges e regime sucessório na união estável, de modo a reconhecer incidentalmente, no presente recurso extraordinário, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil.

Portanto, esta é a percepção que tenho e concluo, também, em duas direções, na linha do que indicou o eminente Ministro-Relator: para que não se estabeleça uma indesejável lacuna no ordenamento jurídico quanto ao tema, deve-se aplicar a ambos os modelos de conjugalidade as mesmas regras, ou seja, aquelas do art. 1.829 e seguintes do Código Civil. E também, quanto à modulação – se chegarmos a tanto, mas me permito desde já adiantar -, em nome da segurança jurídica, estou também aqui acompanhando a proposta do eminente Relator e, portanto, acompanho integralmente no provimento.

É como voto.

V O T O

O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Trata-se de recurso extraordinário no qual se discute a constitucionalidade do regime sucessório das uniões estáveis, nos termos em que foi regulado pelo art. 1.790 do Código Civil de 2002.

A questão constitucional que se apresenta para a apreciação desta Suprema Corte é saber se as distinções estabelecidas pelo Código Civil entre cônjuges e companheiros, para fins de direitos sucessórios, são compatíveis com os arts. 5º, I, e 226, §3º, da Constituição da República.

Assento 10 (dez) premissas antes de adentrar na questão constitucional posta a debate.

A primeira delas é que tanto o casamento como a união estável são modalidades de conjugalidade constitucionalmente asseguradas, inexistindo, portanto, hierarquia entre essas modalidades no texto constitucional, impondo-se, quanto ao que igual, tratamento isonômico.

A segunda é de que a família é base da sociedade livre justa e solidária do artigo 3º da Constituição, de modo que a Constituição de uma sociedade livre e solidária não hierarquiza pessoas por suas opções familiares, atribuindo-lhes direitos em menor extensão ou, mesmo, diferentes – sem que esse discrímen se justifique na efetiva distinção entre as situações jurídicas em que os indivíduos estão inseridos.

A terceira premissa é de que a proteção à família é direcionada à pessoa de cada um dos seus integrantes, não sendo possível diferenciar pessoas, com a atribuição de mais ou menos direitos, em virtude do modelo de conjugalidade eleito. Trata-se da aplicação do princípio eudemonista, constante do artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição da República:

O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Atribuir direitos sucessórios em maior extensão a casados ou conviventes ou, mesmo, direitos diferentes, que não se justifiquem pela efetiva diferença entre as situações jurídicas, é tratar de modo distinto indivíduos em situações iguais, o que não encontra guarida no texto constitucional (art. 5º, I, CRFB).

A quarta premissa é de que distinguir os direitos a serem atribuídos aos casados e aos conviventes seria fazer um juízo moral prévio sobre os modelos de família e as formas de convivência familiar, o que a Constituição não permite. Não há família de primeira e segunda classes, porque não há cidadãos de primeira e segunda classes. A pluralidade familiar apreendida pelo texto constitucional é expressão da pluralidade moral que a Constituição de uma República livre, justa e solidária tem como princípio vetor. Eleger como dotado de primazia um ou outro modelo de família conjugal seria eleger morais particulares de alguns cidadãos como dotadas de superioridade sobre as morais particulares de outros.

Aqui, pode-se citar Ronald Dworkin, que, em síntese, reconhece a essencialidade de uma liberdade positiva que se realiza no âmbito de uma comunidade política ‘verdadeira’, assim entendida como aquela que i) detém as condições estruturais que permitam ao indivíduo reputar-se, efetivamente, seu membro moral, bem como ii) expresse alguma “concepção de igualdade de consideração para com os interesses de todos os membros da comunidade” e iii) “seja feita de agentes morais independentes”, não podendo, por exemplo, impor concepções unitárias de bem aos seus integrantes. (DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norteamericana. São Paulo: Martins-Fontes, 2006, p. 32-40).

Como quinta premissa a ser considerada, tem-se que quando o parágrafo 3º do artigo 226 dispõe que deve a “lei facilitar a sua conversão em casamento”, não está a oferecer tratamento privilegiado ao casamento. Por isso, ‘facilitar’ a conversão nada mais é do que oferecer instrumentos para que, no exercício da liberdade individual, os companheiros possam migrar de um modelo de conjugalidade de fato – união estável – para um modelo formal – casamento.

A sexta premissa é que há um traço comum essencial para as duas formas de conjugalidade, qual seja, a marca do afeto e da entreajuda, existindo apenas um aspecto em que o casamento e a união estável se diferenciam: a presença, ou ausência, de formalidade em sua constituição. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, tomo I, Rio de Janeiro: Renovar, 2008)

Como sétima premissa, tem-se que a desigualdade na forma de Constituição não pode afetar a sucessão, pois se trata apenas de questão de prova sobre a conjugalidade. Daí porque é facilitada a conversão, uma vez que a prova pré-constituída do casamento facilita o exercício dos direitos. Para se provar casado, basta apresentar uma certidão. Isso não ocorre na união estável. O casamento traz maior segurança jurídica formal. Por isso, a vantagem de migrar do modelo informal para o modelo formalizado, não pode ser motivo para a atribuição de direitos diferentes entre os modelos de conjugalidade. (PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil eLiberdade(s), Rio de Janeiro: Editora GZ, p. 333-334).

Como oitava premissa, emerge o argumento quanto à existência de desigualdade no elemento subjetivo que conduz alguém a optar pela união estável e não pelo casamento. Sob esse argumento, quem vive em união estável pretenderia maior liberdade. União estável, porém, não é união livre. União estável pressupõe comunhão de vida. Eventual desigualdade quanto à pressuposição de maior liberdade na união estável, por ser união informal, não justifica menor proteção às pessoas em regime de convivência do que àquelas casadas.

Se a informalidade da constituição da relação, a qual, repise-se, exige comunhão de vida para ser família, pudesse justificar direitos diferentes ou em menor extensão, também restaria afastada a incidência de regime de comunhão de bens, quanto aos efeitos inter vivos. Na sucessão, a liberdade patrimonial dos conviventes já é assegurada com o não reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário, podendo-se afastar os efeitos sucessórios por testamento. Prestigiar a maior liberdade na conjugalidade informal não é atribuir, a priori, menos direitos ou diretos diferentes do casamento, mas, sim, oferecer a possibilidade de, voluntariamente, excluir os efeitos sucessórios.

Como nona premissa, tem-se que a ordem constitucional, na disciplina da família, se pauta, pois, na realidade das relações de afeto e no valor da solidariedade. É isso que restou apreendido pelo Constituinte ao proteger as diversas formas de família. Daí a inadmissibilidade de se oferecer tratamento discriminatório às pessoas que elegem um ou outro modelo de entidade familiar.

E, nesse particular, ganha relevo as lições pioneiras e percucientes do Professor Álvaro Villaça Azevedo, para quem não caberia ao legislador, nem mesmo o constituinte, dizer ao povo como deve constituir sua família. Afirma expressamente o ilustre professor:

“O importante é proteger todas as formas de constituição familiar, sem dizer o que é melhor. O homem é um ser gregário, que necessita viver em família, cujo modo de constituição ele escolhe, firmando-se um costume admitido em sua coletividade, que vai transpondo gerações. Esse anseio popular, embora nasça de um contrato convivencial, é algo que ultrapassa a noção de instituto jurídico, é um organismo institucional, que se fundamenta no Direito Natural. O Direito Humano deve intervir, somente, para evitar lesões, locupletamentos indevidos, fazendo reinar a responsabilidade, ainda mais fortemente, nas convivências livres. A união estável, concubinato puro, não adulterino e não incestuoso, sempre encontrou esse apoio institucional, na figura antiga do casamento de fato.” (AZEVEDO, Álvaro Villaça. O direito civil na Constituição, in MORAES, Alexandre de. Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil, São Paulo: Atlas, 2009, p. 375)

Por fim, a décima premissa é no sentido de que o modelo de conjugalidade não se confunde com regime de bens. Tanto o casamento quanto a união estável são atos essencialmente existenciais em sua natureza, ainda que dotados tanto de efeitos pessoais quanto patrimoniais. Trata-se, em um ou outro modelo, de comunhão de vida afetiva: um ninho com moldura e outro sem, mas sempre um ninho.

Por isso, é falacioso o emprego do argumento de que, se o legislador diferencia os efeitos sucessórios entre os regimes de bens do próprio casamento, poderia criar diferentes efeitos sucessórios para casamento e união estável. Os efeitos sucessórios de casamento e união estável devem ser iguais, porque iguais são as relações de conjugalidade na coexistência afetiva que persiste até o fim da vida de um dos cônjuges e companheiros.

Postas estas premissas, passa-se à análise da questão constitucional submetida a esta Suprema Corte.

O art. 1790 do Código Civil estabelece, no caput, base de cálculo para a sucessão do companheiro que é diversa daquela definida no casamento: apenas os bens adquiridos onerosamente no curso da união estável, qualquer que seja a hipótese de concorrência – descendentes, ascendentes ou colaterais. No casamento, a base de cálculo é toda a herança, independente do tempo em que ocorreu a aquisição – exceto na comunhão parcial de bens, em que, na parte em que houver meação, não haverá sucessão, a qual incide apenas sobre os bens particulares.

Isso quer dizer que, na comunhão parcial de bens, o companheiro sobrevivente que concorrer com filhos do de cujus sucederá apenas na parte do acervo adquirida onerosamente durante a união estável. Se casados fossem, a sucessão seria sobre os bens particulares. Tal distinção, independentemente do resultado ser, em cada caso, mais favorável ao companheiro ou ao cônjuge, é inconstitucional, pois ocorre no âmbito de relações de conjugalidade dotadas das mesmas características, salvo, como exposto, a forma de constituição.

Assim, privilegiar o cônjuge ou o companheiro por meio da aplicação de regras sucessórias diversas é tratar de modo diferente pessoas em igual situação – conjugalidade lato sensu, originada na coexistência em comunhão de vida. Os casados não podem diretos em menor extensão que os conviventes e estes não podem ter direitos em menor extensão que os casados.

Ocorre que, quando se avança para o exame dos incisos do artigo 1790 do Código Civil, a distinção inconstitucional se mostra ainda mais flagrante – e, agora, sempre em detrimento dos conviventes. É que os quinhões do companheiro sobrevivente sobre o acervo passível de concorrência sucessória são sempre inferiores àqueles atribuídos aos casados.

Assim, em concorrência com os descendentes comuns, o cônjuge sobrevivente tem direito a quinhão igual aos que sucederem por cabeça, sendo garantida a quota mínima de 1/4 da herança, ainda que tenha mais de três filhos – art. 1832. O companheiro, na concorrência também com seus próprios descendentes não tem garantida a quota mínima de 1/4 (um quarto), sucedendo sempre por cabeça.

Na concorrência com descendentes só do autor da herança (enteados do viúvo), o viúvo, no casamento, tem direito a quinhão igual ao dos descendentes que concorrem por cabeça (1832). O companheiro, a seu turno, também na concorrência com seus próprios enteados, recebe apenas metade do quinhão que caberia a cada um deles.

Em concorrência com ascendentes, o viúvo, no casamento, recebe 1/3 (um terço) se concorrer com ambos os pais, 1/2 (metade) se concorrer com apenas um ascendente de primeiro grau, e 1/2 (metade) se concorrer com ascendentes de grau maior. Nesse caso, qualquer que seja o regime de bens do casamento, a concorrência se dá sobre toda a herança, sem diferenciar bens adquiridos antes ou depois do casamento, a qualquer título.

Na união estável, em concorrência com qualquer ascendente, em qualquer número e qualquer grau, terá apenas 1/3 (um terço) dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. Os demais bens serão de titularidade exclusiva dos ascendentes. Tudo isso, remarque-se, em relações jurídicas também idênticas: tanto o cônjuge como o companheiro sobrevivente são parentes afins dos ascendentes do outro cônjuge ou companheiro.

Inexistindo ascendentes, o cônjuge sobrevivente será herdeiro universal, qualquer que seja o regime de bens. O companheiro, a seu turno, terá apenas 1/3 (um terço) dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, cabendo os outros dois terços e todos os demais bens adquiridos a qualquer título aos colaterais, até o quarto grau.

Somente se não houver colaterais haverá atribuição ao companheiro da totalidade da herança. Todavia, mesmo nessa hipótese, eventual hermenêutica de sujeição do inciso IV ao limite do caput do 1790 permitiria afirmar que ao companheiro caberia apenas a totalidade dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. Os demais, seriam herança jacente.

Essa matemática não encontra respaldo na Constituição de 1988, pois não há guarida no texto constitucional vigente para as distinções estabelecidas entre as opções dos membros de uma família por um ou outro modelo de conjugalidade.

Tal qual acutíssimamente posto no voto do Ministro Roberto Barroso, a hermenêutica constitucional conduz a uma equiparação, em prestígio ao princípio da isonomia (art. 5º, I, e art. 226, §3º, da Constituição da República), dos regimes sucessórios dos cônjuges e companheiros, de modo a reconhecer-se, incidentalmente, no presente recurso extraordinário, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002.

Ademais, para que não se estabeleça indesejável lacuna no ordenamento jurídico quanto ao tema, deve-se aplicar para os integrantes de ambos os modelos de conjugalidade as mesmas regras, quais sejam, aquelas do art. 1.829 e seguintes do Código Civil de 2002.

Ante o exposto, dou provimento ao presente recurso extraordinário para que seja restabelecida a sentença de 1º grau.

No que diz respeito à modulação de efeitos, em nome da segurança jurídica, também acompanho a proposta do eminente Relator, declarando, por fim, que a tese, tal qual sugerida, está de acordo com o meu voto:

“É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do Código Civil de 2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do Código Civil de 2002.”

É como voto, Presidente.

ESCLARECIMENTO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Presidente, faço um pedido de esclarecimento ao Relator quanto ao alcance do voto de Sua Excelência.

De qualquer forma, registrando que sou Relator do recurso extraordinário nº 646.721, originário do Rio Grande do Sul, e a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi idêntica à conclusão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, há um terceiro Tribunal decidindo sob a mesma óptica, mas, infelizmente, esse processo, ao contrário do relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso, não ficou aparelhado para julgamento.

E devo reconhecer – já que o extraordinário subiu em 2015 – que Sua Excelência é muito mais rápido no “gatilho judicante” do que eu.

A indagação que faço é no tocante ao alcance do voto de Sua Excelência: se a igualização preconizada entre cônjuge e companheiro, ou companheira, resulta também no afastamento da linha sucessória, prevista no Código Civil, dos parentes colaterais. Porque, quanto ao cônjuge, não há menor dúvida, herda, afastando, portanto, a sucessão dos colaterais.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – A solução que proponho, Ministro Marco Aurélio, é que no art. 1.829, que cuida da sucessão legítima, onde consta “cônjuge”, leia-se também “companheiro ou companheira em união estável”.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Em última análise, Vossa Excelência, no caso da companheira, potencializa o parentesco afim em detrimento do sanguíneo, relativamente aos irmãos?

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Não. Eu dou à companheira, vamos situar nesse caso, o mesmo direito da mulher casada. Portanto, é esta a leitura que faço do art. 1.829, que estabelece a ordem de vocação hereditária.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Satisfeito, Presidente.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLOAo referir-se a união estável, Senhor Relator, Vossa Excelência abrange tanto a união homoafetiva quanto a heteroafetiva?

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Certamente sim. Eu não quis me estender nesse ponto, porque o Ministro Marco Aurélio tem um caso que envolve essa questão em termos de uniões homoafetivas.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLOÉ importante compreender no conceito de uniões homoafetivas aquelas que se estabelecem independentemente da orientação sexual ou da identidade de gênero…

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Isso. Portanto, eu concordo com esta tese. Apenas não avancei porque não era o objeto desta demanda e há uma ação específica que cuidará disso.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – É outra situação; não é o caso retratado no recurso extraordinário nº 646.721? Então, já temos um terceiro.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Há um com Vossa Excelência. Eu até fiz uma anotação aqui.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Vossa Excelência tem domínio maior dos meus processos do que tenho!

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Vossa Excelência tem um caso em que se discute se, na união homoafetiva, também haveria direito…

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – É, realmente, um terceiro; não é o caso do Rio Grande do Sul a que me referi.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Mas a resposta, Ministro Celso, é: a minha convicção é a mesma de Vossa Excelência nessa matéria.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Excelente!

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (PRESIDENTE) – Mas ela não está apenas inserida por causa do quadro fático e jurídico que nós estamos analisando.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Exatamente, e como temos adotado um sistema mais minimalista em matéria de repercussão geral…

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (PRESIDENTE) – Mais restritivo, especialmente em repercussão geral.

VOTO

O SENHOR MINISTRO TEORI ZAVASCKI – Senhora Presidente, quando eu atuava no STJ, tive a oportunidade de me manifestar a respeito do tema em obiter dictum e, na oportunidade, eu manifestei opinião no sentido da constitucionalidade desse dispositivo. Fiz isso, evidentemente, influenciado pela própria legislação, que, em matéria de regime patrimonial, atribuía possibilidade de configurações diferentes ao próprio casamento, de modo que não via razão para declarar a inconstitucionalidade da opção do legislador de estabelecer regimes diferentes para efeitos sucessórios. Essa foi a opinião que eu manifestei na época. Todavia, eu reconheço que não é a solução correta.

Eu quero, desde logo, dizer que estou acompanhando o Relator e o Ministro Luiz Edson Fachin, cujos votos me convenceram de que, realmente, há aqui um tratamento discriminatório em relação a essa entidade familiar decorrente de união estável.

É preocupante, certamente, aquilo que foi colocado da tribuna em relação à prova da união estável, porque casamento se prova com facilidade, mediante uma simples certidão de quem comparece no cartório. A união estável é uma união formada à base de fato, mas ela tem uma configuração muito bem delineada, no Código Civil, no art. 1.723:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Parece-me que, aqui, fica, desde logo, descartada a união estável na hipótese de simples test drive. É claro que isso aqui demanda uma configuração probatória que, na prática, é difícil. Mas isso é outro problema. Nós estamos falando de uma união estável demonstrada com essas características; e uma união estável demonstrada com essas características, essa entidade familiar com essas características não tem razão alguma para ser discriminada em relação a outra união estável – ou que até pode nem ser tão estável assim – pela simples razão de ser demonstrada através de uma certidão de casamento.

Substancialmente, há aqui, parece-me, nessa discriminação, uma irrazoabilidade que não é compatível com a Constituição. Então, eu vou acompanhar o Relator, o Ministro Luís Roberto, inclusive quanto à formulação da tese e à modulação de efeitos.

Texto publicado sem revisão.

ANTECIPAÇÃO AO VOTO

A SENHORA MINISTRA ROSA WEBER – Senhora Presidente, Senhores Ministros, eu começo dizendo que ouvi com verdadeiro deleite intelectual o brilhante voto do Ministro Luís Roberto, com a complementação, também riquíssima, trazida pelo Ministro Fachin. Da mesma forma, fiquei muito confortada com a manifestação e o belíssimo voto do Ministro Teori Zavascki quando noticia a alteração da sua compreensão inicial, quando estava no Superior Tribunal de Justiça.

E digo isso, Senhora Presidente, porque, cabendo a mim votar, neste momento, tivesse o Ministro Teori Zavascki inaugurado uma divergência, eu iria talvez cansá-los com o meu voto que, pela delicadeza da matéria, trouxe por escrito. Depois de muita reflexão, de ponderar os argumentos bem lançados nos pareceres recebidos, e agora reiterados nas duas competentíssimas sustentações orais, concluí na mesma linha dos que me antecederam. Basta-me, portanto, acompanhá-los, seguindo a orientação do Ministro Marco Aurélio que sempre diz que, quando vamos concordar, não há necessidade de nos estendermos. Destaco, apenas, e para homenageá-los, o magistério doutrinário, que trago em meu voto, de Maria Berenice Dias, minha colega de turma na Faculdade de Direito de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e de José Carlos Teixeira Giorgis, ilustre desembargador gaúcho de Bagé.

Por isso, Senhora Presidente, limito-me a dizer que provejo o recurso extraordinário. Farei a juntada da declaração de voto. Acompanho o eminente Relator na tese conclusiva proposta e, ainda, quanto aos efeitos prospectivos da decisão.

É o voto.

A Senhora Ministra Rosa Weber: Cuida-se de Recurso Extraordinário, admitido por esta Corte Suprema sob o regime da repercussão geral, em razão de ultrapassar os interesses jurídicos, políticos, econômicos e sociais das partes, nos termos do art. 102, § 3º, da CF/1988 e art. 1.035, § 1º, do CPC/2015, objeto do Tema 809. O problema inerente a este Recurso Extraordinário, em linha hermenêutica, gira em torno da interpretação conjunta dos artigos 5º e 226, § 3º, da Constituição Federal e da compatibilidade constitucional do artigo 1.7901 do Código Civil, para que esta Suprema Corte, guardiã e intérprete maior da Carta Magna, estabeleça se é constitucional ou não a distinção estabelecida pelo legislador entre o (a) companheiro (a) e o (a) cônjuge para fins sucessórios, a partir do caso concreto.

O eminente Relator, Ministro Roberto Barroso, em seu douto voto, entendeu que a diferenciação entre os regimes sucessórios estabelecidos pelo legislador para as pessoas casadas e para as pessoas unidas em união estável se ressente de higidez constitucional pela indevida hierarquia entre entidades familiares (casamento e união estável) e violação da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade (em sua feição de vedação da proteção deficiente) e da vedação ao retrocesso. Reconheceu, pois, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, determinando a aplicação à união estável das regras sucessórias do art. 1.829 do mesmo Código, relacionadas ao regime sucessório das pessoas casadas, com modulação dos efeitos de modo a alcançar apenas os processos judiciais em que não tenha havido ainda o trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como as partilhas extrajudiciais nas quais ainda não lavrada escritura pública.

Há sem dúvida a necessidade de resposta jurisdicional forte no em tratamento baseado no postulado da igualdade, a partir do texto constitucional, com vista a definir se a desigualação realizada pelo legislador (entre os regimes sucessórios do casamentos e da união estável) é razoável e constitucionalmente adequada. De uma maneira geral, como recordado por ARNLD WALD, o problema sucessório do (a) cônjuge, e por analogia, o do (a) companheiro (a), está ligado ao regime de bens [2] e, portanto, também há de ser analisado por este viés.

É que a Constituição Federal de 1988, quando dispõe sobre a igualdade, consagra-a como princípio geral, aplicável em diversos pontos e com distintos graus de incidência, pois exige igualdade de aplicação do direito em geral (igualdade perante a lei) e a igualdade na criação do direito (igualdade da lei) [3], embora no campo de aplicação se possa falar em “inesgotabilidade conceitual” da igualdade, decorrente da mutabilidade social que impõe o acompanhamento da igualdade “às novas concepções políticas e sociais” [4].

Divido o voto em tópicos, como forma de melhor permitir sua compreensão.

1. Recordo inicialmente que na origem a autora pleiteou, em “Ação Declaratória de Reconhecimento de União Estável pós Morte c/c Petição de Herança e Direito Real de Habitação“, o reconhecimento de vínculo estável entre ela e seu companheiro, por terem convivido de 01.12.2000 até 18.5.2009, quando do falecimento dele, durante aproximadamente 9 (nove) anos, portanto, sem prole comum, não tendo deixado o companheiro ascendentes nem descendentes, apenas três irmãos, na linha colateral.

Na discussão travada nos autos, observo que os irmãos do falecido impugnaram a pretensão, mediante peça subscrita pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, alegando, em síntese, que a autora não faria jus a receber a totalidade da herança, limitada sua participação na sucessão a 1/3 dos bens deixados pelo de cujus, nos termos do art. 1.790, inciso III, do Código Civil.

A sentença, ao entendimento de que a distinção sobre o regime sucessório entre o (a) companheiro (a) e o (a) cônjuge não seria constitucionalmente adequada, “por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento“, excluiu da sucessão os parentes colaterais e deferiu à autora a totalidade da herança.

No entanto, tal decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça, à compreensão de que “o ordenamento jurídico constitucional não impede que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma diferenciada, visto que respectivas entidades familiares são institutos que contêm diferenciações”.

Oportuno destacar, aqui, dados do IBGE de 2012 (os recentes números igualam as uniões decorrentes de casamentos e/ou uniões estáveis), reveladores de que em dez anos o número percentual de pessoas em relações estáveis subiu de 28,6% para 36,4%, representando o equivalente a 1/3 do número de casamentos no país, enquanto reduzido o percentual de pessoas unidas através do casamento civil e religioso (49,4% para 42,9), do casamento apenas religioso (4,4% para 3,4%), e do casamento apenas civil (17,5% para 17,2%).

Com relação às pessoas do mesmo sexo, em 2014, foram registradas 4.854 uniões, representando um aumento de 31% em relação aos números registrados no ano anterior, sendo 50,3% entre mulheres, e 49,7% entre homens. Relevantes, igualmente, os números relativos ao divórcio [5 ]e aos “recasamentos” [6], que potencializam a união entre pessoas de qualquer sexo, uma vez que a tendência humana, como seres gregários, é a de se unirem em novas relações que precisam ser reguladas, considerando, ainda, a morte como elemento inafastável da vida.

2. Necessária breve digressão a propósito do panorama do Direito Civil brasileiro sobre o tratamento igualitário entre o homem e mulher, a indicar que o instituto da herança ab intestato relacionado à participação da própria mulher casada já passou por diferenciação não razoável, e que as Ordenações do Reino traziam tratamento inaceitável, como também inaceitável, do ponto de vista constitucional, a diferenciação do tratamento sucessório entre mulheres casadas e companheiras.

A referência às mulheres companheiras como destinatárias mais usuais da norma (artigos 1790 e 1829 do Código Civil deve-se ao fato de que, segundo dados do IBGE, de 2015, vivem elas, em média, 7,2 anos a mais que os homens, com uma expectativa de vida de 78,8 anos, contra 75,2 dos homens, ao que se acresce fato de o número de mortes violentas e em acidentes de trânsito vitimar preponderantemente os homens.

Agregue-se a esses dados a referência de que o Brasil é um dos países com maior número de uniões e casamentos infantis (considerados aqueles ocorrentes entre meninos e meninas de 10 a 18 anos), nos quais as meninas se unem a homens mais velhos (em geral nove anos mais velhos), sobretudo em locais carentes, nos termos de importante pesquisa realizada [7].

A questão primordial a ser formulada, sob as lentes da igualdade por meio do enfoque da historiografia jurídica, visa a saber qual a dimensão de família adotada pelo ordenamento jurídico, e se ela permite tratar diferentemente – e, portanto de maneira discriminatória – os efeitos patrimoniais decorrentes dos aspectos sucessórios do casamento e da união estável. A Constituição Federal, a propósito, baliza suas dimensões de família desde os lindes normativos do artigo 226, que reproduzo:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Como se vê, a Constituição engloba no conceito de família o casamento civil, o casamento religioso, as uniões estáveis e seus variados vínculos, que formam as famílias monoparentais, as famílias anaparentais, as famílias unipessoais, as famílias pluriparentais, as famílias eudemonistas etc.

É que, como observa JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS [8], o termo entidade familiar, “cinzelado em granito constitucional”, tal como previsto na Constituição de 1988, representou a ruptura com um modelo jurídico em que só havia uma conjugalidade, e no qual o matrimônio era o único modelo juridicamente admitido para a formação das linhagens. A ruptura foi tão profunda, que inclusive as famílias chamadas de “solitárias” possuem a proteção constitucional, a ponto de até mesmo as pessoas solteiras, separadas ou viúvas” serem albergadas pela proteção do bem de família, como reconhecido pelo Enunciado nº 364 da Súmula da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

É importante registrar que transitamos, historicamente, da Ginecocracia [9] para os arranjos plurais, com o tendente declínio do patriarcalismo, num sentido em que a história das famílias é “um roteiro de rupturas sucessivas, onde os agrupamentos se acomodam às mudanças das épocas: família romana, família patriarcal; depois família nuclear, a eudemonista, a pós-moderna; também a família homoafetiva e a família solitária; as famílias simultâneas e as reconstruídas” [10].

A “cara da família mudou”, conforme observa também MARIA BERENICE DIAS [11], ao mencionar que o elemento central para o atual marco normativo-constitucional não é outra coisa senão a presença dos laços de afetividade:

“A “cara” da família moderna mudou. O seu principal papel é de suporte emocional do indivíduo, em que há flexibilidade e, indubitavelmente, mais intensidade no que diz respeito a laços afetivos. Difícil encontrar uma definição de família de forma a dimensionar o que, no contexto social dos dias de hoje, se insere nesse conceito. E mais ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento, ou seja, pessoas ligadas pelo vínculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, o pai como a figura central, na companhia da esposa e rodeados de filhos, genros, noras e netos. Essa visão hierarquizada da família, no entanto, sofreu com o tempo uma profunda transformação. Além de ter havido uma significativa diminuição do número de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis. A emancipação feminina e o ingresso da mulher no mercado de trabalho levou-a para fora do lar. Deixou o homem de ser o provedor exclusivo da família passando a ser exigida a sua participação nas atividades domésticas. O afrouxamento dos laços entre Estado e Igreja acarretou uma profunda evolução social e a mutação do próprio conceito de família, que se transformou em verdadeiro caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua constituição e se consolida em cada geração. Começaram a surgir novas estruturas de convívio sem uma terminologia adequada que as identifique. Famílias formadas por pessoas que saíram de outras relações, sem que seus componentes tenham lugares definidos. Os novos contornos da família estão desafiando a possibilidade de encontrar-se uma conceituação única para sua identificação.

Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independente de sua conformação.” Importante ressaltar, com efeito, algumas dimensões da igualdade/desigualdade, tais como: (1) princípio ou regra, (2) como regra de justiça, (3) como direito fundamental, (4) como ideal político, (5) como valor moral, e, (6) como solidariedade, afigurando-se necessária a evidenciação de que existem ao menos três modos de aplicar a igualdade, como aponta o jurista JEFFERSON CARÚS GUEDES, baseado em MARIA JOSÉ FALCÓN Y TELLA, a saber:

tratamento igualitário, tratamento proporcional e tratamento equitativo. O primeiro é aquele que considera merecido o tratamento igual aos iguais; o segundo ocorre quando o trato é desigual aos desiguais, na proporção das desigualdades, sendo ambos quantitativos e numéricos; ao passo que o último, tratamento equitativo, se ampara em valores e não em quantidades ou medidas” [12].

No caso da proteção às famílias, a Constituição Federal adotou tratamento protetivo igualitário, albergando todas as modalidades mencionadas sob o manto protetor do reconhecimento formal e substancial. Não se admite, portanto, diferenciação discriminatória, se a própria Lei Fundamental não abraça tipologias de famílias preferenciais ou de primeira e/ou segunda ordem, consagrando isto sim verdadeiro direito fundamental de tratamento familiar igualitário.

Estamos diante da premissa de que alguns direitos fundamentais são garantidores não só de direitos subjetivos, mas também de instituições, objetivamente consideradas, ou seja, enquanto as chamadas garantias de instituto (Institutsgarantien) garantem instituições de direito privado, as garantias institucionais (institutionelle Garantien) garantem instituições de direito público, no sentido de que o legislador não pode extinguir o casamento (ou a união estável) nem a família, e os dispositivos normativos em que estão previstos também garantem – simultaneamente – o direito subjetivo de celebração do casamento (ou do reconhecimento da união estável) e de constituição de família [13].

Por esse mesmo raciocínio, “a família” protegida pelo casamento não apenas se transformou – e já não é mais o que era em passado remoto, representado pela frase latina “Nuptiae sunt conjunctio maris et feminae et consortium omnis vitae, divíni et humani juris communicatio [14] (D. 23.2.1)”, identificada pela tríplice identificação: Conjunctio (a união), Consortium (vínculo indissolúvel), e, Communicatio (sacralidade do matrimônio), mas também, como forma de proteção, se encontra vinculada institucionalmente ao tratamento igualitário entre todas as formas familiares, e portanto o regramento discriminatório de uma tipologia familiar equivale a violação do direito fundamental enquanto garantidor do instituto e da instituição: e.g., a família enquanto decorrente (também, mas não apenas) da união estável e o direito ao seu reconhecimento, e as consequências normativas dai advindas, como no caso da sucessão.

Este Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo em 2011, na ADPF 132/RJ e na ADI 4277/DF, o fez a partir da densificação do conceito “das famílias” que está vinculado aos “princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da vedação de discriminações odiosas, da liberdade e da proteção à segurança jurídica”.

Embora devam ser guardadas as devidas proporções, também é significativo que, quando a Suprema Corte americana reconheceu o direito ao casamento entre as pessoas do mesmo sexo (como direito fundamental ao casamento entre pessoas do mesmo sexo) no caso Obergefell v. Hodges, 576 U.S. (2015), o fez a partir de narrativa historiográfica do casamento, e se baseou primacialmente em uma questão de gênero, com destaque para o fato de que à medida que a condição da mulher ia mudando, a instituição “casamento” também ia se alterando [15], uma vez que sob a ótica da então vigente “doutrina da coverture” (the doctrine by which a married man and woman became a singlelegal entity), um homem e uma mulher casados eram tratados pelo Estado como uma individualidade, consistente em uma entidade dominada pela precedência do homem.

Tal questão também é observada a partir da historiografia jurídica da mulher no Brasil, uma vez que a mulher era considerada relativamente incapaz pelo Código Civil de 1916, figurando ao lado dos menores de idade, dos pródigos e dos silvícolas, conforme preceituavam os artigos 6º, inciso II, e, 178, § 7º, inciso VII, além do impedimento para casamento disciplinar idades mínimas diferentes para o homem e para a mulher, respectivamente 18 e 16 anos, conforme o art. 183, XII, bem como o estabelecimento do marido como “chefe da sociedade conjugal”, a quem competia autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do leito conjugal, e ainda, a administração dos bens comuns, e dos bens particulares da mulher, conforme art. 233, incisos II e IV, situação alterada apenas em 1962 com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada.

O acidentado caminho, da construção à sedimentação normativa, do princípio da igualdade (e seus subprincípios) certamente comportaria vasta digressão, que foge, contudo, aos limites do objeto do presente feito.

3. Breve abordagem historiográfica se impõe para evidenciar as raízes não razoáveis da distinção de tratamento jurídico dado à mulher no aspecto patrimonial, de pronto identificáveis no direito pátrio influências portuguesa, romana e germânica.

Trata-se, a toda evidência, de temática que diz com o transplante de ideias jurídicas, vinculado à influência que um determinado ordenamento exerce sobre outro, aspecto identificado com precisão por ARNALDO GODOY [16], no que se refere às raízes de filogermanismo em TOBIAS BARRETO, que viria a influenciar toda uma geração de juristas responsáveis pela elaboração do Código Civil de 1916, bem como, nas percepções de OTAVIO LUIZ RODRIGUES JÚNIOR [17], que bem identificou a influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX.

No caso brasileiro, as influências possuem relações evidentes com as transformações sofridas pelo próprio Direito português, que para cá foi trazido, razão pela qual, como observou ANTÔNIO DOS SANTOS JUSTO [18], professor da Universidade de Coimbra, ao aportarem no Brasil os portugueses trouxeram para cá o seu Direito, “que tem como termo a quo, a independência de Portugal que ocorreu acerca do ano 1140“, cujos antecedentes remontam aos primitivos povos (Iberos, Celtas, Celtiberos, Lusitanos) e aos invasores (Gregos, Fenícios, Cartagineses, Romanos, Germanos e Árabes), que influíram na regulação jurídica, além, evidentemente, da franca influência do Direito Germano (especialmente o código Visigótico) e do Direito Romano.

Vale recordar a poderosa linguagem metafórica de PONTES DE MIRANDA quanto ao fato de o direito brasileiro não poder ser apreendido desde suas sementes, pois “nasceu do galho de planta que o colonizador português – gente de rija têmpera, no ativo século XVI e naquele cansado século XVII em que se completa o descobrimento da América – trouxe e enxertou no novo continente” [19].

Conforme anota JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES [20], a romanização do direito português se deveu, em grande parte, às Ordenações Manuelinas, Afonsinas e Filipinas, e essa influência se fez sentir no direito brasileiro:

“Com efeito, se grande parte dos princípios nelas inseridos foram tomados de empréstimo ao direito romano, ou, pelo menos, neste inspirados, suas lacunas não tiveram papel menor na incorporação das regras romanas ao direito luso. Isso se deveu à utilização das fontes subsidiárias para o preenchimento dessas lacunas. Já as Ordenações Afonsinas estabeleciam que nos casos não disciplinados pelas leis do Reino, pelos estilos da Corte, ou pelos costumes, aplicar-se-iam as leis imperiais (direito romano) ou, em matéria que envolvesse pecado, os sagrados cânones (direito canônico); e, na ausência de norma romana ou canônica, mister seria que se observassem as glosas de Acúrsio, e, na insuficiência destas, as opiniões de Bártolo, ainda que delas dissentissem os demais doutores. Nesse sistema de fontes subsidiárias, foram introduzidas duas alterações pelas Ordenações Manuelinas: as leis imperiais (o direito romano) somente se deviam guardar pela boa-razão em que eram fundadas, e as glosas de Acúrsio e as opiniões de Bártolo não deveriam ser aplicadas se contrárias ao entendimento comum dos doutores. A propósito, nada se modifica nas Ordenações Filipinas.”

No entanto, o uso abusivo do direito romano no direito português levou os iluministas a se contraporem a tal prática, que predominava na praxe forense portuguesa, a partir da reação iniciada a favor do direito lusitano, inicialmente com o Marquês de Pombal, e consagrada a partir da Lei de 18 de agosto de 1769, a Lei da Boa-Razão – assim batizada nos comentários críticos realizados por JOSÉ HOMEM CORREA TELLES [21], ainda segundo preciosas lições de MOREIRA ALVES:

“Nas Ordenações Manuelinas e Filipinas, havia uma restrição ao direito romano como fonte subsidiária: as leis imperiais só se deviam guardar pela boa-razão em que eram fundadas. Omitiam-se, porém, ambas essas Ordenações quanto ao sentido dessa expressão. Nos mais de cento e cinquenta anos que medeiam entre as Ordenações Filipinas e a Lei da Boa-Razão, tanta foi a força que ganhou o direito romano que Luiz Antônio Verney, em 1746, criticando os estudos jurídicos em Portugal na primeira metade do século XVIII, exclamava: “Sem dúvida, é digno de admiração que saiam os homens das Universidades falando muito nas leis de Justiniano, que só servem faltando a lei municipal, e nada saibam daquela lei por que se hão de governar” [22].

Grande parte dos princípios inseridos nas Ordenações do Reino remonta ao direito romano, seja pela inspiração ou mesmo pelas lacunas dos textos, por causa da utilização das fontes subsidiárias empregadas para o preenchimento das lacunas, uma vez que havia previsão de que “nos casos não disciplinados pelas leis do Reino, pelos estilos da Corte ou pelos costumes”, deveriam ser aplicadas as leis imperiais (direito romano), e nas matérias que envolvessem a noção de pecado, a aplicação se daria a partir dos sagrados cânones (direito canônico), e ainda que houvesse ausência de norma romana ou canônica, seriam aplicadas as glosas de Acúrsio, e também as opiniões de Bartolo, mesmo que contrariassem as opiniões dos doutores [23].

Foi justamente neste sistema de fontes subsidiárias que se introduziram alterações nas Ordenações do Reino, através das quais se estabeleceu que o direito romano somente deveria ser aplicado se guardasse a “boa-razão”, e as glosas de Acúrsio e as opiniões de Bartolo somente incidiriam se não contrariassem as demais opiniões dos doutores [24].

É importante registrar, no entanto, que a influência romana – através das Ordenações do Reino, se fez sentir mais forte no Brasil que em Portugal, uma vez que com a proximidade da independência do Brasil, e a reação portuguesa ao direito romano, que a Lei de 20 de outubro de 1823 determinou que permanecesse em vigor a legislação portuguesa promulgada até 25 de abril de 1821, muito embora as Ordenações Manuelinas e Filipinas trouxessem uma restrição ao direito romano como fonte subsidiária, pois as leis imperiais só deviam ser aplicadas, conforme registrado, através da “boa-razão” em que estivessem fundadas, apesar de não estar inicialmente claro o sentido da expressão, até que, mais de cento e cinquenta anos depois, conforme mencionado, a “Lei da Boa-Razão” alterasse o emprego e o uso das fontes subsidiárias [25].

Tal fato é digno de registro, e importante para a construção do raciocínio, Senhor Presidente, pois conforme recordado por ARNALDO WALD, a partir da normatividade das Ordenações do Reino a mulher só herdava ab intestato após os colaterais, e tal situação apenas fora alterada depois da promulgação da Lei Feliciano Pena (Decreto nº 1839/1907), que modificou a ordem sucessória [26] para colocar o cônjuge em relação de preferência sobre os colaterais [27].

Sobre o tratamento diferente entre homens e mulheres, PONTES DE MIRANDA já observava, em 1928, o que chamou de “dissimetria absurda” estabelecida pelo Código Civil de 1916, em que o pai, viúvo, que se casasse, não perderia o usufruto dos bens do filho do leito anterior, mas a mãe viúva que contraísse novas núpcias o perderia, quando o referido jurista trata do tema a partir das categorias que chama de simetrias/dissimetrias intraindividuais, e de simetrias/dissimetrias interindividuais, que fortemente marcou o Código anterior [28].

A propósito, ainda com PONTES DE MIRANDA, a diferença de tratamento operada entre os homens e as mulheres, no velho direito das ordenações portuguesas, que vigeram no Brasil até 1917, não era concedido pátrio poder à mulher, em uma realidade na qual os fueros restringiam a sua capacidade: a filha, inclusive a viúva ou esposa, não podiam comparecer em juízo, nem assumir obrigação sem assistência dos parentes ou marido, com a previsão da permissão de castigos físicos e cárcere privado pelo tempo que “exigisse a emenda”, bem como “outras limitações derivadas do direito romano e canônico, que tornavam assaz inferior a condição da mulher” [29].

De fato, as Ordenações Filipinas, criadas em 1595 e ratificadas em 1603, no Livro IV, Título 91 (Como o pai e mãe sucedem na herança do filho e não o irmão), deixam patente o tratamento patrimonial destinado à mulher, que no caso de sucessão encontrava proibição de convolar novas núpcias, para poder suceder (e que, aliado à expectativa de vida maior da mulher, como observado, a torna a destinatária mais patente da norma), expondo às vísceras normativas do sistema legal patrimonialista, ressaltando a lógica da limitação:

Título XCI: Como o pai e a mãe sucedem na herança do filho, e não o irmão. Finando-se o filho, ou filha, sem testamento em vida de seu pai, ou mãe, ou de ambos, o pai e mãe, ou qualquer deles, que vivo for ao tempo, herdará todos seus bens e fazenda, posto que haja outros filhos irmãos do defunto, porque o pai e mãe excluem em todo os irmãos do defunto de sua herança.

1. E falecendo o filho, ou filha com testamento, e sendo em idade para com direito o poder fazer, quer seja emancipado, quer esteja em poder de seu pai (nos casos, em que o filho, que está sob poder de seu pai, pode fazer testamento), deve necessariamente deixar as duas partes de seus bens à seu pai, ou a mãe, se os tiver, e da terça parte poderá ordenar, como lhe aprouver. E isto mesmo haverá lugar no avô e avó, e outros ascendentes, porque onde houver ascendente, não herdará o irmão.

2. Porém, se o filho, ou filha, que tiver bens, que houve do patrimônio, ou herança de seu pai, ou do avô da parte do pai, se finar ab intestato sem descendentes, e sua mãe lhe suceder nos ditos bens, e ela se casar com outro marido, ou já ao tempo que sucedeu, era casada, se ela do primeiro marido tiver outro filho, ou filhos, irmãos do filho defunto, haverá sua mãe o uso e fruto somente dos ditos bens em sua vida; os quais não poderá alhear, nem obrigar nem haverá o segundo marido parte da propriedade deles. E por falecimento dela os haverão livremente os filhos do primeiro matrimônio, que por falecimento de sua mãe ficarem vivos, sem os filhos do segundo matrimônio em os ditos bens suceder, nem haver neles parte alguma. E se ao tempo do falecimento de sua mãe não ficarem filhos vivos do primeiro matrimônio, posto que fiquem netos, filhos de algum dos ditos filhos, não haverá lugar a disposição desta Lei.”

Tais dispositivos normativos, observo, não podem ser analisados isoladamente. Para a mesma reflexão, o tratamento conferido à mulher viúva, que sucede ao marido, conforme Título 94 (mesmo título) das referidas Ordenações:

“Falecendo o homem casado ab intestato, e não tendo parente, até o décimo grau contado segundo o Direito Civil, que seus bens deva herdar, e ficando sua mulher viva, a qual juntamente com ele estava e vivia em casa teúda e manteúda, como mulher com seu marido, ela será sua universal herdeira.

E pela mesma maneira será o marido herdeiro da mulher, com que estava em casa manteúda, como marido com sua mulher, se ela primeiro falecer sem herdeiro até o dito décimo grau. E nestes casos não terão que fazer em tais bens os nossos Almoxarifes.”

Por consequência, a mulher viúva que, após o falecimento do marido, tendo filhos, e, em idade avançada (de cinquenta anos), viesse a se casar novamente, encontraria restrições sucessórias, conforme o Título CV das Ordenações:

“Das mulheres viúvas que casam de cinquenta anos, tendo filhos. Quando alguma mulher casar, sendo de cinquenta anos, ou dai pra cima, tendo filhos, ou outros descendentes, que por Direito lhe possam suceder, não poderá alhear, por título algum que seja, em sua vida, nem ao tempo de sua morte, as duas partes dos bens que tinha ao tempo, que concertou de se casar, nem as duas partes dos bens que depois de ser casada, houve por qualquer título de seus ascendentes, ou descendentes, e somente poderá dispor da terça dos ditos bens à sua vontade. E alheando as duas partes, por qualquer modo que seja, havemos a tal amealhação por nenhuma e de nenhum vigor. E se ao tempo de sua morte, não tiver descendentes, ou ascendentes, as duas partes, que mandamos, não possa alhear, ficarão aos parentes mais chegados, e da terça poderá testar à sua vontade. E tendo bens que haja de nomear, em nenhum deles poderá nomear o marido, com que na tal idade casar.”

Também registro o tratamento conferido à viúva que se casava antes de decorrido o prazo de “ano e dia”, nos termos do Título CVI das Ordenações, numa tentativa de superação do gravoso tratamento que antes era conferido às mulheres que se casavam em segundas núpcias, uma vez que pela normatização anterior, que deita raízes no direito romano (e também o Código Visigótico Livro III, Título I, que proibia o casamento da viúva antes de um ano da morte do marido), o viúvo ou viúva que passasse a segundas núpcias perdia a dignidade do primeiro matrimônio, a tutela dos filhos, a propriedade dos bens havidos do primeiro cônjuge ou por suceder a seus filhos, os bens deixados com a condição de permanecer em viuvez, e o direito de revogar, por ingratidão, as doações feitas aos filhos do primeiro matrimônio, além de não poder doar ou deixar ao segundo cônjuge mais do que tocar a um dos filhos:

“Das viúvas que casam antes do ano e dia. As viúvas que se casarem antes de ser passado ano e dia, depois da morte dos maridos, não sejam por isso infamadas, nem os que com elas casassem, nem lhes levem por isso penas algumas, de dinheiro.”

O tratamento conferido à mulher, a partir da normatização nas Ordenações, era verdadeiramente o de propriedade do marido, como se pode observar do famoso Livro V das mesmas Ordenações Filipinas, sendo importante registrar disposição, com pena capital, para o infiel que dorme com uma cristã (Título XIV [30]), ou a proibição para qualquer que entre em Mosteiro e Durma com Freira (Título XV [31]), ou a penalidade prevista para quem dorme “com a mulher, que anda no Paço, ou entra em casa de alguma pessoa para dormir com mulher virgem, ou viúva honesta, ou escrava branca de guarda” (Título XVI).

Digna de reflexão é a previsão de inusitado dispositivo proibitivo, no sentido de que se alguém casasse com mulher virgem ou viúva honesta, menor de 25 anos à força, receberia penalidade, excepcionada esta se o homem possuísse mais patrimônio que o pai da mulher (Título XXII), ou a disposição normativa permissiva de que o homem matasse sua mulher por ela ter cometido adultério, e também aquele que com ela fosse apanhado, exceto se o marido fosse “peão” e o outro possuísse maior status, e consequentemente patrimônio:

Título XXXVIII. Do que matou sua mulher, por achá-la em adultério. Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim ela, como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero Fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso, mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa, que matar, não passando de três anos.”

Essa condição feminina no direito brasileiro, como observado, é refletida na restrição patrimonialista, que a considerava não apenas como propriedade do marido, mas também impunha severas disposições limitadoras da transmissão do patrimônio através da sucessão. Tais influências são perceptíveis, e impuseram severos desdobramentos legislativos.

Não se pode esquecer, a propósito, da regulamentação então prevista no art. 17 do Decreto-Lei nº 3.200/1941, alterado pelo Decreto Lei nº 5187/1943, para melhorar a situação da mulher brasileira casada com estrangeiro, que concedia direito a 1/4 dos bens deixados pelo marido, se houvesse concorrência de colateral [32], ou a linguagem normativa da Lei nº 883/1949, baseada em diferenciação hoje inaceitável, que estendeu à concorrência da mulher com o filho adulterino reconhecido (chamado de filho ilegítimo pela lei [33]).

O caminho normativo da legislação brasileira sobre o tratamento conferido à mulher, a partir das influências que sofreu, e as consequências de tal tratamento provocam até os dias de hoje resultados repelidos pela Constituição Federal, como a distinção entre duas “classes” de mulheres: as unidas através do matrimônio e as unidas através da união estável. Embora o homem também esteja sujeito ao mesmo regramento, a condição feminina, a partir do resgate historiográfico, é que fica refletida como mote de tal discriminação.

Nessa perspectiva é que se há de aferir a constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, uma vez fortemente marcado o modelo normativo brasileiro por uma “continuidade jurídica dentro da tradição cultural proveniente das Ordenações”, pois nele, “a ruptura entre o antigo e o novo se fez de forma bem mais sutil do que nos países europeus”. [34] Registro que o projeto de reforma do Código Civil de 1916 (o anteprojeto Orlando Gomes [35]), apresentado em 1963 para alteração da codificação civil então em vigor, foi rejeitado por ser considerado “divorcista”, como referido por GIORDANO BRUNO SOARES ROBERTO [36], refletindo a resistência à alteração da condição da mulher, pois contemporâneo à promulgação do Estatuto da Mulher Casada.

Mais do que isso, é preciso ter em mente que os códigos, como é da tradição brasileira, são representativos da perene disputa entre razão (ratio) e autoridade (autorictas), significando um sistema, vale dizer, um modo de ordenar as matérias do Direito, aliado a existência de razões históricas que conjugam um elemento técnico (o sistema) e um elemento político [37].

4. Registrados alguns aspectos da historiografia jurídica da condição normativa da mulher, analiso, no particular, o atual regramento da sucessão dos companheiros no Código Civil, tendo em vista pressupostos relativos ao modelo familiar previsto desde o artigo 226 da Constituição Federal, e as imperiosas relações de igualdade que devem presidir as entidades familiares, que não admitem a existência de famílias de primeira e de segunda categoria, e cujo elemento central deve ser a afetividade.

Conforme SÍLVIO DE SALVO VENOSA, o art. 1.790 do Código Civil transmite a impressão de que o legislador teve “rebuços” em classificar o companheiro ou companheira como herdeiros, no intuito de “evitar críticas sociais”, valendo-se de eufemismo para dizer que “o consorte da união estável ‘participará’ da sucessão, como se pudesse haver ummeio termo entre herdeiro e ‘mero participante’ da herança. Que figura híbrida seria essa senão a de herdeiro!” [38].

O referido doutrinador, em observação atilada, menciona que a má redação e engenharia normativa da disciplina da sucessão dos (as) companheiros (as) no art. 1.790 do Código Civil não são integralmente desvantajosas quanto ao regime de sucessão entre as pessoas casadas.

Haveria, em determinado ponto, um tratamento privilegiado, pois elevada a distinção normativa dos companheiros quando admitido que concorressem na herança com descendentes e outros parentes no que toca à sucessão sobre bens adquiridos onerosamente na vigência da união, chocando-se com o disposto no art. 1.829, inciso I, do mesmo Código, que impõe ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrer na herança com descendentes de maneira restrita a alguns tipos de regime de bens, excluída expressamente a hipótese de casamento nos regimes de comunhão universal, da separação obrigatória ou na comunhão parcial, desde que ausentes bens particulares [39].

Em todo caso, sobre a sucessão pelo (a) companheiro (a), destaquese, com PABLO STOLZE RODOLFO PAMPLONA, que causa espécie a localização topográfica das regras do art. 1.790 do Código Civil, pois inadvertidamente o legislador inseriu regramento específico da sucessão legítima pelo (a) companheiro (a) viúvo (a) entre as regras gerais e postulados principiológicos do Direito das Sucessões, capaz de gerar preconceitos sub-reptícios, além de seu conteúdo não ser bom, conforme asseveram, padecendo de inconstitucionalidade. [40]

Tal inconstitucionalidade, no entender dos referidos autores, decorre da violação da proibição de retrocesso uma vez que o legislador minimizou e praticamente aniquilou os direitos sucessórios do (a) companheiro (a) viúvo (a), haja vista que legislação anterior e a jurisprudência já haviam caminhando no sentido do reconhecimento da equiparação dos direitos entre cônjuge e companheiro (a), ainda que de forma lenta e insuficiente. [41]

O dispositivo normativo previsto no art. 1.790 do Código Civil, além do vício da inconstitucionalidade, também padece de outras insuficiências, como aponta a doutrina, até por não prever uma situação corriqueira, qual seja, a existência tanto de filhos comuns quanto de filhos de um só dos companheiros. Em interpretação literal da norma, se o companheiro (a) supérstite concorrer na sucessão com filhos comuns do casal, ele (a) herdará por igual, tendo direito a uma cota equivalente à atribuída ao filho, mas, se por outro lado, houver concorrência com descendentes somente do (a) autor (a) da herança, exclusivos dele (a), terá direito apenas à metade do que couber a cada um deles. Já para a hipótese de hibridismo, quando há concorrência tanto de filhos comuns quanto de filhos de apenas um dos companheiros, o Código não apresenta solução.

Portanto, é possível observar a faceta complexa do exame da sucessão do companheiro prevista no art. 1.790 do Código Civil, que também pode requerer aplicação para a hipótese de concorrência entre o companheiro supérstite com filhos exclusivos e comuns do de cujus. Tal questão, da maneira como regulada para o caso de sucessão entre cônjuges, assim como disposto no art. 1.832 do mesmo Código, parece indicar que o problema central seria o regime de bens, para falar em tratamento paritário entre os dois modelos de sucessão.

O regime de bens na união estável, se não pactuado de outra forma, como consabido, é o da comunhão parcial, mas admitida opção por outro regime, caso seja a vontade do casal, nos termos do art. 1.725 do Código Civil, que expressamente dispõe:

Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”

Desta maneira, há parcial identidade com o casamento, no que se refere ao regime de bens mais comum (comunhão parcial de bens), na hipótese de não haver outra opção pelo casal, além de permitir alteração de regime, conforme artigos 1.536 e 1.640 do Código Civil, bem como a disposição referente à comunicabilidade dos bens. Além disso, os mesmos impedimentos para o casamento também são previstos para a união estável, nos termos do art. 1.723, § 1º, do mesmo Código.

A pergunta que precisa ser feita, a propósito, refere-se à razoabilidade da distinção que desiguala (e, portanto, inserida a discussão no campo do princípio da igualdade) a sucessão entre companheiros e cônjuges. De uma maneira relativamente singela, observo que ambas são entidades familiares, ainda que em um caso as formalidades sejam maiores, mas o que está em evidência é o fato de que ambas são consideradas família, segundo o art. 226 da Constituição.

A partir desta observação, não se encontra motivo razoável para tratar de maneira desigual tais entidades familiares, inocorrente permissão constitucional para privilegiar o casamento em confronto com a união estável. Anoto que a Constituição de 1988 é anterior ao Código Civil em vigor, datado de 2002, mas o núcleo central deste reside na década de 1969, data de nomeação de Miguel Reale para coordenar o projeto de modificação do código [42].

5. Nesse norte, e com tais observações, acompanho o eminente Relator dou provimento ao recurso extraordinário para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 e declarar o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.

6. Acolho a tese proposta, quanto ao Tema 809 da repercussão geral, nos seguintes termos: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.

É o voto.

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – Egrégia Corte, Excelentíssima Senhora Presidente, Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral da República, ilustres membros, senhores advogados e estudantes.

Senhora Presidente, o Ministro Teori trouxe a experiência dele do STJ, onde ele pode abordar essa matéria e eu, naquela época, não estava mais naquela Corte. Mas trago, aqui, a experiência de quem integrou o Ministério Público e também a magistratura de carreira, frequentando as comarcas do interior.

Eu já tive a oportunidade de dizer isso aqui algumas vezes – em algum caso eu devo ter dito, mas, se não disse, vou dizer agora; e se já disse, vou repetir – eu sempre destaco que o Direito vive para o homem e não o homem para o Direito. Foi exatamente através dessa constatação que ilustres autores – e aqui a Ministra Rosa citou um gaúcho, vou citar o professor Tepedino, que é carioca da nossa Universidade do Estado do Rio de Janeiro -, só para nós falarmos da beleza do Brasil.

A SENHORA MINISTRA ROSA WEBER – Eu poderia citá-lo também com muita admiração.

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – O Professor Gustavo Tepedino revela, à luz das obras do professor Perlingieri sobre a mudança dos perfis do Código Civil, que o Direito Civil mudou as suas premissas metodológicas, superando o ter pelo ser; e, mais ainda, superando o afeto, superando os laços consanguíneos, tanto que hoje se fala em paternidade socioafetiva – o Ministro Barroso mencionou aqui a existência da família monoparental, que, coloquialmente, se fala em “produção independente”.

Enfim, hoje o que é importante, realmente, é a questão socioafetiva, da qual um dos maiores e destacados autores é o nosso querido Ministro Edson Fachin.

E, aqui então, é que eu trago um pouco da minha experiência como promotor e como magistrado. Nas comarcas do interior e, também, no centro do Rio de Janeiro, verificou-se que 50% das famílias eram famílias espontâneas. Eram casas e lares por onde nunca tinham passado um juiz ou um padre, mas ali havia amor, ali havia filhos, até já em idade acadêmica, e ali havia efetivamente uma família. E foi exatamente isso que conduziu o legislador depois, digamos assim, de uma evolução jurisprudencial, de considerar a companheira prestadora de serviço e, depois, companheira concubina, a consagrar, na Constituição, a união estável. Então, o que diz a Constituição Federal? A Constituição Federal estabelece:

“Art. 226.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar

[…]”

Então, essa é uma afirmação da Constituição Federal. Quer dizer, essas famílias espontâneas foram reconhecidas como entidades familiares. E os seus componentes, evidentemente, equiparados àqueles que compõem uma família tradicional: marido e mulher. E ainda, acrescenta a Constituição Federal:

“[…] devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.”

Então, o que pretendeu o legislador? Nós, aqui, podemos analisar a mens legis e a ratio legis, não vou adivinhar o que estava na mens legislatoris, mas a ratio legis está aqui. O que estabelece o constituinte? Que todos aqueles responsáveis pela elaboração de leis ou do direito, em geral, devem propiciar a conversão dessa união estável em casamento.

Então, num primeiro momento, eu destaco que essa norma tem, evidentemente, como destinatário o legislador. Mas, hoje, com as repercussões gerais, com a teoria geral da jurisprudência, obediência do stare decisis vertical e horizontal, nós não podemos mais afirmar que a jurisprudência não seja uma fonte formal do Direito. Nós, hoje, vivemos num momento em que protagonizamos o sistema judge made law. Por quê?

Não só a lei, mas também aquelas teses que nós criamos, através de repercussões gerais, inclusive, elas às vezes são passíveis até de fundamentar uma ação rescisória, que antigamente só era admitida pela violação de literal disposição de lei, e que, agora, se admite também uma ação rescisória por violação da tese jurídica.

De sorte que, num primeiro momento, eu entendo que realmente o artigo da Constituição, ele não só se dirige ao legislador ordinário, mas também ao aplicador do Direito. Quer dizer, nós temos que facilitar a conversão em casamento dessas uniões estáveis, que são reconhecidas como entidade familiar. Não só o legislador, mas nós também. O legislador fez a parte dele – conforme destacou o brilhante voto do Ministro Roberto Barroso -, o legislador deu com uma mão, depois deu de novo, esse direito à companheira. E, então, como o Código Civil tramitou durante muitos anos (25 anos) no Congresso Nacional, ele já surgiu ultrapassado, neste particular, porque as leis esparsas já haviam consagrado esse direito das conviventes.

De sorte que não só porque somos destinatários dessa regra constitucional, e devemos facilitar a conversão em casamento das uniões estáveis, em nome da proteção do Estado à família, mas, mais ainda, nós devemos fazê-lo também com a certeza do nosso âmbito de cognição. O Supremo Tribunal Federal julga essa questão, partindo de uma premissa inafastável: há uma união estável conducente à conversão em casamento.

Porque nós não podemos, na análise da questão de fato, qualificar se há ou não há uma união estável, nós só podemos julgar a partir da constatação inequívoca de que há uma união estável. E eu fui pesquisar em todo o decorrer do processo: se há algo incontroverso, é de que havia, efetivamente, uma união estável.

Então, esse risco de se conceder efeitos drásticos a qualquer tipo de relacionamento efêmero, em primeiro lugar, desaparece, porque nós estamos aqui diante de uma premissa fática insindicável e inafastável. Em segundo lugar, eu gostaria de reiterar, porque aqui também o Ministro Teori já o fez, que a comprovação de uma união estável – e eu tive a experiência de juiz de primeiro grau – é uma comprovação que deve se fazer à luz daquela cláusula da prova do Direito evidente. Não tem fumaça do bom Direito, não tem aparências que enganam. Deve ser a prova inequívoca conducente à verossimilhança – porque a verdade é uma utopia no processo -, à verossimilhança, a delegação de que aquilo ali foi uma união estável.

Então, veja Vossa Excelência que o art. 1.723 traz segurança jurídica, no momento dessa conversão, na medida em que dispõe: “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável” – test drive não é estável, o próprio nome diz que é apenas um teste – “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”

Então, a sociedade pode contemplar, como aqui, há em vários pareceres, uma série de uniões que fazem parte de projetos de vida das pessoas. Há alguns projetos que são assimilados pelo contexto social, outros que não são, mas, no fundo, cada um faz a sua proposta de como ser feliz, salvo, evidentemente, se houver uma proposta de felicidade que beire a ilicitude.

Pois bem, então, o art. 1.723 exige requisitos muito estritos para se considerar a existência de uma união estável conducente ao casamento.

Então, não pode a união estável ser conducente ao casamento de uma pessoa casada, porque haveria, aí, uma chancela de bigamia. Quer dizer, vai se promover um duplo casamento. É claro, tem razão esses que se opõem a isso, mas não é disso que se trata. O que se trata aqui – e a realidade é essa -, é que quando há essa união estável entre um homem e uma mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição da família, é porque a família daquela pessoa é aquela convivente. Porque quem tem uma família que coparticipa da existência de um dos integrantes dessa controvérsia, efetivamente essa família não dá ensejo a esse abandono, em que os parentes só se aproximam no momento de recolher os frutos da existência daquele seu parente consanguíneo.

De sorte, Senhora Presidente, que nem à luz da dignidade da pessoa humana, que hoje é o centro axiológico do sistema jurídico, digamos assim, a dignidade humana ilumina o universo jurídico. Não se pode julgar uma causa dessas sem perpassar pelo valor da dignidade humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Então, à luz do princípio da dignidade humana, tão bem explorado no voto do Ministro Luís Roberto Barroso, à luz do princípio da igualdade, da razoabilidade, com todas as suas subespécies, e, principalmente, pela vedação da proteção ao retrocesso, a solução que o Ministro Luís Roberto concedeu ao caso é uma solução que eleva ao mais alto patamar esse valor Justiça, em função do qual tantas mentes privilegiadas do Universo já se dedicaram.

Eu colho, aqui, por fim, numa obra coordenada pelo Ministro Cezar Peluso, exatamente uma crítica pontual e muito certeira a essa desigualação injusta, empreendida pelo artigo do Código Civil, que faz essa distinção entre o que é convivente… Até sugeriria a Vossa Excelência, Ministro Roberto Barroso, que, como estamos no campo do Direito Civil, e para evitar qualquer tipo de especulação quanto à fragilidade do que se quis dizer, que utilizemos a expressão “convivente”, como diz aqui “convivência”, do art. 1.723 do Código Civil. Essa “convivência”, da forma como está no Código Civil, ela elimina qualquer tipo de especulação de relacionamentos oportunistas ou efêmeros.

Então, aqui, na obra do Professor e nosso eminente Ministro, Colega Cézar Peluso, há uma passagem, in verbis:

“(…) É importante registrar e endossar a crítica veemente do jurista Zeno Veloso” – e aqui é citada a obra – “(…) ao retrocesso apresentado pelo art. 1.790. Como visto, a Constituição de 1988, ao estabelecer que a união estável e outras formas familiares merecem proteção jurídica, reconheceu não se poder diferenciar, em termos de dignidade, famílias fundadas ou não no casamento. A quase equiparação, promovida pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96” – aqui também citadas no brilhante voto do Ministro Roberto Barroso – “(…) tinham sido absorvida pela sociedade sem traumas” – então, essa chancela da equiparação da convivente ao cônjuge tinha sido absorvida pela sociedade sem traumas -, “não se justificando retrocesso verificado com o atual Código Civil“.

Quer dizer, a questão toda é que o Código Civil, quando veio, já não era mais atual.

“A solução adequada, portanto, parece ser a já defendida, de se considerar o art. 1.790 inconstitucional em sua totalidade” – como fez o eminente Relator em seu brilhante voto, como é de praxe -, “aplicando-se ao companheiro a mesma disciplina legal prevista para o cônjuge sobrevivente”.

Então, Senhora Presidente, egrégia Corte, com fundamento nesses argumentos que procurei trazer apenas para revelar a seriedade que o tema encerra, acompanho integralmente o erudito e justo voto do Ministro Roberto Barroso, fundado na dignidade da pessoa humana, na isonomia e na vedação de proteção deficiente ou ao retrocesso.

VISTA

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:

Senhora Presidente, inicio por cumprimentar também o voto do eminente Relator, todos os votos proferidos pelos eminentes Colegas que o acompanham, mas não poderia deixar de destacar as manifestações orais das doutoras Ana Luíza Maia Nevares e Regina Beatriz Tavares da Silva. Você escuta uma delas e com ela concorda; escuta a outra e com ela concorda plenamente. Sem dúvida nenhuma, este é um tema brilhante e importante para se discutir.

Antes de mais nada, a Constituição, evidentemente, diz que a união estável merece uma proteção, mas também não diz que união estável é casamento. O Código Civil, ao tratar do Direito de Família, no art. 1.725, diz que: “Na União estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. Ou seja, é possível, na união estável, que os companheiros ou conviventes façam um acordo e registrem esse acordo sobre as relações, inclusive patrimoniais, que incidirão naquele relacionamento.

Em relação a sucessões, temos um dispositivo que diz a ordem. E é evidente que o testamento sempre é algo disponível a qualquer um que tenha patrimônio e que queira, então, fazer um testamento. Minha grande preocupação aqui é nós estarmos anulando a autonomia da vontade. Da mesma maneira que, no art. 1.725, quando se fala do Direito de Família, os conviventes podem alterar aquele regime, que seria o regime legal, por que não no caso do dispositivo do 1.790, por meio de testamento, ou por meio daquele mesmo acordo que incidiria sobre a união estável, com relação à divisão de bens patrimoniais? Então, há esse engessamento que estaríamos a fazer – isso foi dito pela Dra. Regina da tribuna – da autonomia da vontade.

Por outro lado, é evidente, a professora Giselda, titular da USP em Direito Civil, já destacou que esse dispositivo do art. 1.790, matematicamente, é inexplicável.

Faço a leitura do dispositivo:

“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; (…).”

Concorrendo com filho comum, tem uma cota equivalente àquilo correspondente ao filho. E se tiver mais de um filho?

Já o inciso II:

“II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; (…).”

Pode-se levar a uma situação em que acaba por se receber menos, quando tem filhos comuns, e mais, quando os filhos são isolados do companheiro. Uma redação confusa e que atormenta a teoria jurídica das sucessões do Direito privado quanto ao tema.

Entretanto, não posso aqui, a partir de uma redação mal-feita desta lei, imaginar que o legislador ordinário não pode fazer um distinguishingem relação à ordem de sucessão, porque ele pode fazê-lo entre os parentes, ascendente, descendentes, colaterais, consanguíneos, afins e também entre cônjuges. O legislador é que estabelece a ordem da sucessão.

Portanto, Senhora Presidente, eu tenho muita dificuldade em acompanhar o voto do eminente Relator, mas também gostaria, diante da densidade dos votos proferidos, de refletir melhor sobre o tema. Penso que é um tema que merece uma reflexão profunda, porque atingirá relações familiares de toda a nação brasileira e, conforme destacou o Relator, há divergências entre aplicações de tribunais de justiça em todo o País e também de juízes em varas de sucessões, ou em varas únicas, conforme o tamanho da comarca, as quais me levam, então, a pedir vista para melhor refletir sobre o tema.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLOPeço licença ao eminente Ministro DIAS TOFFOLI para antecipar o meu voto. Eao fazê-lodesejo destacar que o Supremo Tribunal Federal, ao proferir este julgamento, está a viabilizar a plena realização dos valores da liberdade, da igualdade da não discriminação, que representamfundamentos essenciais à configuração de uma sociedade verdadeiramente democrática, tornando efetivoassimo princípio da isonomia, assegurando o respeito à liberdade pessoal à autonomia individual, conferindo primazia à dignidade da pessoa humana, rompendo paradigmas históricos, culturais e sociais e removendo obstáculos que se antepõem, até mesmo em matéria sucessóriacomo se vê das diversas posições jurisprudenciais dos tribunais locais, em relação aos integrantes de uniões estáveis, tanto as heteroafetivas, quanto as homoafetivas.

Acompanhopor isso mesmoo brilhante voto proferido pelo eminente Ministro Relator, declarando, “incidenter tantum”, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, reconhecendo à ora recorrente o direito de participar da herança de seu companheiro segundo as prescrições e nos termos estabelecidos no art. 1.829 do Código Civil.

Também acolho a proposta de tese formulada pelo eminente Relator (Tema 809 da repercussão geral), no sentido de ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges companheiros prevista no art. 1.790 do vigente Código Civil, devendo incidir o regime jurídico instituído no art. 1.829 desse mesmo diploma legislativo nas hipóteses de casamento ou de união estável.

É o meu voto.

VOTO

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (PRESIDENTE) –  Peço licença ao Ministro Dias Toffoli, que pediu vista, e ao Ministro Marco Aurélio, que vai aguardar. Em geral também costumo aguardar a vista. Dá-se que fiz o estudo e até preparei o voto, sem embargo de reajustar quando sobrevier tanto o voto do Ministro Dias Toffoli, e eventualmente haverá o voto do Ministro Gilmar, do Ministro Lewandowski mesmo e do Ministro Marco Aurélio, principalmente.

Gostaria de registrar o meu voto, que não destoa absolutamente do voto do Ministro-Relator e de todos os que o seguiram até aqui, basicamente porque de um fato, que é, no caso que estamos tratando, a morte de um daqueles que estão na relação de convivência, duas relações jurídicas, uma que se refere ao desfazimento, ao final dessa relação, e o segundo do que estamos tratando e de que trata o artigo 1.790 do Código Civil, que é exatamente a questão sucessória.

E, neste ponto específico, sem embargo de todas as observações que foram feitas, muito adequadas e apropriadas, relativamente a outras consequências, também chego à conclusão de que houve uma dissintonia entre o que posto na Constituição, relativamente tanto ao princípio da dignidade quanto ao princípio da igualdade, sobretudo, e que me parece que, neste caso, confronta de alguma forma o art. 226, que quer conduzir a que a união estável possa se transformar em um casamento, mas sem embargo de todos os direitos, especialmente aqueles que são tidos como fundamentais e que garantem, portanto, a possibilidade de as pessoas terem iguais direitos, em iguais condições. E aqui se consideram as condições fáticas que geram direitos. E, por isso, também concluo na mesma linha do que já foi posto. Também considero que, neste caso, aplica-se o princípio da vedação do retrocesso. O Ministro Barroso lembrou das condições. É claro que estamos falando de qualquer dos conviventes. Mas, na verdade, isso se aplicou sempre muito mais à mulher, por causa da condição – como o Ministro Barroso se valeu no voto, e até anotei – de uma falta de capacidade civil, porque ela tinha uma capacidade apenas servil. Em grande parte, é tratada desse jeito, não obstante isso possa se aplicar, evidentemente, a outras…

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Ministra Cármen, há uma razão pela qual as mulheres são as principais beneficiárias desse entendimento. É que as mulheres vivem mais do que os homens e, portanto, normalmente são elas que sucedem.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (PRESIDENTE) – Nós vivemos pelos homens. Nós gostamos tanto deles que a gente vive mais para cuidar deles até o final. É só isso.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – A expectativa de vida das mulheres é cinco ou seis anos acima da dos homens.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (PRESIDENTE) – É por amor. Já que estamos falando desses cuidados, podem ter certeza: a gente não quer dar a dor de nos perder. É só isso.

De toda sorte, de uma maneira extremamente breve e fazendo coro a todas as observações que foram feitas com base nos fundamentos da Constituição, também considero incompatível o posto e interpretado até aqui no art. 1.790 do Código Civil com o que está estabelecido principalmente em termos de vetores fundamentais da Constituição de 1988. Razão pela qual também dou provimento para declarar inconstitucional o art. 1.790, fazendo com que se aplique, nesses casos, o disposto no art. 1829 do Código Civil com a modulação tal como foi proposto.

Como a maioria, estou aberta aos votos que sobrevierem e que possam nos levar a eventuais reajustes.

EXTRATO DE ATA

Decisão: Após o voto do Ministro Roberto Barroso (Relator), que dava provimento ao recurso, nos termos do seu voto, no que foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli. Ausentes, justificadamente, o Ministro Gilmar Mendes, e, nesta assentada, o Ministro Ricardo Lewandowski (Presidente). Falaram, pelos amici curiae Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, a Dra. Ana Luiza Maia Nevares, e, pelo amicus curiae Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS, a Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva. Presidência da Ministra Cármen Lúcia (Vice-Presidente). Plenário, 31.08.2016.

Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki, Roberto Barroso e Edson Fachin.

Procurador-Geral da República, Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros.

p/ Maria Sílvia Marques dos Santos

Assessora-Chefe do Plenário

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:

Cuida-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão que aplicou orientação do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o qual, em julgamento de incidente de inconstitucionalidade, reconheceu a constitucionalidade do art. 1.790, entendendo que, “a teor do inciso III do art. 1.790 do Código Civil, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro faz jus tão somente a um terço dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável a título de herança, pois concorre com os colaterais até quarto grau, devendo ser excluída sua participação como herdeiro dos bens particulares do de cujus”.

Em seu percuciente voto, o eminente Relator, Ministro Roberto Barroso, deu provimento ao recurso para “reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, por violar a igualdade entre as famílias, consagrada no art. 226 da CF/1988, bem como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso e da proteção deficiente” e declarou, por consequência, o direito da recorrente de participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002. Nesse sentido também foram os votos dos eminentes Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia.

Pedi vista dos autos para melhor analisar o caso, em especial, diante das ponderações apresentadas nas sustentações orais.

Há algumas premissas fáticas deste caso concreto que devem ser salientadas, a saber: i) o reconhecimento da união estável de nove anos (2000 a 2009) se deu post mortem, não havendo notícia de testamento ou de qualquer declaração deixada pelo falecido sobre as questões postas nestes autos; e ii) não há ascendentes ou descendentes do falecido, sendo os herdeiros com quem concorre a companheira sobrevivente os três irmãos do falecido.

Vê-se, portanto, que na espécie há, em tese, a subsunção da hipótese prevista no inciso III do art. 1.790 do Código Civil de 2002. No entanto, pretende o nobre Ministro Relator ampliar a tese a ser fixada, sugerindo seja assentado o seguinte entendimento com repercussão geral:

“É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.”

Embora criterioso e bem fundamentado o voto do Ministro Relator, após nova reflexão sobre o conteúdo dos autos e da questão central posta no extraordinário, com a devida vênia, penso não existir a inconstitucionalidade apontada. Com efeito, vejamos.

Como proêmio, data venia dos que têm entendimento distinto, há que se deixar bem claro que não há como se dar uma interpretação ampliativa ao que restou decidido na ADI nº 4.277, na medida em que esta Suprema Corte se limitou a dar interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, de forma a contemplar, no conceito de entidade familiar, a união estável entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher. O referido acórdão não equiparou o casamento à união estável, nem, muito menos, os efeitos jurídicos da escolha de uma ou de outra espécie de entidade familiar.

A parte final do § 3º do art. 226 da Constituição da República, ao estabelecer que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento, deixou claro que “uma coisa é uma coisa e outra é outra coisa”.

Como tive a oportunidade de me manifestar na referida ação direta de inconstitucionalidade, na condição de Advogado-Geral da União, a compreensão do art. 1.723 do Código Civil não pode ignorar o princípio da isonomia, os vínculos e as relações de afeto que mantêm os integrantes de uniões homoafetivas. Também salientei que a Carta Maior prevê, de modo expresso, em seu art. 226, que o casamento (§ 2º), a união estável (§ 3º) e a família monoparental (§ 4º) são espécies de “entidades familiares”, não se podendo afirmar que o conjunto de suas normas permita excluir de similar tratamento jurídico outras relações baseadas nos mesmos suportes fáticos: (i) autodeterminação, (ii) afeto e (iii) pleno exercício da liberdade pela deliberada intenção de convivência íntima e estável com o fim de se alcançarem objetivos comuns (fls. 406 e 407).

Na referida manifestação, acentuei, também, que não se poderia admitir diferenciação entre as entidades familiares expressamente previstas na Constituição Federal e as uniões homoafetivas, porque não existiria justificativa plausível para essa indiferenciação sob a óptica do princípio da igualdade, na medida em que uma união homoafetiva estável, uma vez preenchidos os requisitos legais, estaria a se fundar nos mesmos pressupostos de liberdade e de afeto que as outras uniões estáveis – as quais se distinguem do casamento -, tendo, na oportunidade, lembrado que países como França, Alemanha, Uruguai, República Tcheca, Reino Unido e Finlândia reconheciam juridicamente a união homoafetiva, sem equipará-la, contudo, ao casamento, e concluí que “(…) o pedido formulado na (…) ação revela procedência, na medida em que se afigura necessário o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar a fim de que aos participantes da união homoafetiva sejam assegurados os mesmos direitos e deveres dos companheiros heterossexuais nas uniões estáveis” (fls. 413).

Retomo agora duas premissas jurídicas que adiantei por ocasião de meu pedido de vista. As entidades familiares são distintas, como especificado na Constituição Federal. O casamento, portanto, não é união estável, o que autoriza que seus respectivos regimes jurídicos sejam distintos. Portanto, há de ser respeitada a opção feita pelos indivíduos que decidem por se submeter a um ou a outro regime. Há que se garantir, portanto, os direitos fundamentais à liberdade dos integrantes da entidade de formar sua família por meio do casamento ou da livre convivência, bem como o respeito à autonomia de vontade para que os efeitos jurídicos de sua escolha sejam efetivamente cumpridos.

A questão constitucional posta no apelo extremo pode ser assim resumida: o art. 1.790 do CC estipula regras sem razões justificadas para o discrímen, ou o legislador, ao fazer a opção, fez o juízo adequado da razoabilidade e da proporcionalidade em sentido estrito?

Para uma melhor compreensão do regime jurídico que se está a analisar, vide os arts. 1.829, 1.830 e 1.832, que possuem, respectivamente, a seguinte redação:

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens

(…); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.”

“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.”

“Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (…) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.”

Façamos um resumido paralelo desses regimes sucessórios.

Vê-se, pela leitura dos textos, que, com o Código Civil de 2002, o cônjuge passou a concorrer com descendentes e, na falta desses, com ascendentes do autor da herança, se houver, e, quando é chamado à sucessão em concurso com descendentes, o cônjuge herda um quinhão da parte que não lhe cabe por força do regime de bens, mas sempre como herdeiro necessário, ao lado dos descendentes e ascendentes (cf. arts. 1.829, incisos I e II e 1.845, do CC).

Por sua vez, na hipótese da herança do companheiro, embora o art. 1.790 tenha garantido, relativamente aos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável, que o companheiro sobrevivente concorrerá com os descendentes apenas do falecido na proporção da metade do que cabe a cada um deles e com os filhos comuns na mesma proporção de cada um deles – com a mesma quota -, quando o companheiro sobrevivente concorre com os demais parentes sucessíveis, ele tem direito a um terço da herança (incisos I a III).

Ocorre que não me parece que a opção legislativa tenha sido injustificada ou desarrazoada. Pelo contrário, o legislador debateu o tema e deixou claros os motivos do tratamento diferenciado, e, para a certeza das coisas, tomo a liberdade de relatar o que se consignou como fundamentos da decisão legislativa.

Inicialmente, na exposição de motivos do art. 1.790 do CC, ficou explicitado que “as diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõe um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta”.

Não bastasse isso, no documento publicado pelo Senado Federal em 2012, sobre a Memória Legislativa do Código Civil [1,] podemos verificar os principais motivos que levaram o Congresso a não equiparar os efeitos sucessórios para os dois institutos. É que o que se extrai da leitura dos fundamentos utilizados para a aprovação, em segundo turno, na Câmara dos Deputados, da Subemenda de Redação do Relator Geral nº 56 (Deputado Ricardo Fiúza), a qual ocorreu após parecer final pela aprovação emitido pelo Senador José Fogaça, a saber:

É de reconhecer que persiste uma certa desigualdade de tratamento sucessório entre os cônjuges no regime matrimonial e entre os companheiros numa união estável. Nesse particular, qualquer dos cônjuges pode suceder ao de cujus na categoria de herdeiro necessário (art. 1.857), podendo inclusive concorrer, dependendo do regime de bens existente, com os ascendentes e até mesmo com os descendentes. (Esta Relatoria-Geral permite-se, neste momento, um comentário, ainda que breve, sobre guindar-se o cônjuge à categoria de herdeiro necessário, para dizer que discorda dessa orientação. Porém, tendo em vista tratar-se de texto original do projeto, não emendado pelo Senado, nada se poderia fazer, a esta altura.).

(…)

Rejeitada que seja a emenda senatorial, o companheiro sobrevivente de uma união estável não se beneficiará dos mesmos direitos sucessórios atribuídos ao cônjuge sobrevivo. Entretanto, aceito que seja o texto emendado, ocorrerá justamente o oposto, passando a companheiro a deter maiores direitos sucessórios do que aqueles deferidos ao cônjuge.

Cuide-se, todavia, da necessidade de em matéria de direito sucessório ser disciplinada a presença do convivente, no rigor dos efeitos jurídicos decorrentes do instituto da união estável, o que perfaz razão relevante para a não supressão da emenda.

Por outro lado, não se pode admitir que o convivente tenha tratamento privilegiado em ralação ao cônjuge, mesmo porque este não foi o espírito do constituinte de 1988.

A própria formulação do texto constitucional já é suficientemente elucidativa a esse respeito : ‘(…) para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável… devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’ (CF, art. 226, § 3º).

É como se a união estável fosse tomada como um caminho para o matrimônio, ou quando muito como um matrimônio incompleto, muito embora já constituísse por si mesma, nos termos da regra constitucional, uma ‘entidade familiar’. A natureza modelar do casamento, sua irrecusável preeminência, reflete-se no Projeto, bastando assinalar, a esse respeito, que na área do Direito de Família a disciplina da união estável se limita a cinco dispositivos seqüenciados (arts. 1.737 e 1.739), e na área do Direito das Sucessões é contemplada com um único dispositivo específico (art. 1.814), além de dois outros aplicáveis tanto aos cônjuges quanto aos companheiros (arts. 1.871 e 1.817).

A comparação que se estabeleça entre os preceitos relativos ao matrimônio e as regras disciplinadoras da união estável, constantes do Projeto, demonstra, à primeira vista, a superioridade numérica das primeiras em relação às últimas.

Somente há pouco institucionalizada pela lei civil, a disciplina da união estável tem inegável natureza tutelar, e representa o reconhecimento legal de um fato consuetudinário que se aproxima do modelo matrimonial.

A desproporção se evidencia quando se considera a superioridade numérica dos dispositivos que tratam do casamento, a título de Disposições Gerais (arts. 1.510 a 1.515), Capacidade Matrimonial (arts. 1.516 a 1.519), Impedimentos (arts. 1.520 e 1.521), Causas suspensivas (art. 1.522 e 1.523), Habilitação Matrimonial (arts. 1.554 a 1.531), Celebração do Casamento (art. 1.532 a 1.541), Provas do Casamento (arts. 1.542 a 1.546), Invalidade do Casamento (arts. 1.547 a 1.566), Eficácia do Casamento (art. 1.567 a 1.573), Dissolução da Sociedade Conjugal (arts. 1.574 a 1.587), Proteção da Pessoa dos Filhos na Dissolução da Sociedade Conjugal (arts. 1.588 a 1.595), e Regime de Bens entre os Cônjuges (arts. 1.651 a 1.734), totalizando, como se vê, 189 (cento e oitenta e nove) artigos de lei.

As diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõem um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta. Impossibilitado que seja um tratamento igualitário, inclusive por descaracterizar tanto a união estável – enquanto instituição-meio – quanto o casamento – enquanto instituição-fim – na conformidade do preceito constitucional. A natureza tutelar da união estável constitui, na verdade, uma parcial correção da desigualdade reconhecida no plano social e familiar, desde que atentemos ser o casamento mais estável do que a estabilidade da convivência duradoura. Nulidades, anulabilidades, separação, divórcio, figuras indissoluvelmente ligadas ao enlace matrimonial, desaparecem, ou transparecem por analogia, ou se reduzem numericamente, quando transpostas para o relacionamento estável.

Tomamos assim como diretrizes básicas, na caracterização dos direitos sucessórios do cônjuge e do convivente, a prevalência da relação matrimonial em confronto com o relacionamento estável” (destaques nossos).

Não se verifica, nos fundamentos, uma inferiorização de um instituto em relação ao outro, ou deliberada criação de uma situação desavantajosa. O legislador cuidou, no entanto, de dar a eles tratamento diferenciado, até para que não houvesse a equiparação entre os regime dos dois institutos.

Nesse sentido, correta se mostra o alerta feito por Mário Luiz Delgado, então Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM, em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, no qual afirmou que o reconhecimento da igualdade do direito sucessório das entidades familiares pode representar a “aniquilação da liberdade daqueles que optaram pela relação informal, exatamente porque não pretenderam se submeter ao regime formal do casamento”. Ou pior, que isso possa significar até mesmo “o fim da própria união estável, pois, à medida que se regulamenta um relacionamento que foi constituído para ser uma união livre e sem nenhuma oficialidade, estar-se-á alterando a sua natureza jurídica, transformando-o em outro tipo de relacionamento que não foi o desejado pelas partes. É o que chamo de ‘casamento forçado’, ou, ainda, ‘dormir com alguém e acordar com o Estado’, como diz Zeno Veloso” [2].

Estou plenamente convicto de que a liberdade e a autonomia da vontade dos conviventes hão de ser respeitados e de que não foi por outro motivo que o casamento civil passou a ser questionado a partir da década de 1960, principalmente pelos jovens, que passaram a entender que deveria existir maior liberdade nas relações familiares em face do Estado, ideia que se desenvolveu na sociedade germânica e que influenciou seu ordenamento jurídico, culminando na doutrina da “Finalidade Individual do Estado”, segundo a qual deveria haver uma menor intervenção estatal na vida dos indivíduos [3].

Na atualidade, ainda prevalece nesse país essa concepção libertária, tanto é que não há sequer previsão normativa para o dever de sustento mútuo para os conviventes em união estável, regras sobre a sucessão, ou mesmo sobre a aquisição de bens durante a convivência, “de modo que os bens adquiridos em nome apenas de um dos conviventes permanecem na propriedade exclusiva dele” (MARTINY, Dieter. Family Law. In, REIMAN, Mathias; ZEKOLL, Joachim. Introduction to German Law. The Hague: Kluwer Law International, 2005, p. 255).

Assim, reitero entender não ser possível a equiparação entre casamento e união estável, tal como ocorre na maioria dos países europeus, os quais nem sequer disciplinam as relações sucessórias.

Exempli gratia, na França, nem os concubinos nem os membros do pacto civil de solidariedade – formas de união admitidas naquele sistema jurídico – herdam um do outro.

Nem se diga que a liberdade de escolha da espécie de “entidade familiar” estaria tolhida porque só as pessoas com condições econômicas é que teriam condições de se casar. A legislação tratou de garantir a gratuidade do casamento a quem preenche os requisitos legais (vide art. 1.512 do Código Civil de 2002 e as legislações estaduais que dispõem sobre os requisitos), e os casamentos comunitários têm ajudado a viabilizar os matrimônios, que ocorrem diariamente em todo o país.

Certo é que a norma civil apontada como inconstitucional não hierarquizou o casamento em relação à união estável, mas acentuou serem eles formas diversas de entidades familiares, nos exatos termos da exegese do art. 226, § 3º, da Constituição Federal.

Em sintonia com esse pensamento, trago as inteligentes ponderações feitas pelo eminente civilista da Faculdade de Direito da USP, Professor José Fernando Simão, que elencou as regras constitucionalmente válidas dos regimes jurídicos diferenciadores do casamento e da união estável [4], no que tange às normas sobre: i) sua criação (procedimentos registrais e sua dispensa); ii) comprovação jurídica, iii) extinção, iv) efeitos perante terceiros, v) outorga uxória e marital (que não se aplica ao segundo regime); vi) presunção de paternidade (que por ora inexiste para a união estável); vii) e até o procedimento para a mudança de regime de bens [5].

Nem mesmo a sedutora tese da vulneração da proibição ao retrocesso de direito fundamental à sucessão e, portanto, à propriedade por meio da saisine procede, na medida em que tenho, para mim, que a proibição do efeito “catraca” ou cliquet tem aplicação somente quando a restrição ao direito fundamental ultrapassa o limite de seu núcleo essencial, o que não é a hipótese em questão.

A restrição imposta pelo Código Civil de 2002 ao direito sucessório da união estável, com o devido respeito àqueles que pensam o contrário, quando comparado com o regime sucessório que vigorava anteriormente pela Lei 8.971/94 (art. 2º) e Lei 9.278/96 (art. 7º), me parece absolutamente legítima – assim como tantas outras restrições a direitos civis que foram estabelecidas pelo novo Código Civil e que foram realizados sob o permissivo constitucional -, na medida em que o legislador optou, pelos fundamentos revisitados neste voto, por garantir ao companheiro herdeiro, na hipótese de concorrer com os colaterais, o recebimento de um terço da herança.

Portanto, não se vislumbra irrazoabilidade ou desproporcionalidade na opção legislativa, como bem sustentou o eminente Procurador-Geral da República, Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, que, em seu primoroso parecer, além de descrever o histórico dos direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro a relatar o vai e vem desses direitos, concluiu, em sua análise sistêmica, que “[o] art. 1.790, I e II, do CC permite ao convivente concorrer com os descendentes, enquanto o art. 1.829, I, do CC, exclui a possibilidade de o cônjuge concorrer com os descendentes, nos regimes da comunhão universal, da separação obrigatória ou no regime da comunhão parcial, se o falecido não houver deixado bens particulares.

A apontada inconstitucionalidade do art. 1.790, III, do CC apoia-se no argumento que essa diferença de tratamento tem por consequência rebaixar a família decorrente da união estável em comparação à advinda do casamento. Ora, os diversos regimes de bens, bem como os regimes sucessórios respectivos, foram estabelecidos pelo legislador com o escopo de propiciar aos nubentes e companheiros diversas opções na organização de seus patrimônios, de acordo com seus interesses pessoais.

(…)

Aliás, uma interpretação normativa com viés estritamente patrimonial, comparando-se o quantitativo de cada herança em cada regime e, ainda, em cada situação em particular, revelaria que uma situação ou outra este ou aquele regime seria mais adequado ou mais justo neste ou naquele aspecto.

Tal processo levaria a um nivelamento entre todos os regimes, já que nenhum poderia ser mais favorável ou desfavorável por violar o princípio da isonomia. Esse exercício, por fim, faria ruir todo o edifício construído pelo legislador positivo” (destaques nossos).

Mesmo que utilizada a estratégia do festejado professor Robert Alexy para estabelecer a relação de precedência condicionada entre os princípios em colisão, com a aplicação dos elementos que formam a estrutura da ponderação, quais sejam, a ponderação, a fórmula de peso e a proporcionalidade – observadas as intensidades das argumentações-, na hipótese que se descortinou, não há como se desrespeitar, em especial quando aplicada a teoria externa dos direitos fundamentais, o sistema democrático e a separação de poderes, a opção discricionária feita pelo legislador.

Portanto, como salientado por mim em tantas oportunidades, na espécie cabe também a aplicação da máxima jurídica in dubio pro legislatore, que, para alguns doutrinadores, como Juan Antonio García Amado [6], é, em verdade, uma regra de preferência quando há zona de penumbra quanto à constitucionalidade ou não de uma decisão discricionária adotada pelo legislador.

Da mesma forma, se se vislumbra, pela abertura constitucional – como é o caso dos autos – uma pluralidade de concretizações possíveis, há que se respeitar, como uma defesa da própria democracia, o pensamento possibilista – há muito defendido por Peter Häberle, apoiado no escólio de Niklas Luhmann (Komplexität und Demokratie, PSV, 4, 1968, p. 494 e ss.) -, desde que, como bem anotou aquele filósofo e jurista, as alternativas surjam dos marcos constitucionais [7].

Havendo, no futuro, efetivas e reais razões fáticas e políticas para a alteração dessa norma, o espaço democrático para esses debates há de ser respeitado, qual seja, o Congresso Nacional, onde deverão ser discutidas as alternativas para a modificação da norma e seus respectivos impactos no ordenamento social.

Pelo exposto, nego provimento ao recurso extraordinário.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Ministro Dias Toffoli, Vossa Excelência me permite?

Há mais uma opção no Código Civil com lastro no dualismo que nos vem do artigo 226 da Constituição Federal: a meação com equiparação, no campo patrimonial, ao regime de comunhão parcial. Refiro-me ao artigo 1.725:

“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros” – que equivale ao pacto antenupcial dos nubentes –, “aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”

Hoje, a comunhão parcial é a regra quando os nubentes não se manifestam expressamente. Antes do Código de 2002, a regra era a comunhão total. Hoje é a parcial.

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:

Eu estou me atendo aqui ao regime da sucessão, e não ao da copropriedade, mas, como muito bem lembrado, já há até a parte relativa à copropriedade.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Presidente, sou o Relator de uma situação muito semelhante a essa, com a particularidade de envolver união estável homoafetiva. Liberei, é certo, o processo para julgamento e, considerado o número do recurso extraordinário e o do extraordinário sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, vejo que Sua Excelência é muito mais rápido no gatilho, “no gatilho judicante,” pois o que está sob os meus cuidados tem o número 646.721 e o dele, 878.694. Estou debruçado sobre a matéria, refletindo muito porquanto em jogo se faz sistema dual constitucional em vigor há 30 anos, praticamente, e, sob o ângulo legal, presente o Código Civil em vigor, há 15 anos, sem contar as duas Leis a que se referiu o ministro Dias Toffoli.

Creio não ser aconselhável – e assim vejo – votar de improviso nesta assentada e acredito mesmo devermos refletir um pouco mais porque, inclusive, não houve discussões maiores no Plenário sobre a matéria – sobre a repercussão que decisão, conforme está se delineando, poderá provocar em termos de estrutura dessa instituição, o casamento. Isso sem colocar em plano secundário a união estável.

Eu mesmo trouxe à balha artigo esquecido do Código Civil, o 1.725, o qual prevê a meação entre os companheiros, pouco importando – concordo com o ministro Luís Roberto Barroso, creio que Sua Excelência chegou, no voto, a sinalizar – a opção sexual desses companheiros.

Por isso, vou me permitir – e já faria apelo a Vossa Excelência – pedir vista. Que apelo é esse? Colocarmos em pauta a devolução da vista com o recurso extraordinário sob a minha relatoria, para que tenhamos – porque, reafirmo, não houve discussão maior no Plenário – essa discussão; que, ao retomarmos o julgamento, assim o façamos analisando o recurso extraordinário nº 646.721, da minha relatoria, ou seja, iniciando a retomada do julgamento com o pregão desse extraordinário, já liberado para pauta, e prolação de voto, tomando-se, inclusive, os demais votos.

OBSERVAÇÃO

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Presidente, como Relator, só um breve comentário.

Eu li hoje pela manhã o voto do eminente Ministro Dias Toffoli e agora o ouvi, com interesse, prazer e proveito, em razões bem lançadas que correspondem ao entendimento de Sua Excelência.

Eu gostaria de muito brevemente, em dois minutos, reiterar os meus argumentos, até porque o Ministro Marco Aurélio irá fazer uma reflexão e pode, eventualmente, querer levá-los em conta.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Estou sempre pronto a ouvi-lo e a evoluir tão logo Vossa Excelência me convença.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Vou tentar.

O argumento desenvolvido no voto é o de que a Constituição prevê três modalidades de família de maneira expressa: a família que resulta do casamento, a família que resulta da união estável e a família monoparental. Essas três categorias estão equiparadas na Constituição e, a elas, agregou-se, por decisão do Supremo Tribunal Federal, uma quarta modalidade de entidade familiar, que é a constituída pelas uniões homoafetivas. Portanto, há quatro famílias previstas na Constituição, todas elas objeto de estudos relevantes do Ministro Luiz Edson Fachin.

Depois de promulgada a Constituição, foram editadas duas Leis que equipararam os direitos da mulher casada à companheira que vive em união estável. Para deixar claro e não haver nenhuma dúvida, nós estamos falando aqui da companheira e não estamos falando de amante ou de alguém com uma relação paralela; nós estamos falando de uma relação equiparada pela Constituição a uma entidade familiar. Portanto, vêm essas duas Leis, 8.971/94 e 9.278/96, e contêm a proposição de que, para fins sucessórios, a mulher casada e a companheira estão sujeitas ao mesmo regime jurídico.

E, portanto, esse tratamento jurídico da matéria vige por diversos anos até que, em 2003, entra em vigor o Código Civil, o novo Código Civil. Como nós sabemos – e há aqui novamente um trabalho importante do Ministro Luiz Edson Fachin a esse respeito -, embora promulgado em 2003, o Código Civil foi objeto, verdadeiramente, de discussões e baseado em um anteprojeto que é da década de 70 e, consequentemente, traz em si ideias e valores correspondentes àquele momento da vivência brasileira, de 40 anos atrás. Então, o novo Código Civil promove este retrocesso, que é desequiparar – com todas as vênias, retrocesso no meu ponto de vista, que, evidentemente, não corresponde ao ponto de vista bem defendido pelo Ministro Toffoli – aquilo que, a meu ver, a constituição havia equiparado e a legislação havia concretizado. E, ao desequiparar a esposa da companheira, o Código Civil termina por hierarquizar as famílias, para dizer que a família que resulta do casamento é melhor e gera mais direitos do que a família resultante da união estável. E eu penso que não poderia fazê-lo, porque, do contrário, você obrigaria as pessoas a se casarem.

Na verdade, há duas situações pelas quais as pessoas não se casam no Brasil. Quase metade, mais de um terço, dos casais vivem em união estável no Brasil. Portanto, eles não são casados. No mais das vezes, ou com muita frequência, por circunstâncias da vida. Outras pessoas não se casam porque elas não querem se casar, não querem esse tipo de formalização. Mas isso não deve diminuir os direitos dessas pessoas.

Portanto, se nós admitirmos que o Código Civil hierarquize essas famílias e dê direitos diferentes, você tira a liberdade de quem tenha feito a opção de não casar, ou de quem, por desinformação ou por qualquer outra circunstância da vida não tivesse se casado.

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:

Mas, Ministro Barroso, a pessoa pode se casar com separação total de bens, então, esse raciocínio, com a devida vênia, não se sustenta.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Pode, mas o efeito prático aqui é diverso. Vejam o efeito prático neste caso: essa senhora viveu com o autor da herança por 9 anos. Se eles fossem casados, ela teria direito à totalidade da herança. Como eles não eram casados, ela só tem direito a um terço dos bens adquiridos onerosamente. O resto vai para os irmãos que moram lá longe.

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:

Mas ela já terá a meação desses bens, porque ela tem a copropriedade desses bens. Então, é um terço sobre a metade.

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – Eles não viveram com o autor da herança e não têm nenhuma relação de proximidade com o autor da herança. Portanto, você cria o fator totalmente aleatório que beneficia não quem viveu conjugalmente, mas quem está vivendo uma vida a milhares de quilômetros de distância. Assim, eu acho que se cria um sistema de sucessão aleatória que desfavorece a mulher que viveu anos a fio.

Eu estou falando da mulher, embora, na verdade, isso se aplique ao companheiro ou a companheira, porque – Ministra Cármen Lúcia, nem tudo são desvantagens nessa vida – geralmente é a mulher que sucede ao homem, já que as mulheres têm maior longevidade. Portanto, geralmente, você está discutindo a sucessão pela mulher.

Presidente, basicamente, os argumentos do meu voto são: a Constituição não hierarquizou as famílias; a legislação equiparava a companheira e a esposa, e o Código Civil produz um retrocesso nesse tratamento jurídico equiparado, dizendo que a mulher casada vale mais do que a companheira para fins de sucessão.

Desse modo, respeitando todos os pontos de vista diversos e muito bem defendidos pelo Ministro Dias Toffoli, continuo convencido de que aqui existe uma incompatibilidade com a Constituição.

Obrigado, Presidente.

EXTRATO DE ATA

Decisão: Após o voto do Ministro Roberto Barroso (Relator), que dava provimento ao recurso, nos termos do seu voto, no que foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli. Ausentes, justificadamente, o Ministro Gilmar Mendes, e, nesta assentada, o Ministro Ricardo Lewandowski (Presidente). Falaram, pelos amici curiae Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, a Dra. Ana Luiza Maia Nevares, e, pelo amicus curiae Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS, a Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva. Presidência da Ministra Cármen Lúcia (Vice-Presidente). Plenário, 31.08.2016.

Decisão: Após o voto do Ministro Dias Toffoli, que negava provimento ao recurso, pediu vista dos autos o Ministro Marco Aurélio. Ausente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Presidência da Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 30.3.2017.

Presidência da Senhora Ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes.

Vice-Procurador-Geral da República, Dr. José Bonifácio Borges de Andrada.

p/ Doralúcia das Neves Santos

Assessora-Chefe do Plenário

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Presidente, neste caso, minha concepção é diferente. Acompanho o ministro Dias Toffoli na divergência.

Procederei à juntada do voto, repetindo o que acabei de lançar no anterior:

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Atendeu-se aos pressupostos de recorribilidade. A peça está subscrita por advogado regularmente constituído (folha 32). O ato impugnado foi publicado no Diário da Justiça eletrônico de 24 de março de 2011, quinta-feira (folha 82), ocorrendo a manifestação do inconformismo em 8 de abril, sexta-feira (folha 85), no prazo legal.

O tema envolve necessário debate acerca da constitucionalidade do regime de sucessão nas uniões estáveis estabelecido no artigo 1.790 do Código Civil, à luz do alcance do artigo 226 da Carta Federal, e os possíveis reflexos da interpretação nas relações homoafetivas, considerados os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Eis o teor do dispositivo:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

O Direito é uma verdadeira ciência, surgindo inadequado confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel.

Nesse sentido, o Código Civil encerra um sistema. Assim, tem-se o Título II – Do Direito Patrimonial –, com subtítulos e capítulos. Versa o regime de bens entre os cônjuges, dispondo ser lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos bens, o que lhes aprouver – artigo 1.639; regras referentes ao pacto antenupcial – artigos 1.653 a 1.657; o regime de comunhão parcial – artigos 1.658 a 1.666; o regime de comunhão universal – artigos 1.667 a 1.671; o regime de participação final nos aquestos – artigos 1.672 a 1.686; o regime de separação de bens – artigos 1.687 e 1.688.

Relativamente à união estável, tem-se o Título III, prevendo o reconhecimento como entidade familiar – artigo 1.723; as relações pessoais entre os companheiros, versada lealdade, respeito e assistência, guarda, sustento e educação dos filhos – artigo 1.724; a meação, afastada se houver contrato escrito entre os companheiros, aplicando-se, no que couber, no tocante às relações patrimoniais, o regime de comunhão parcial de bens – artigo 1.725; a conversão em casamento mediante pedido dos companheiros ao Juiz e assento no registro civil – artigo 1.726; que as relações não eventuais entre homem e mulher, impedidos de casar, constituem concubinato – artigo 1.727.

O que surge é uma disciplina específica muito próxima da relativa ao casamento. Observem que, em se tratando de comunhão parcial, o cônjuge sobrevivente tem a meação dos bens adquiridos após o casamento, bem como uma quota parte considerados os herdeiros necessários. Da mesma forma, encerrando, mediante remissão ao regime da comunhão parcial de bens, a previsão do artigo 1.725 a meação, salvo contrato escrito entre os companheiros, equivalente ao pacto antenupcial, ocorre, presente o 1.790, disciplina próxima, quanto à quota em concorrência com herdeiros, da alusiva ao próprio casamento.

Percebam haver distinção entre os institutos, admitida pelo próprio texto constitucional, tendo em vista a redação do artigo 226, § 3º, cujo teor é o seguinte:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…]

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

O comando determina ao legislador facilitar a conversão da união estável em casamento, mas em momento algum os equipara. Se o fizesse, perderia a razão de ser, o objeto, a sinalização ao estímulo à transmutação da união estável em casamento. Para que a transformação ante igualização, quanto a consequências patrimoniais? A única similitude entre os institutos é que ambos são considerados, pelo Texto Maior, entidades familiares. E para por aí, uma vez que, mesmo sendo formas de família, a Constituição Federal estabelece, de plano, inexistir espaço para equalização.

Presentes as balizas constitucionais, o Código Civil, bem ou mal, disciplinou tratamentos jurídicos correspondentes, não cabendo ao intérprete substituir a opção do legislador para igualá-los, onde a Carta da República não o fez. Conforme consignado pelo ministro Dias Toffoli, em voto-vista proferido no exame do extraordinário de nº 878.694, relator o ministro Luís Roberto Barroso, em 30 de março de 2017, a questão foi objeto de debates pelo legislador quando da tramitação do projeto. Transcrevo trecho dos fundamentos constantes da Subemenda de Redação do Relator-Geral nº 56, formalizada pelo deputado Ricardo Fiúza:

A própria formulação do texto constitucional já é suficientemente elucidativa a esse respeito : “… para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável… devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (CF, art. 226, § 3º).

É como se a união estável fosse tomada como um caminho para o matrimônio, ou quando muito como um matrimônio incompleto, muito embora já constituísse por si mesma, nos termos da regra constitucional, uma “entidade familiar. A natureza modelar do casamento, sua irrecusável preeminência, reflete-se no Projeto, bastando assinalar, a esse respeito, que na área do Direito de Família a disciplina da união estável se limita a cinco dispositivos sequenciados (arts. 1.737 e 1.739), e na área do Direito das Sucessões é contemplada com um único dispositivo específico (art. 1.814), além de dois outros aplicáveis tanto aos cônjuges quanto aos companheiros (arts. 1.871 e 1.817).

A comparação que se estabeleça entre os preceitos relativos ao matrimônio e as regras disciplinadoras da união estável, constantes do Projeto, demonstra, à primeira vista, a superioridade numérica das primeiras em relação às últimas. Somente há pouco institucionalizada pela lei civil, a disciplina da união estável tem inegável natureza tutelar, e representa o reconhecimento legal de um fato consuetudinário que se aproxima do modelo matrimonial.

A desproporção se evidencia quando se considera a superioridade numérica dos dispositivos que tratam do casamento, a título de Disposições Gerais (arts. 1.510 a 1.515), Capacidade Matrimonial (arts. 1.516 a 1.519), Impedimentos (arts. 1.520 e 1.521), Causas suspensivas (art. 1.522 e 1.523), Habilitação Matrimonial (arts. 1.554 a 1.531), Celebração do Casamento (art. 1.532 a 1.541), Provas do Casamento (arts. 1.542 a 1.546), Invalidade do Casamento (arts. 1.547 a 1.566), Eficácia do Casamento (art. 1.567 a 1.573), Dissolução da Sociedade Conjugal (arts. 1.574 a 1.587), Proteção da Pessoa dos Filhos na Dissolução da Sociedade Conjugal (arts. 1.588 a 1.595), e Regime de Bens entre os Cônjuges (arts. 1.651 a 1.734), totalizando, como se vê, 189 (cento e oitenta e nove) artigos de lei.

As diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõem um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta. Impossibilitado que seja um tratamento igualitário, inclusive por descaracterizar tanto a união estável – enquanto instituição-meio – quanto o casamento – enquanto instituição-fim – na conformidade do preceito constitucional. A natureza tutelar da união estável constitui, na verdade, uma parcial correção da desigualdade reconhecida no plano social e familiar, desde que atentemos ser o casamento mais estável do que a estabilidade da convivência duradoura. Nulidades, anulabilidades, separação, divórcio, figuras indissoluvelmente ligadas ao enlace matrimonial, desaparecem, ou transparecem por analogia, ou se reduzem numericamente, quando transpostas para o relacionamento estável.

A distinção entre os institutos é evidente. Tanto o é que foi reforçada em outros dispositivos do diploma legal, presente o disposto no artigo 1.726 do Código Civil – a possibilidade de a união estável converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao Juiz e assento no Registro Civil. Para alteração do regime, faz-se necessária a formalização da situação de fato, com expressa manifestação de vontade.

Não se vê a linearidade. Trata-se de institutos díspares, com regimes jurídicos próprios, especialmente no âmbito patrimonial. Inexiste campo para potencializar a união estável, sob risco de suplantar o próprio casamento e os vínculos dele decorrentes. Nesse sentido discorreu Wilson Ricardo Ligiera, no artigo “A Incompreendida Constitucionalidade da Sucessão na União Estável no Código Civil brasileiro” [1]:

Não se trata, portanto, de considerar uma suposta superioridade ou inferioridade de tratamento sucessório entre cônjuge e companheiro, mas sim de reconhecer que cada entidade familiar é única no seu modo de constituição e funcionamento, devendo-se considerar cada uma das suas peculiaridades inerentes na definição dos direitos das pessoas envolvidas nestas relações.

Refutando a alegação de que a Constituição Federal pudesse ter equiparado a união estável ao casamento, Álvaro Villaça Azevedo demonstra que isso não ocorreu:

“Realmente, não houve a aludida equiparação, pois a união estável foi reconhecida, como integrante do direito de família, como uma das formas de constituição familiar, nos moldes como foi escolhida pela sociedade”.

Concordamos com o autor que não houve equiparação. Embora todas as entidades familiares mereçam proteção, isso não significa que devam ser tratadas exatamente da mesma maneira. O casamento constitui uma família de direito, que nasce no momento da sua celebração, gerando, naquele exato instante, independentemente do período da relação ou mesmo da quantidade de esforços despendidos, os direitos patrimoniais previstos na lei e desejados – ou ao menos admitidos – pelo casal. A união estável, por outro lado, constitui uma família de fato, a qual, conforme o grau de empenho dos conviventes durante a relação, gerará os efeitos patrimoniais pretendidos pelo legislador.

A sucessão do companheiro, destarte, não pode ser considerada menos ou mais vantajosa, por exemplo, pelo fato de que ele herda dos bens adquiridos a título oneroso durante a convivência, ao passo que o cônjuge herda dos bens particulares do falecido. Tudo dependerá do modo como o patrimônio foi conquistado. O legislador, ao regulamentar a sucessão na união estável, adotou um critério diferente do utilizado para o casamento: neste, o propósito foi não deixar o cônjuge desamparado, quando não tivesse direito à meação, naquela, foi permitir que o companheiro herdasse apenas do patrimônio para cuja aquisição tenha contribuído. São critérios diversos, sem dúvida, mas não necessariamente melhores ou piores entre si. Talvez não tenham sido a escolha mais adequada que o legislador poderia ter tomado (e com certeza não são critérios perfeitos), mas também não podem ser considerados, por este único motivo, inconstitucionais.

Outrossim, não entendemos que o art. 1.790 viole a Constituição da República Federativa do Brasil, nem por conferir ao companheiro um tratamento pior, nem melhor, do que o do cônjuge. O valor da herança, no caso concreto, dependerá de uma série de fatores. O modo diferenciado com que o Código Civil regula a sucessão no casamento e na união estável não é causa, em si mesma, de inconstitucionalidade.

Nem mesmo a articulação quanto à disciplina anterior – Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 – afasta a conclusão pela legitimidade do regime instituído com a promulgação do atual Código Civil. Está-se diante de campo de atuação do legislador, decorrente da própria Constituição Federal, a qual, repita-se à exaustão, não equaliza regimes que dizem respeito a institutos próprios, diferentes, díspares.

Entender de modo diverso, igualando casamento e união estável, em especial no tocante ao direito sucessório, significa, além do prejuízo para os sucessores, desrespeitar a autonomia do casal, quando da opção entre os institutos, em eleger aquele que melhor atendesse à pretensão de constituição do núcleo familiar – casamento ou união estável.

Não cabe ao Judiciário, após a escolha legítima pelos particulares, sabedores das consequências, suprimir a manifestação de vontade com promoção de equiparações, sob pena de ter-se manifesta violação a um dos pilares do Estado Democrático de Direito – o direito à liberdade, à autodeterminação. Ao tratar do assunto no prefácio da obra “Pensadores da Liberdade – Volume 3”, organizada pelo professor Fernando Schüler e Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta, assim destaquei:

A liberdade é um bem maior. Como pensamento, pode-se falar no liberalismo clássico que se desenvolveu considerados John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Adam Smith (1723-1790), Benjamin Constant (1767– 1830), James Madison (1751-1836), Alexis de Tocqueville (1805-1859), John Stuart Mill (1806-1873). Ainda que veiculassem diferentes pontos de vista, todos tinham a noção da liberdade individual como valor inerente ao homem e fundante da sociedade. Da perspectiva histórica, as liberdades clássicas são associadas às revoluções dos séculos XVII e XVIII, notadamente à Revolução Francesa e ao surgimento do Estado Liberal.

Esses acontecimentos estão relacionados ao estabelecimento dos direitos fundamentais como típicos à oposição ao Estado (direitos de defesa), áreas imunes à  intervenção estatal, de primeira geração. Há aqueles que vinculam a liberdade à capacidade de a pessoa desenvolver projetos de vida. Essa distinção foi bem percebida pelo filósofo Isaiah Berlin, que discorreu sobre liberdade negativa liberdade positiva [2].

A negativa é a de coerção externa. De acordo com Berlin, para o cidadão ser livre, não deve sofrer interferência nas atividades por nenhuma outra pessoa ou pela comunidade sem respaldo no exercício de faculdades alheias. Essa dimensão da liberdade opõe-se ao Estado, embora deste se possa precisar para ser assegurada.

Já a positiva diz respeito ao poder e aos recursos que os cidadãos possuem para realizar potencialidades, definir e controlar os projetos de vida por si delineados. É a liberdade para, envolvida a capacidade de autorrealização.

De acordo com o filósofo britânico:

O sentido positivo da palavra “liberdade” deriva do desejo por parte do indivíduo de ser seu próprio mestre.

Eu desejo que minha vida e minhas decisões dependam de mim mesmo, não de forças externas de qualquer espécie. Eu desejo ser o instrumento de meus próprios atos de vontade, e não da vontade dos outros. Eu desejo ser um sujeito, não um objeto; ser movido por razões, por propósitos conscientes que são meus, e não por causas externas que me afetam. Eu desejo ser alguém, não ninguém […] [3].

Incumbe a cada cidadão formular as escolhas de vida que levarão ao desenvolvimento pleno da personalidade, não podendo o Estado-juiz fazer tábula rasa da opção realizada. A Corte Interamericana de Direitos Humanos há muito reconhece a proteção jurídica conferida ao projeto de vida (v. Loayza Tamayo versus Peru, Cantoral Benavides versus Peru), que sem dúvida faz parte do conteúdo existencial da dignidade da pessoa humana. Sobre esse ponto, consignou Antônio Augusto Cançado Trindade no caso Gutiérrez Soler versus Colômbia, julgado em 12 de setembro de 2005:

Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir. Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo projeto encerra em si toda uma dimensão temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendo-se à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe pareçam acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida desvenda, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. (tradução livre)

A prevalecer óptica direcionada à equiparação dos institutos, é possível que ocorram efeitos perversos e contrários à proteção da união estável, com casais de companheiros. Em artigo intitulado “O afeto será prejudicado pelo STF”, publicado no jornal O Estado de São Paulo de 2 de fevereiro de 2017, Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões, referindo-se ao julgamento do recurso extraordinário nº 878.694, bem colocou: Se o STF equiparar indevidamente a união estável ao casamento, os casais em união estável não escolherão entre nela permanecer, ou casar.

Assustados, e com razão, pela insegurança jurídica em que o STF os deixará, os casais em união estável, muito mais provavelmente, ponderarão entre mantê-las, ou dissolvê-las. Se dissolvidas, não existirão direitos sucessórios!

Quem ainda não vive em entidade familiar, possivelmente temeroso de seus efeitos sucessórios, permanecerá sozinho, fará declarações de namoro para assegurar que a relação que vive não é de união estável, enfim, não poderá extravasar seu afeto, terá que contê-lo, tornar-se-á infeliz e isto em razão de uma decisão equivocada do STF.

O STF, então, ou revê seu entendimento, por ora provisório, ou pode ter a certeza de que, apesar de suas melhores intenções, estará contribuindo a afrouxar os relacionamentos e a destruir o afeto.

Se não houver posicionamento pelos Ministros que ainda não votaram pela constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil e revisão dos votos já proferidos, o STF tirará das pessoas o seu direito de amar.

Tais consequências não podem ser ignoradas. Está-se diante de regramentos vigentes há longa data – mais de uma década, no caso do Código Civil, e quase trinta anos, considerado o texto constitucional –, estabilizando expectativas em torno da regência dos institutos.

É temerário igualizar os regimes familiares, a repercutir nas relações sociais, desconsiderando, por completo, o ato de vontade direcionado à constituição de específica entidade familiar que a Carta da República prevê distinta, inconfundível com o casamento, e, portanto, a própria autonomia dos indivíduos de como melhor conduzir a vida a dois. A fortalecer a autonomia na manifestação da vontade, tem-se o instituto do testamento. Existindo herdeiros necessários, é possível testar 50% do patrimônio. Não havendo, embora presente pessoa que inicialmente herdaria, pode-se dispor, em vida, de 100% do patrimônio. Em síntese, nada impede venham os companheiros a prover benefícios maiores do que os assegurados em Lei, para o caso de falecimento.

É impróprio, após a dissolução da unidade familiar com a morte de um dos companheiros, convertê-la em outra diversa, inobservando a adoção, quando em vida, de certo regime jurídico, inclusive no tocante aos direitos patrimoniais. Não há como afirmar que o companheiro falecido aderiria a regime jurídico diverso do alusivo à união estável, surgindo incompatível justamente com a autodeterminação da pessoa a revisão após o óbito. Esse é o entendimento revelado nos ensinamentos do professor Miguel Reale [4] ao tratar da força normativa do pacto antenupcial voluntariamente estabelecido pelos nubentes:

Assim ocorre no Direito Civil brasileiro. A escolha do regime de separação total de bens não sendo sequer supletiva, mas absolutamente facultativa, expressa ato de liberdade conjuntamente exercida, obedecendo, como tal, ao regime contratual. Portanto, é esse justamente o regime no qual os princípios da autonomia privada e da confiança mais fortemente atuam como cânone hermenêutico.

Na doutrina mais recente, Karime Costalunga, traça as ligações inter-sistemáticas entre a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional fundamental; a proteção da personalidade e da esfera de liberdade humana; bem como os princípios da exclusividade (Código Civil, art. 1.513, segundo o qual “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão da vida, instituída pela família”) e do “livre exercício da vida privada”. Dessas conexões resulta a conclusão pela qual,

Se facultar ao casal decidir sobre o regime de bens está em acordo com as premissas do princípio da exclusividade, conforme nos ensina Tércio Sampaio Ferraz, deveria, necessariamente, haver a coerente projeção dessa faculdade no Direito sucessório.

Por isso propõe interpretação à mencionada regra de modo congruente “aos demais princípios e regras do ordenamento”, de modo a evitar que, por intermédio de uma interpretação meramente literal e assistemática, seja atingido o princípio da exclusividade; ferida “a lícita autodeterminação em matéria patrimonial, contradizendo a própria finalidade do regime de separação de bens”; e “atingido, assim, direito de personalidade”.

Essa proposição não apenas se afina à função hermenêutica do princípio da autonomia privada assinalada por Francisco dos Santos Amaral Neto.

Também guarda atenção para com o princípio da confiança, que acima mencionamos e com o princípio da coerência axiológica do Ordenamento.

Com efeito, pensamos que não faria o menor sentido (i) assegurar-se constitucionalmente às pessoas a proteção de sua dignidade, na qual se inclui a autodeterminação; (ii) garantir-se a tutela de sua personalidade; (iii) possibilitar-se aos cônjuges a lícita escolha do regime da separação total de bens; (iv) facultar-se que expressem tal ato de autonomia em pacto antenupcial, dotado de publicidade e eficácia de oponibilidade perante terceiros; (v) alterar-se, respeitantemente ao Código de 1916, a regra relativa à outorga conjugal para a alienação de seus bens, dispensando-se a outorga conjugal quando da alienação ou constituição de ônus reais sobre imóveis; (vi) determinar-se, no Código, que a vida do casal é regida pelo “princípio da exclusividade”, sendo defeso a terceiros ou ao Estado interferir nas escolhas licitamente feitas quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar; para, ao final, dar-se ao indigitado art. 1829, I, interpretação que contraria todas aquelas premissas e nega aos efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido.

Cremos, mesmo, que tal interpretação contrariaria as “balizas de licitude” dos negócios jurídicos postas no art. 187 do Código Civil, de modo especial as da finalidade  econômico-social do negócio e da boa-fé.

[…]

Por sua vez, a boa-fé, como emanação da lealdade que efetivamente é, estaria também sendo ferida. É que o regime da separação total, quando voluntário, decorre de uma afirmação formal da vontade de ambos os nubentes.

Assim sendo, o nubente que voluntariamente escolheu o regime da separação total, formalizando-o em pacto antenupcial não pode, quando morto seu consorte, valerse de uma interpretação meramente literal para, no momento sucessório, contraditar ou desconsiderar a vontade lícita e formalmente emanada por ambos.

Cumpre analisar os reflexos da interpretação para as relações homoafetivas, à luz, é claro, dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, não me impressiona o argumento quanto à inexistência de previsão de casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Não está em jogo o reconhecimento de lacuna legislativa a tratar do tema, e sim a possibilidade de, presente o artigo 226, § 3º, da Carta Maior, equiparar, para fins sucessórios, o regime da união estável homoafetiva ao do casamento.

Há de se ter em conta que o Supremo, ao apreciar a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132, relator o ministro Carlos Ayres Britto, reconheceu como família a união entre pessoas do mesmo sexo, estendendo a esse núcleo as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva.

Corre-se o risco de afrontar princípios, caso estabelecido o regime diferenciado, considerada a orientação sexual do cidadão, o qual, ao escolher pela formação de núcleo familiar a partir de união estável, poderá se submeter a regime jurídico completamente díspar.

Desprovejo o extraordinário, fixando a tese segundo a qual é constitucional o regime sucessório previsto no artigo 1.790 do Código Civil, a reger união estável, independentemente da orientação sexual dos companheiros.

V O T O – V I S T A

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – O recurso volta-se a infirmar acórdão mediante o qual o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais concluiu constitucional o inciso III do artigo 1.790 do Código Civil, assentando encontrar respaldo no Diploma Maior o tratamento diferenciado entre casamento e união estável (§ 3º do artigo 226), inexistindo equiparação ante regências distintas, devendo-se respeitar a autonomia da vontade de quem assumiu o ônus do casamento e daqueles que preferiram viver em união estável. No caso concreto, observa-se a concorrência da companheira sobrevivente com os irmãos do falecido, não havendo ascendentes ou descendentes. Eis a ementa do acórdão:

APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA. DIREITOS SUCESSÓRIOS DA COMPANHEIRA. ARTIGO 1.790, III, DO CÓDIGO CIVIL. CONSTITUCIONALIDADE. RECONHECIMENTO PELO ÓRGÃO ESPECIAL DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DO DIREITO DE A COMPANHEIRA SOBREVIVENTE HERDAR TÃO SOMENTE OS BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL, EM CONCORRÊNCIA COM OS PARENTES COLATERAIS DE SEGUNDO GRAU, EXCLUÍDOS, PORTANTO, OS BENS PARTICULARES. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1) O Órgão Especial deste Tribunal reconheceu a constitucionalidade do art. 1.790, quando do julgamento do Incidente de nº 1.0512.06.0322313-2/002, por entender que o ordenamento jurídico constitucional não impede que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma diferenciada, visto que respectivas entidades familiares são institutos que contêm diferenciações.

2) A teor do inciso III do art. 1790 do Código Civil, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro faz jus tão somente a um terço dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável a título de herança, pois concorre com os colaterais até quarto grau, devendo ser excluídos sua participação como herdeiro dos bens particulares do de cujus.

2. O recurso busca fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal. A parte recorrente alega violação aos arts. 5º, I, e 226, § 3º, ambos da Constituição. Defende-se a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, por prever tratamento diferenciado e discriminatório à companheira em relação à mulher casada. A recorrente alega, ainda, a violação à dignidade da pessoa humana, tendo em vista que o acórdão permitiu a concorrência de parentes distantes do falecido com o companheiro sobrevivente. Requer ainda que, verificada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC, seja declarada a aplicação do art. 1.829 do mesmo Código, em consonância ao disposto na Constituição.

No extraordinário, protocolado com base na alínea “a” do permissivo constitucional, a recorrente articula com a transgressão ao disposto nos artigos 5º, cabeça, e 226, § 3º, da Constituição Federal. Alega não haver diferença entre famílias constituídas por meio de união estável e as formadas mediante casamento. Consoante aduz, ambas merecem a mesma proteção e garantia do Estado. Afirma prever a Lei nº 8.971/1994 concorrência do companheiro somente com ascendentes e descendentes do falecido, tendo aquele direito à totalidade da herança na ausência destes, silenciando sobre o tema a Lei nº 9.278/1996. Ressalta violarem o princípio da proibição do retrocesso em matéria de direitos fundamentais as disposições do artigo 1.790 do Código Civil.

Na sessão de 31 de agosto de 2016, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou pelo provimento do recurso, fixando a tese no sentido da inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002.

Iniciada a tomada dos demais votos, o ministro Dias Toffoli pediu vista, devolvendo o processo para julgamento em 30 de março de 2017.

Na oportunidade, Sua Excelência inaugurou a divergência por entender inexistente inconstitucionalidade na disciplina versada no artigo 1.790 do Código Civil. Concluiu legítima a opção do legislador de conferir tratamento diferenciado à sucessão na união estável em relação ao casamento, ante a falta de equalização dos institutos pelo Diploma Maior.

Pedi vista por ser relator do recurso extraordinário nº 646.721, no qual discutida situação semelhante – diferenciação de cônjuge e companheiro no tocante aos direitos sucessórios, sob a óptica de relação homoafetiva. Sinalizei estar em jogo um sistema dual constitucional em vigor há trinta anos, praticamente, e, sob o ângulo legal, presente o Código Civil, vigente há quinze. Entendi pertinente que ambos os recursos fossem pautados e julgados em conjunto, permitindo uma reflexão mais aprofundada quanto à solução a ser implementada.

Pois bem, o tema envolve necessário debate acerca da constitucionalidade do regime de sucessão nas uniões estáveis estabelecido no artigo 1.790 do Código Civil, à luz do alcance do artigo 226 da Carta Federal. Eis o teor do dispositivo:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

O Direito é uma verdadeira ciência, surgindo inadequado confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel.

Nesse sentido, o Código Civil encerra um sistema. Assim, tem-se o Título II – Do Direito Patrimonial –, com subtítulos e capítulos. Versa o regime de bens entre os cônjuges, dispondo ser lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos bens, o que lhes aprouver – artigo 1.639; regras referentes ao pacto antenupcial – artigos 1.653 a 1.657; o regime de comunhão parcial – artigos 1.658 a 1.666; o regime de comunhão universal – artigos 1.667 a 1.671; o regime de participação final nos aquestos – artigos 1.672 a 1.686; o regime de separação de bens – artigos 1.687 e 1.688.

Relativamente à união estável, tem-se o Título III, prevendo o reconhecimento como entidade familiar – artigo 1.723; as relações pessoais entre os companheiros, versada lealdade, respeito e assistência, guarda, sustento e educação dos filhos – artigo 1.724; a meação, afastada se houver contrato escrito entre os companheiros, aplicando-se, no que couber, no tocante às relações patrimoniais, o regime de comunhão parcial de bens – artigo 1.725; a conversão em casamento mediante pedido dos companheiros ao Juiz e assento no registro civil – artigo 1.726; que as relações não eventuais entre homem e mulher, impedidos de casar, constituem concubinato – artigo 1.727.

O que surge é uma disciplina específica muito próxima da relativa ao casamento. Observem que, em se tratando de comunhão parcial, o cônjuge sobrevivente tem a meação dos bens adquiridos após o casamento, bem como uma quota parte considerados os herdeiros necessários. Da mesma forma, encerrando, mediante remissão ao regime da comunhão parcial de bens, a previsão do artigo 1.725 a meação, salvo contrato escrito entre os companheiros, equivalente ao pacto antenupcial, ocorre, presente o 1.790, disciplina próxima, quanto à quota em concorrência com herdeiros, da alusiva ao próprio casamento.

Percebam haver distinção entre os institutos, admitida pelo próprio texto constitucional, tendo em vista a redação do artigo 226, § 3º, cujo teor é o seguinte:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…]

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

O comando determina ao legislador facilitar a conversão da união estável em casamento, mas em momento algum os equipara. Se o fizesse, perderia a razão de ser, o objeto, a sinalização ao estímulo à transmutação da união estável em casamento. Para que a transformação ante igualização, quanto a consequências patrimoniais? A única similitude entre os institutos é que ambos são considerados pelo Texto Maior entidades familiares. E para por aí, uma vez que, mesmo sendo formas de família, a Lei Fundamental estabelece, de plano, inexistir espaço para equalização.

Presentes as balizas constitucionais, o Código Civil, bem ou mal, disciplinou tratamentos jurídicos correspondentes, não cabendo ao intérprete substituir a opção do legislador para igualá-los, onde a Carta da República não o fez. Conforme consignado pelo ministro Dias Toffoli, em voto-vista proferido na sessão de 30 de março de 2017, a questão foi objeto de debates pelo legislador quando da tramitação do projeto.

Transcrevo trecho dos fundamentos constantes da Subemenda de Redação do Relator-Geral nº 56, formalizada pelo deputado Ricardo Fiúza:

A própria formulação do texto constitucional já é suficientemente elucidativa a esse respeito : “… para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável… devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (CF, art. 226, § 3º).

É como se a união estável fosse tomada como um caminho para o matrimônio, ou quando muito como um matrimônio incompleto, muito embora já constituísse por si mesma, nos termos da regra constitucional, uma “entidade familiar. A natureza modelar do casamento, sua irrecusável preeminência, reflete-se no Projeto, bastando assinalar, a esse respeito, que na área do Direito de Família a disciplina da união estável se limita a cinco dispositivos sequenciados (arts. 1.737 e 1.739), e na área do Direito das Sucessões é contemplada com um único dispositivo específico (art. 1.814), além de dois outros aplicáveis tanto aos cônjuges quanto aos companheiros (arts. 1.871 e 1.817).

A comparação que se estabeleça entre os preceitos relativos ao matrimônio e as regras disciplinadoras da união estável, constantes do Projeto, demonstra, à primeira vista, a superioridade numérica das primeiras em relação às últimas.

Somente há pouco institucionalizada pela lei civil, a disciplina da união estável tem inegável natureza tutelar, e representa o reconhecimento legal de um fato consuetudinário que se aproxima do modelo matrimonial.

A desproporção se evidencia quando se considera a superioridade numérica dos dispositivos que tratam do casamento, a título de Disposições Gerais (arts. 1.510 a 1.515), Capacidade Matrimonial (arts. 1.516 a 1.519), Impedimentos (arts. 1.520 e 1.521), Causas suspensivas (art. 1.522 e 1.523), Habilitação Matrimonial (arts. 1.554 a 1.531), Celebração do Casamento (art. 1.532 a 1.541), Provas do Casamento (arts. 1.542 a 1.546), Invalidade do Casamento (arts. 1.547 a 1.566), Eficácia do Casamento (art. 1.567 a 1.573), Dissolução da Sociedade Conjugal (arts. 1.574 a 1.587), Proteção da Pessoa dos Filhos na Dissolução da Sociedade Conjugal (arts. 1.588 a 1.595), e Regime de Bens entre os Cônjuges (arts. 1.651 a 1.734), totalizando, como se vê, 189 (cento e oitenta e nove) artigos de lei.

As diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõem um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta. Impossibilitado que seja um tratamento igualitário, inclusive por descaracterizar tanto a união estável – enquanto instituição-meio – quanto o casamento – enquanto instituiçãofim – na conformidade do preceito constitucional. A natureza tutelar da união estável constitui, na verdade, uma parcial correção da desigualdade reconhecida no plano social e familiar, desde que atentemos ser o casamento mais estável do que a estabilidade da convivência duradoura. Nulidades, anulabilidades, separação, divórcio, figuras indissoluvelmente ligadas ao enlace matrimonial, desaparecem, ou transparecem por analogia, ou se reduzem numericamente, quando transpostas para o relacionamento estável.

A distinção entre os institutos é evidente. Tanto o é que foi reforçada em outros dispositivos do diploma legal, presente o disposto no artigo 1.726 do Código Civil – a possibilidade de a união estável converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao Juiz e assento no Registro Civil. Para alteração do regime, faz-se necessária a formalização da situação de fato, com expressa manifestação de vontade.

Não se vê a linearidade. Trata-se de institutos díspares, com regimes jurídicos próprios, especialmente no âmbito patrimonial. Inexiste campo para potencializar a união estável, sob risco de suplantar o próprio casamento e os vínculos dele decorrentes. Nesse sentido discorreu Wilson Ricardo Ligiera, no artigo “A Incompreendida Constitucionalidade da Sucessão na União Estável no Código Civil brasileiro” [1]:

Não se trata, portanto, de considerar uma suposta superioridade ou inferioridade de tratamento sucessório entre cônjuge e companheiro, mas sim de reconhecer que cada entidade familiar é única no seu modo de constituição e funcionamento, devendo-se considerar cada uma das suas peculiaridades inerentes na definição dos direitos das pessoas envolvidas nestas relações.

Refutando a alegação de que a Constituição Federal pudesse ter equiparado a união estável ao casamento, Álvaro Villaça Azevedo demonstra que isso não ocorreu: “Realmente, não houve a aludida equiparação, pois a união estável foi reconhecida, como integrante do direito de família, como uma das formas de constituição familiar, nos moldes como foi escolhida pela sociedade”.

Concordamos com o autor que não houve equiparação.

Embora todas as entidades familiares mereçam proteção, isso não significa que devam ser tratadas exatamente da mesma maneira. O casamento constitui uma família de direito, que nasce no momento da sua celebração, gerando, naquele exato instante, independentemente do período da relação ou mesmo da quantidade de esforços despendidos, os direitos patrimoniais previstos na lei e desejados – ou ao menos admitidos – pelo casal. A união estável, por outro lado, constitui uma família de fato, a qual, conforme o grau de empenho dos conviventes durante a relação, gerará os efeitos patrimoniais pretendidos pelo legislador.

A sucessão do companheiro, destarte, não pode ser considerada menos ou mais vantajosa, por exemplo, pelo fato de que ele herda dos bens adquiridos a título oneroso durante a convivência, ao passo que o cônjuge herda dos bens particulares do falecido. Tudo dependerá do modo como o patrimônio foi conquistado. O legislador, ao regulamentar a sucessão na união estável, adotou um critério diferente do utilizado para o casamento: neste, o propósito foi não deixar o cônjuge desamparado, quando não tivesse direito à meação, naquela, foi permitir que o companheiro herdasse apenas do patrimônio para cuja aquisição tenha contribuído. São critérios diversos, sem dúvida, mas não necessariamente melhores ou piores entre si. Talvez não tenham sido a escolha mais adequada que o legislador poderia ter tomado (e com certeza não são critérios perfeitos), mas também não podem ser considerados, por este único motivo, inconstitucionais.

Outrossim, não entendemos que o art. 1.790 viole a Constituição da República Federativa do Brasil, nem por conferir ao companheiro um tratamento pior, nem melhor, do que o do cônjuge. O valor da herança, no caso concreto, dependerá de uma série de fatores. O modo diferenciado com que o Código Civil regula a sucessão no casamento e na união estável não é causa, em si mesma, de inconstitucionalidade.

Nem mesmo a articulação quanto à disciplina anterior – Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 – afasta a conclusão pela legitimidade do regime instituído com a promulgação do atual Código Civil. Está-se diante de campo de atuação do legislador, decorrente da própria Constituição Federal, a qual, repita-se à exaustão, não equaliza regimes que dizem respeito a institutos próprios, diferentes, díspares.

Entender de modo diverso, igualando casamento e união estável, em especial no tocante ao direito sucessório, significa, além do prejuízo para os sucessores, desrespeitar a autonomia do casal, quando da opção entre os institutos, em eleger aquele que melhor atendesse à pretensão de constituição do núcleo familiar – casamento ou união estável.

Não cabe ao Judiciário, após a escolha legítima pelos particulares, sabedores das consequências, suprimir a manifestação de vontade com promoção de equiparações, sob pena de ter-se manifesta violação a um dos pilares do Estado Democrático de Direito – o direito à liberdade, à autodeterminação. Ao tratar do assunto no prefácio da obra “Pensadores da Liberdade – Volume 3”, organizada pelo professor Fernando Schüler e Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta, assim destaquei:

A liberdade é um bem maior. Como pensamento, pode-se falar no liberalismo clássico que se desenvolveu considerados John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Adam Smith (1723-1790), Benjamin Constant (1767-1830), James Madison (1751-1836), Alexis de Tocqueville (1805-1859), John Stuart Mill (1806-1873). Ainda que veiculassem diferentes pontos de vista, todos tinham a noção da liberdade individual como valor inerente ao homem e fundante da sociedade. Da perspectiva histórica, as liberdades clássicas são associadas às revoluções dos séculos XVII e XVIII, notadamente à Revolução Francesa e ao surgimento do Estado Liberal.

Esses acontecimentos estão relacionados ao estabelecimento dos direitos fundamentais como típicos à oposição ao Estado (direitos de defesa), áreas imunes à intervenção estatal, de primeira geração. Há aqueles que vinculam a liberdade à capacidade de a pessoa desenvolver projetos de vida. Essa distinção foi bem percebida pelo filósofo Isaiah Berlin, que discorreu sobre liberdade negativa liberdade Positiva [2].

A negativa é a de coerção externa. De acordo com Berlin, para o cidadão ser livre, não deve sofrer interferência nas atividades por nenhuma outra pessoa ou pela comunidade sem respaldo no exercício de faculdades alheias. Essa dimensão da liberdade opõe-se ao Estado, embora deste se possa precisar para ser assegurada.

Já a positiva diz respeito ao poder e aos recursos que os cidadãos possuem para realizar potencialidades, definir e controlar os projetos de vida por si delineados. É a liberdade para, envolvida a capacidade de autorrealização. De acordo com o filósofo britânico:

O sentido positivo da palavra “liberdade” deriva do desejo por parte do indivíduo de ser seu próprio mestre. Eu desejo que minha vida e minhas decisões dependam de mim mesmo, não de forças externas de qualquer espécie. Eu desejo ser o instrumento de meus próprios atos de vontade, e não da vontade dos outros. Eu desejo ser um sujeito, não um objeto; ser movido por razões, por propósitos conscientes que são meus, e não por causas externas que me afetam. Eu desejo ser alguém, não ninguém […] [3].

Incumbe a cada cidadão formular as escolhas de vida que levarão ao desenvolvimento pleno da personalidade, não podendo o Estado-juiz fazer tábula rasa da opção realizada. A Corte Interamericana de Direitos Humanos há muito reconhece a proteção jurídica conferida ao projeto de vida (v. Loayza Tamayo versus Peru, Cantoral Benavides versus Peru), que sem dúvida faz parte do conteúdo existencial da dignidade da pessoa humana. Sobre esse ponto, consignou Antônio Augusto Cançado Trindade no caso Gutiérrez Soler versus Colômbia, julgado em 12 de setembro de 2005:

Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir.

Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo projeto encerra em si toda uma dimensão temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendo-se à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe pareçam acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida desvenda, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. (tradução livre)

A prevalecer óptica direcionada à equiparação dos institutos, é possível que ocorram efeitos perversos e contrários à proteção da união estável, com casais de companheiros. Em artigo intitulado “O afeto será prejudicado pelo STF”, publicado no jornal O Estado de São Paulo de 2 de fevereiro de 2017, Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões, entidade admitida como terceira interessada, referindo-se ao início do julgamento do presente extraordinário em sessão de 31 de agosto de 2016, bem colocou:

Se o STF equiparar indevidamente a união estável ao casamento, os casais em união estável não escolherão entre nela permanecer, ou casar.

Assustados, e com razão, pela insegurança jurídica em que o STF os deixará, os casais em união estável, muito mais provavelmente, ponderarão entre mantê-las, ou dissolvê-las. Se dissolvidas, não existirão direitos sucessórios!

Quem ainda não vive em entidade familiar, possivelmente temeroso de seus efeitos sucessórios, permanecerá sozinho, fará declarações de namoro para assegurar que a relação que vive não é de união estável, enfim, não poderá extravasar seu afeto, terá que contê-lo, tornar-se-á infeliz e isto em razão de uma decisão equivocada do STF.

O STF, então, ou revê seu entendimento, por ora provisório, ou pode ter a certeza de que, apesar de suas melhores intenções, estará contribuindo a afrouxar os relacionamentos e a destruir o afeto.

Se não houver posicionamento pelos Ministros que ainda não votaram pela constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil e revisão dos votos já proferidos, o STF tirará das pessoas o seu direito de amar.

Tais consequências não podem ser ignoradas. Está-se diante de regramentos vigentes há longa data – mais de uma década, no caso do Código Civil, e quase trinta anos, considerado o texto constitucional –, estabilizando expectativas em torno da regência dos institutos.

É temerário igualizar os regimes familiares, a repercutir nas relações sociais, desconsiderando, por completo, o ato de vontade direcionado à constituição de específica entidade familiar que a Carta da República prevê distinta, inconfundível com o casamento e, portanto, a própria autonomia dos indivíduos de como melhor conduzir a vida a dois. A fortalecer a autonomia na manifestação da vontade, tem-se o instituto do testamento. Existindo herdeiros necessários, é possível testar 50% do patrimônio. Não havendo, embora presente pessoa que inicialmente herdaria, pode-se dispor, em vida, de 100% do patrimônio. Em síntese, nada impede venham os companheiros a prover benefícios maiores do que os assegurados em Lei, para o caso de falecimento.

É impróprio, após a dissolução da unidade familiar com a morte de um dos companheiros, convertê-la em outra diversa, inobservando a adoção, quando em vida, de certo regime jurídico, inclusive no tocante aos direitos patrimoniais. Não há como afirmar que o companheiro falecido aderiria a regime jurídico diverso do alusivo à união estável, surgindo incompatível justamente com a autodeterminação da pessoa a revisão após o óbito. Esse é o entendimento revelado nos ensinamentos do professor Miguel Reale [4] ao tratar da força normativa do pacto antenupcial voluntariamente estabelecido pelos nubentes:

Assim ocorre no Direito Civil brasileiro. A escolha do regime de separação total de bens não sendo sequer supletiva, mas absolutamente facultativa, expressa ato de liberdade conjuntamente exercida, obedecendo, como tal, ao regime contratual. Portanto, é esse justamente o regime no qual os princípios da autonomia privada e da confiança mais fortemente atuam como cânone hermenêutico.

Na doutrina mais recente, Karime Costalunga, traça as ligações inter-sistemáticas entre a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional fundamental; a proteção da personalidade e da esfera de liberdade humana; bem como os princípios da exclusividade (Código Civil, art. 1.513, segundo o qual “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão da vida, instituída pela família”) e do “livre exercício da vida privada”. Dessas conexões resulta a conclusão pela qual,

Se facultar ao casal decidir sobre o regime de bens está em acordo com as premissas do princípio da exclusividade, conforme nos ensina Tércio Sampaio Ferraz, deveria, necessariamente, haver a coerente projeção dessa faculdade no Direito sucessório.

Por isso propõe interpretação à mencionada regra de modo congruente “aos demais princípios e regras do ordenamento”, de modo a evitar que, por intermédio de uma interpretação meramente literal e assistemática, seja atingido o princípio da exclusividade; ferida “a lícita autodeterminação em matéria patrimonial, contradizendo a própria finalidade do regime de separação de bens”; e “atingido, assim, direito de personalidade”.

Essa proposição não apenas se afina à função hermenêutica do princípio da autonomia privada assinalada por Francisco dos Santos Amaral Neto. Também guarda atenção para com o princípio da confiança, que acima mencionamos e com o princípio da coerência axiológica do Ordenamento.

Com efeito, pensamos que não faria o menor sentido (i) assegurar-se constitucionalmente às pessoas a proteção de sua dignidade, na qual se inclui a autodeterminação; (ii) garantir-se a tutela de sua personalidade; (iii) possibilitar-se aos cônjuges a lícita escolha do regime da separação total de bens; (iv) facultarse que expressem tal ato de autonomia em pacto antenupcial, dotado de publicidade e eficácia de oponibilidade perante terceiros; (v) alterar-se, respeitantemente ao Código de 1916, a regra relativa à outorga conjugal para a alienação de seus bens, dispensando-se a outorga conjugal quando da alienação ou constituição de ônus reais sobre imóveis; (vi) determinar-se, no Código, que a vida do casal é regida pelo “princípio da exclusividade”, sendo defeso a terceiros ou ao Estado interferir nas escolhas licitamente feitas quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar; para, ao final, dar-se ao indigitado art. 1829, I, interpretação que contraria todas aquelas premissas e nega aos efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido.

Cremos, mesmo, que tal interpretação contrariaria as “balizas de licitude” dos negócios jurídicos postas no art. 187 do Código Civil, de modo especial as da finalidade econômicosocial do negócio e da boa-fé.

[…]

Por sua vez, a boa-fé, como emanação da lealdade que efetivamente é, estaria também sendo ferida. É que o regime da separação total, quando voluntário, decorre de uma afirmação formal da vontade de ambos os nubentes. Assim sendo, o nubente que voluntariamente escolheu o regime da separação total, formalizando-o em pacto antenupcial não pode, quando morto seu consorte, valer-se de uma interpretação meramente literal para, no momento sucessório, contraditar ou desconsiderar a vontade lícita e formalmente emanada por ambos.

Ante o quadro, acompanhando a divergência inaugurada pelo ministro Dias Toffoli, desprovejo o extraordinário, por entender constitucional o regime sucessório previsto no artigo 1.790 do Código Civil, a reger união estável.

PROPOSTA

O SENHOR MINISTRO ROBERTO BARROSO (RELATOR) – É a mesma tese, Presidente, que é a seguinte: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do Código Civil”.

EXTRATO DE ATA

Decisão: Após o voto do Ministro Roberto Barroso (Relator), que dava provimento ao recurso, nos termos do seu voto, no que foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli. Ausentes, justificadamente, o Ministro Gilmar Mendes, e, nesta assentada, o Ministro Ricardo Lewandowski (Presidente). Falaram, pelos amici curiae Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, a Dra. Ana Luiza Maia Nevares, e, pelo amicus curiae Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS, a Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva. Presidência da Ministra Cármen Lúcia (Vice-Presidente). Plenário, 31.08.2016.

Decisão: Após o voto do Ministro Dias Toffoli, que negava provimento ao recurso, pediu vista dos autos o Ministro Marco Aurélio. Ausente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes.

Presidência da Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 30.3.2017.

Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 809 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Ministro Relator, deu provimento ao recurso, para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 e declarar o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002, vencidos os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que votaram negando provimento ao recurso. Em seguida, o Tribunal, vencido o Ministro Marco Aurélio, fixou tese nos seguintes termos: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”. Ausentes, justificadamente, os Ministros Dias Toffoli e Celso de Mello, que votaram em assentada anterior, e, neste julgamento, o Ministro Luiz Fux, que votou em assentada anterior, e o Ministro Gilmar Mendes. Não votou o Ministro Alexandre de Moraes, sucessor do Ministro Teori Zavascki, que votara em assentada anterior. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 10.5.2017.

Presidência da Senhora Ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os Senhores Ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes.

Vice-Procurador-Geral da República, Dr. José Bonifácio Borges de Andrada.

p/ Doralúcia das Neves Santos

Assessora-Chefe do Plenário

Notas:

1 TJ-SP, Arguicao de Inconstitucionalidade nº 0434423-72.2010.8.26.0000, j. em 14.09.2011, DJ 11.01.2012.

2 TJ-RJ, Arguicao de Inconstitucionalidade nº 0019097-98.2011.8.19.0000, j. em 06.08.2012, DJ 03.09.2012

3 STJ, Arguicoes de Inconstitucionalidade suscitadas nos Recursos Especiais nº 1.291.636, 1.318.249 e 1.135.354

4 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Direito sucessorio brasileiro: ontem, hoje e amanha. Revista Brasileira de Direito de Família, ano III, nº 12, jan.fev.mar./2002, p. 65.

5 Cf. Constituicao de 1934, art. 144; Constituicao de 1937, art. 124; Constituicao de 1946, art. 163; e Constituicao de 1967, art. 167 – posteriormente renumerado para art. 175 pela Emenda Constitucional nº 01/1969.

6 Esse e outros bons exemplos sobre os paradigmas familiares do periodo anterior a Constituicao de 1988 podem ser encontrados em: Gustavo Tepedino. A disciplina civilconstitucional das relacoes familiares. In: Vicente Barreto (Org.). A nova familia: problemas e perspectivas, 1997, pp. 52-56.

7 O ultimo censo realizado pelo IBGE (2010) aponta que mais de um terco das uniões no pais e formada consensualmente por pessoas nao casadas (36,4%). V. http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?view=noticia&id=3&idnoticia=2240&busca=1&t=censo-2010-unioes-consensuais-jarepresentam-mais-13-casamentos-sao-frequentes-classes

8 Essa alteracao no conceito de familia manifestou-se ate mesmo no dicionario. No Dicionario Houaiss, a familia nao e mais um “1. Grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (especialmente o pai, a mae e os filhos), que tem ancestralidade comum ou provem de um mesmo tronco, ou ligadas entre si pelo casamento e pela filiacao, excepcionalmente pela adocao”, mas um “1. Nucleo social de pessoas unidas por lacos afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaco e mantem entre si uma relacao solidaria”.

9 Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, 2008, p. 397, e Maria Berenice Dias, Manual de direito das familias, 2013, p. 43-44.

10 STF, Sumula 380: Comprovada a existencia de sociedade de fato entre os concubinos, e cabivel a sua dissolucao judicial, com a partilha do patrimonio adquirido pelo esforço comum.

11 Luiz Edson Fachin, Carlos Eduardo Pianovski, A dignidade humana no direito contemporaneo: uma contribuicao a critica da raiz dogmatica do neopositivismo constitucionalista. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol.35, p. 108, jul/set. 2008.

12 ADPF 132 e ADI 4277, Rel. Min. Ayres Britto, j. em 05.05.2011.

13 Lei nº 8.971/1994, art. 2o: “As pessoas referidas no artigo anterior participarao da sucessao do(a) companheiro(a) nas seguintes condicoes: (…) III – na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente tera direito a totalidade da heranca.”

14 CC/1916, art. 1611: “Na falta de descendentes ou ascendentes sera deferida a sucessao ao conjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, nao estava dissolvida a sociedade conjugal.”

15 Veja-se: CC/1916, art. 1611, §2o: “Ao conjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhao universal, enquanto viver e permanecer viuvo sera assegurado, sem prejuizo da participacao que lhe caiba na heranca, o direito real de habitacao relativamente ao imóvel destinado a residencia da familia, desde que seja o unico bem daquela natureza a inventariar.”

16 Lei nº 9.278/1996, art. 7o, paragrafo unico: “Dissolvida a uniao estavel por morte de um dos conviventes, o sobrevivente tera direito real de habitacao, enquanto viver ou não constituir nova uniao ou casamento, relativamente ao imovel destinado a residencia da familia.”

17 Zeno Veloso, Novo codigo civil: sucessao dos conjuges. Revista do Advogado, São Paulo, n. 98, p. 237-238, 2008.

18 Essa discrepancia despertou inumeras criticas da doutrina, que nao via razoabilidade na medida. Sobre o tema, v. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Direito sucessorio brasileiro: ontem, hoje e amanha. In: Revista Brasileira de Direito de Familia, ano III, nº 12, p. 68, jan.-mar./2002.

19 CC/2002, art. 1845: Herdeiros necessarios sao descendentes, ascendentes e conjuges

20 A heranca nao se confunde, e claro, com a meacao, que corresponde a metade do patrimonio comum do casal, a que faz jus o conjuge ou o companheiro, a depender do regime de bens adotado.

21 Zeno Veloso, Do direito sucessorio dos companheiros. In: Maria Berenice Dias; Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.), Direito de família e o novo código civil, 2005, p. 249.

22 Para um estudo dos anais do processo constituinte acerca da norma contida no art. 226 da CF/88, v. http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituica o-cidada/o-processo-constituinte.

23 Gustavo Tepedino. A disciplina civil-constitucional das relacoes familiares. In: Vicente Barreto (org.). A nova família: problemas e perspectivas, 1997, p. 58-59.

24 E o caso, por exemplo, do deferimento de licenca-gala para servidores que formalizam uniao estavel quando a legislacao apenas preve o beneficio na hipotese de casamento.

25 Luis Roberto Barroso, “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito contemporaneo e no discurso transnacional, Revista dos Tribunais, vol. 919, p. 127, maio/2012.

26 Ronald Dworkin, The sovereign virtue: the theory and practice of equality, 2002, p. 1-7.

27 Sobre o tema, ver: Daniel Sarmento, Claudio Pereira de Souza Neto, Direito Constitucional: teoria, historia e metodos de trabalho, 2014, p. 482 e sgs; Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, 2015.

28 Nesse sentido, vejam-se: RE 418376. Rel. p/ acordao Min. Joaquim Barbosa; ADI 3112, Rel. Min. Enrique Lewandowski; HC 104410, Rel. Min. Gilmar Mendes; e HC 16212, Rel. Min. Marco Aurelio.

29 A protecao insuficiente de determinado direito ou principio constitucional e apurada atraves da aplicacao dos subprincipios da principio da proporcionalidade, devendo-se verificar, no caso concreto, “(a) se a sua omissao ou atuacao deficiente contribuiu para a promocao de algum objetivo legitimo (subprincipio da adequacao); (b) se nao existia outro meio menos prejudicial aquele direito que favorecesse, em igual intensidade o citado objetivo (subprincipio da necessidade); e (c) se a promocao do referido objetivo compensa, sob o angulo constitucional, a deficiencia na protecao ou promocao do direito em discussão (subprincipio da proporcionalidade em sentido estrito).” (Claudio Pereira de Souza Neto; Daniel Sarmento. Op. cit., p. 481)

30 Sobre o tema, ver: Christian Courtis (org.), Ni un paso atrás: La prohibicion de regresividad en material de derechos sociales, 2006; Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O comeco da historia. A nova interpretacao constitucional e o papel dos principio no direito brasileiro. In: A nova interpretação constitucional: ponderacao, direitos fundamentais e relacoes privadas, 2003, p. 370. Felipe Derbli, Proibicao de retrocesso social: uma proposta de sistematizacao a luz da Constituicao de 1988, In: A reconstrução democrática do direito público no Brasil, 2007; Ingo Wolfgang Sarlet. Proibicao de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais: manifestacao de um constitucionalismo dirigente possivel, Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 15, set.-nov./2008.

31 Relatorio Geral da Comissao Especial do Codigo Civil. Parecer final as emendas do Senado Federal feitas ao Projeto de Lei da Camara nº 118, de 1984, que institui o Codigo Civil. Relator-Geral: Deputado Ricardo Fiuza, volume 1, p. 44. V. http://www.camara.gov.br/Internet/comissao/index/esp/CEPL634_parecer%20do%20relator.pdf.

1 Eis a redação do art. 1790 do Código Civil de 2002: “Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”.

2 WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São Paulo: Sugestões Literárias, 1972, p. 96.

3 Para uma perspectiva sobre essa distinção, confira-se a reflexão de Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, (igualdade de aplicação do direito e igualdade na criação do direito – respectivamente, igualdade perante a lei e igualdade da lei), em: PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. Trad. Antônio Francisco de Sousa e Antonio Franco. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 205.

4 GUEDES, Jefferson Carús. Igualdade e Desigualdade: Introdução conceitual, normativa e histórica dos princípios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 128.

5 A partir dos dados do IBGE sobre o divórcio, relatório de 2014, destaco: “No primeiro ano da investigação, 1984, a pesquisa Estatísticas do Registro Civil contabilizou 30 847 divórcios concedidos. Ao analisar a evolução dos números de divórcios registrados em 1994, 2004 e 2014 com os registrados no primeiro ano do decênio anterior, verifica-se que esses assentamentos têm aumentado gradualmente, em especial na última década, com as seguintes variações: em 1994, foram registradas 94 126 dissoluções, representando um acréscimo de 205,1%; em 2004, observou-se uma aceleração moderada, com 130 527 divórcios concedidos, evidenciando um aumento de 38,7%; e, em 2014, foram realizados 341 181 assentamentos de divórcios concedidos, perfazendo um crescimento de 161,4% em relação a 2004 (Tabela 10). A elevação sucessiva, ao longo dos anos, do número de divórcios concedidos revela uma gradual mudança de comportamento da sociedade brasileira, que passou a aceitá-lo com maior naturalidade e a acessar os serviços de Justiça de modo a formalizar as dissoluções dos casamentos. Cabe destacar, por outro lado, que entre 2013 e 2014 a variação do número de divórcios registrados foi 5,0%, o que, em termos absolutos, representou 16.260 divórcios a mais. Em decorrência dessa elevação, a taxa geral de divórcios (2,41 por 1 000 habitantes de 20 anos ou mais de idade) teve pequeno acréscimo (0,07‰), porém mantendo o patamar acima dos valores observados antes da alteração legal ocorrida por meio da Emenda Constitucional n. 66, de 13.07.2010”. Cfr. BRASIL. Estatísticas do Registro Civil, 2014. Volume 41. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2014_v41.pdf>, acesso em 15.08.2016.

6 Sobre os recasamentos, também a partir de dados do IBGE, relatório de 2014, menciono: “Em paralelo, houve crescimento da proporção de recasamentos (quando pelo menos um dos cônjuges tinha o estado civil divorciado ou viúvo), que alcançaram 23,6% do total das uniões formalizadas em 2014, contrastando com as proporções de 13,7% e 17,6% observadas, respectivamente, em 2004 e 2009. Ressaltase que o crescimento do número de recasamentos ocorridos na última década é um dos fatores que têm impulsionado a elevação das taxas de nupcialidade legal, concomitantemente também atrelados ao aumento da idade média de homens e mulheres na data do casamento. Tais fatores, além disso, expressam com mais intensidade as alterações nos padrões de nupcialidade e na formação dos arranjos familiares que se formalizaram no período”. Cfr. BRASIL. Estatísticas do Registro Civil, 2014. Volume 41. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2014_v41.pdf>, acesso em 15.08.2016.

7 Dados trazidos a lume pelos pesquisadores Alice Taylor, Giovanna Lauro, Marcio Segundo e Margaret Greene, na pesquisa “Ela vai no meu barco” Casamento na infância e adolescência no Brasil”. Cfr.: TAYLOR, A.Y., LAURO, G., SEGUNDO, M., GREENE, M.E. “Ela vai no meu barco.” Casamento na infância e adolescência no Brasil. Resultados de Pesquisa de Método Misto. Rio de Janeiro e Washington DC: Instituto Promundo & Promundo-US. Setembro 2015.

8 GIORGIS, José Carlos Teixeira. As famílias solitárias. In: ADV advocacia dinâmica: informativo, v. 28, n. 45, p. 764, nov. 2008, p. 764.

9 Confira-se, também a partir de José Carlos Teixeira Giorgis a arqueologia do matriarcado originário de relações matrilineares e a posterior mudança social referente ao domínio masculino em posterior relação de dominação patrilinear, em: GIORGIS, José Carlos Teixeira. A Família Matriarcal. ADV advocacia dinâmica: informativo, v. 28, n. 39, p. 666-665, set. 2008.

10 GIORGIS, José Carlos Teixeira. Direito de Família Contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 48.

11 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

12 GUEDES, Jefferson Carús. Igualdade e Desigualdade: Introdução conceitual, normativa e histórica dos princípios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 178.

13 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. Trad. Antônio Francisco de Sousa e Antonio Franco. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 66.

14 SOUSA, Jose Pedro Galvao de. O Sentido Comunitario do Casamento e da Familia. Revista Chilena de Derecho, Vol. 7, 1980, pp. 321-334.

15 A este respeito, a propósito, o fragmento contido na opinião da Corte: “As the role and status of women changed, the institution further evolved. Under the centuries-old doctrine of coverture, a married man and woman were treated by the State as a single, maledominated legal entity”. Cfr. Caso Obergefell v. Hodges, 576 U.S. (2015).

16 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. The reception of European ideas in Latin America: the issue of the German sources in Tobias Barreto, a prominent nineteenth century Brazilian legal scholar. Revista de Direito Internacional (Brazilian Journal of International Law) v. 13, n. 1 (2016).

17 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A Influência do BGB e da Doutrina Alemã no Direito Civil Brasileiro do Século XX. Revista dos Tribunais, v. 938, dez./2013, p. 79-155.

18 JUSTO, Antônio dos Santos. O Direito Brasileiro: Raízes Históricas. Revista Brasileira de Direito Comparado, n° 20, jan-jun, 2001.

19 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Pimenta de Mello, 1928. p. 49.

20 MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do Direito Civil Brasileiro: Das Origens aos Dias Atuais. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 88, 1993, p. 185 e ss.

21 Eis a frase de batismo da Lei: “Uma das Leis mais notáveis do feliz Reinado do Senhor D. José, é a Lei de 18 de Agosto de 1769. Denomino-a a Lei da Boa Razão, porque refugou as Leis Romanas, que em Boa Razão não forem fundadas. Um sábio teria nesta Lei vasto assumpto para uma obra de grande preço. Mas ainda que este pequeno Comentário ateste o meu pouco saber, nada se perde em o dar à luz, enquanto não aparece outro melhor”. Em: CORREA TELLES, José Homem. Comentário Crítico à Lei da Boa Razão em data de 18 de agosto de 1769. Lisboa: Typografia de Maria da Madre de Deus, 1865.

22 MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do Direito Civil Brasileiro: Das Origens aos Dias Atuais. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 88, 1993, p. 185 e ss.

23 MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do Direito Civil Brasileiro: Das Origens aos Dias Atuais. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 88, 1993, p. 185 e ss.

24 MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do Direito Civil Brasileiro: Das Origens aos Dias Atuais. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 88, 1993, p. 185 e ss.

25 MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do Direito Civil Brasileiro: Das Origens aos Dias Atuais. Revista da Faculdade de Direito da USP, vol. 88, 1993, p. 185 e ss.

26 Eis a redação do antigo Decreto nº 1839/1907: “Art. 1º Na falta de descendentes e ascendentes, defere-se a successão ab intestato ao conjugue sobrevivo, si ao tempo da morte do outro não estavam desquitados; na falta deste, aos collateraes até ao sexto gráo por direito civil; na falta destes, aos Estados, ao Districto Federal, si o de cujus for domiciliado nas respectivas circumscripções, ou á União, si tiver o domicilio em territorio não incorporado a qualquer dellas.”.

27 WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São Paulo: Sugestões Literárias, 1972, p. 95.

28 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Pimenta de Mello, 1928. p. 25.

29 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Pimenta de Mello, 1928. p. 76.

30 Eis a Redação do Título XIV, do Livro V, das Ordenações Filipinas: “Do Infiel que dorme com alguma Cristã, e do Cristão que dorme com alguma infiel. Qualquer Cristão que tiver ajuntamento carnal com alguma Moura, ou com qualquer outra Infiel, ou Cristã com Mouro, ou Judeu, ou com qualquer outro Infiel, morra por isso, e esta mesma pena haverá o Infiel. E isto quando tal ajuntamento for feito por vontade e a sabendas; porque se alguma mulher de semelhante condição fosse forçada, não deve por isso haver pena alguma, somente haverá a dita pena aquele que cometer a tal força. E isso mesmo que tal pecado fizer por ignorância, não sabendo, nem tendo justa razão da saber como a outra pessoa era de outra Lei, não deve haver por ele pena de justiça. E somente a pessoa que da dita infidelidade for sabedor, ou tiver justa razão de o saber, será punida, segundo a culpa que for achada”.

31 Eis a Redação do Título XV, do Livro V, das Ordenações Filipinas: “Do que entra em Mosteiro, ou tira Freira, ou dorme com ela, ou a recolhe em casa. Todo homem, de qualquer qualidade e condição que seja, que entrar em Mosteiro de Freiras de Religião aprovada, e for tomado dentro, ou lhe for provado que entrou, ou esteve de dia, ou de noite dentro do Mosteiro; em casa, ou qualquer lugar dentro do encerramento dele, que pareça que era para fazer alguma coisa ilícita contra a honestidade do dito Mosteiro, pagará cem cruzados para o dito Mosteiro, e mais morra por ele morte natural. E o homem, a que for provado, que tirou alguma Freira de algum Mosteiro, ou que ela por seu mando e induzimento se foi a certo lugar, donde assim a levar, e se for com ela, se for peão, morra por isso. E se for de maior qualidade, pague cem cruzados para o Mosteiro, e mais será degredado para o Brasil. Mas a execução da morte não se fará nos sobreditos casos, sem primeiro no-lo fazerem saber. E sendo provado, que algum homem dormiu com Freira de Religião aprovada fora do Mosteiro, em caso que a ele não tirasse cinquenta cruzados para o Mosteiro, e será degradado dois anos para a África, e além disso se for peão, será açoitado publicamente, com baraço e pregão. E defendemos que nenhuma pessoa recolha, nem receba em sua casa, nem pousada Freira alguma sem nossa licença especial, posto que ela tenha qualquer Registro ou Provisão para poder andar fora do Mosteiro; e recolhendo-a, ou tendo-a em casa sem nossa licença, perca toda sua fazenda, a metade para quem o acusar, e a outra para nossa Camera.”.

32 Eis a redação do antigo art. 17 do Decreto-Lei nº 5187/1943: “Art. 17. À brasileira, casada com estrangeiro sob regime que, exclua a comunhão universal, caberá, por morte do marido, o usufruto vitalício de quarta parto dos bens deste, se houver filhos brasileiros do casal ou do marido, e de metade, se vão os houver”.

33 Eis a redação dos antigos arts. 1º e 3º da Lei nº 883/1949: “Art. 1º Dissolvida a sociedade conjugal, será permitido a qualquer dos cônjuges o reconhecimento do filho havido fora do matrimônio e, ao filho a ação para que se lhe declare a filiação. (…) Art. 3º Na falta de testamento, o cônjuge, casado pelo regime de separação de bens, terá direito à metade dos deixados pelo outro, se concorrer à sucessão exclusivamente com filho reconhecido na forma desta Lei.”.

34 SIEBENEICHLER DE ANDRADE, Fábio. Da Codificação: Crônicas de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 99.

35 GOMES, Orlando. A reforma do Código Civil. Salvador: Universidade da Bahia, 1965; GOMES, Orlando. Raízes Históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. Salvador: Progresso, 1958.

36 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação: uma análise do novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 65.

37 SIEBENEICHLER DE ANDRADE, Fábio. Da Codificação: Crônicas de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 27.

38 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direito das Sucessões. 15ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 160.

39 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direito das Sucessões. 15ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 161.

40 STOLZE GAGLIANO, Pablo; PAMPLONA FILHO, Pablo. Novo Curso de Direito Civil: Direito das Sucessões. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 235.

41 STOLZE GAGLIANO, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito das Sucessões. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 236.

42 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação: uma análise do novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 66.

1 PASSOS, Edilenice; LIMA, João Alberto de Oliveira. Memória Legislativa do Código Civil: Tramitação na Câmara dos Deputados: Segundo Turmo. Vol. 4. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 72 a 74.

2 Em 7 de agosto de 2016, 8h05.

Vide interessante trabalho de Venceslau Tavares Costa Filho. Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 2). Revista Consultor Jurídico, de 17 de outubro de 2016, 8h00, em que lembra o pensamento que então se instalava (Lehre von individualistischen Staatszweck).

4 Além da própria regra do art. 1.790 do Código Civil de 2002.

5 Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, sob o título “E então o STF decidiu o destino do artigo 1.790 do CC? (parte 2)”, em 25 de dezembro de 2016, 9h07. Abordou também em seu trabalho as eventuais consequências jurídicas caso mantida a maioria já formada neste julgamento.

6 Apud PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate. Bogotá: Instituto de Estudios Constitucionales, 2006, p. 17

7 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta. Estudio preliminar y traducción de Emilio Mikunda-Franco. Madrid: Tecnos, 2002. p. 68.

1 LIGIERA, Wilson Ricardo. Revista dos Tribunais, vol. 3, 2015.

2 BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. In: ____. Four Essays on Liberty. New York: Oxford University Press, 1969, p. 119-172.

3 BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. Op. cit, p. 131.

4 REALE, Miguel. Casamento sob o regime da separação total de bens, voluntariamente escolhido pelos nubentes. Compreensão do fenômeno sucessório e seus critérios hermenêuticos. A força normativa do pacto antenupcial. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, ano 6, vol. 24, outubro a dezembro de 2005.

1 LIGIERA, Wilson Ricardo. Revista dos Tribunais, vol. 3, 2015.

2 BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. In: ____. Four Essays on Liberty. New York: Oxford University Press, 1969, p. 119-172.

3 BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. Op. cit, p. 131.

4 REALE, Miguel. Casamento sob o regime da separação total de bens, voluntariamente escolhido pelos nubentes. Compreensão do fenômeno sucessório e seus critérios hermenêuticos. A força normativa do pacto antenupcial. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, ano 6, vol. 24, outubro a dezembro de 2005.

Dados do processo:

STF – Recurso Extraordinário nº 878.694 – Minas Gerais – Rel. Min. Roberto Barroso – DJ 06.02.2018

Fonte: INR Publicações.

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Emolumentos – Averbação de penhora – Valores e percentuais fixados na Lei Estadual 11.331/2002 – Inadequação da via administrativa – Princípio da legalidade – Recurso desprovido.

Número do processo: 0034547-59.2016.8.26.0114

Ano do processo: 2016

Número do parecer: 185

Ano do parecer: 2017

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 0034547-59.2016.8.26.0114

(185/2017-E)

Emolumentos – Averbação de penhora – Valores e percentuais fixados na Lei Estadual 11.331/2002 – Inadequação da via administrativa – Princípio da legalidade – Recurso desprovido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de recurso administrativo interposto contra decisão que determinou o arquivamento de pedido de providências instaurado em razão de reclamação deduzida contra a base de cálculo dos emolumentos cobrados por ocasião da inscrição de penhora.

Os recorrentes alegam que a cobrança de 20% sobre o valor atualizado do débito para a averbação de penhora não encontra amparo legal ou constitucional. Sustentam que o correto seria a cobrança de emolumentos sem valor declarado, pois a averbação de penhora constitui ato meramente acautelatório de direitos. Pediram a reforma da decisão.

O Ministério Público opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 35/38).

Passo a opinar.

O recurso não merece provimento.

Emolumentos são fixados por lei e são cobrados daqueles que demandam a prestação de serviços notariais e registrais.

O §2° do artigo 236 da Constituição Federal prevê que “Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro”.

As normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro estão fixadas na Lei Federal 10.169/2000. De acordo com o artigo 1º dessa Lei, “Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei”.

No Estado de São Paulo, as regras que fixam os emolumentos, valores e forma de recolhimento, estão previstas na Lei 11.331/2002.

A Lei Estadual classifica os atos em duas categorias: atos relativos a situações jurídicas com conteúdo financeiro e atos relativos a situações jurídicas sem conteúdo financeiro. Nos atos com conteúdo financeiro, os emolumentos são fixados por faixas com valores mínimos e máximos, considerado o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro.

O ato de inscrição de penhora consubstancia situação jurídica com conteúdo financeiro e os emolumentos correspondem a 20% do valor da dívida (“valor constante do documento a ser apresentado aos serviços notariais e de registro”), previsto no item 1 da Tabela II registro (item 10 da Tabela II da Lei Estadual 11.331/2002).

Não haveria a cobrança dos emolumentos somente se os recorrentes fossem beneficiários da assistência judiciária gratuita, na forma do inciso II do artigo 9ª da Lei Estadual 11.331/2002.

O questionamento, na esfera administrativa, da razoabilidade do texto da Lei não se sustenta. A regra criticada pelos recorrentes está prevista em Lei Estadual, a qual foi submetida a processo legislativo regular, amparada em Lei Federal e na Constituição Federal.

Eventual pleito de redução ou majoração de emolumentos esbarra no princípio da legalidade e deverá se submeter a regular processo legislativo, obstada a discussão pela via administrativa, pois os emolumentos possuem natureza jurídica de tributo (taxa).

Pelo exposto, o parecer que submeto a Vossa excelência, respeitosamente, é no sentido de se negar provimento ao recurso.

Sub censura.

São Paulo, 26 de abril de 2017.

Paula Lopes Gomes

Juíza Assessora da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer da MMª Juíza Assessora da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso administrativo. Publique-se. São Paulo, 27 de abril de 2017. (a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral da Justiça – Advogados: MASSAO SIMONAKA, OAB/SP 18.940 e RICARDO ANDRÉ SIMONAKA, OAB/SP 241.074.

Diário da Justiça Eletrônico de 25.05.2017

Decisão reproduzida na página 143 do Classificador II – 2017

Fonte: INR Publicações.

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CSM/SP: Dúvida Inversa – Escritura pública de compra e venda de imóvel lavrada em 1994 – Adquirentes que, à época, eram menores impúberes e se fizeram representar apenas pela genitora – Ausência, ademais, de alvará judicial – Maioridade atingida por todos os adquirentes, os quais referendaram o negócio jurídico, reconhecendo que os beneficiou – Convalidação – Ausência de prejuízo às partes ou a terceiros – Ausência de ofensa a qualquer princípio registral – Possibilidade de ingresso registral – Recurso provido para esse fim.

Apelação nº 1007772-35.2016.8.26.0099

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1007772-35.2016.8.26.0099
Comarca: BRAGANÇA PAULISTA

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação nº 1007772-35.2016.8.26.0099

Registro: 2017.0000769377

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1007772-35.2016.8.26.0099, da Comarca de Bragança Paulista, em que são partes são apelantes CARINA APARECIDA SANT’ANNA, SHEILA SANT’ANA, MARIELLI SANT’ANNA e TIAGO ALEXANDRE SANT’ANNA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E ANEXOS DA COMARCA DE BRAGANÇA PAULISTA.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso. V. U. Deram provimento ao recurso, para julgar improcedente a dúvida inversa, permitindo o ingresso registral do título, v.u. Vencido na preliminar o Desembargador Ricardo Dip, que declarará voto.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO, LUIZ ANTONIO DE GODOY, RICARDO DIP E SALLES ABREU.

São Paulo, 19 de setembro de 2017.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1007772-35.2016.8.26.0099

Apelantes: Carina Aparecida Sant’Anna, Sheila Sant’ana, Marielli Sant’Anna e Tiago Alexandre Sant’Anna

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Anexos da Comarca de Bragança Paulista

VOTO Nº 29.823

Dúvida Inversa – Escritura pública de compra e venda de imóvel lavrada em 1994 – Adquirentes que, à época, eram menores impúberes e se fizeram representar apenas pela genitora – Ausência, ademais, de alvará judicial – Maioridade atingida por todos os adquirentes, os quais referendaram o negócio jurídico, reconhecendo que os beneficiou – Convalidação – Ausência de prejuízo às partes ou a terceiros – Ausência de ofensa a qualquer princípio registral – Possibilidade de ingresso registral – Recurso provido para esse fim.

Trata-se de recurso de apelação tirado de sentença que julgou procedente dúvida inversa suscitada pelos recorrentes, Carina Aparecida Sant’Anna, Sheila Sant’Anna, Marielli Sant’Anna e Tiago Alexandre Sant’Anna em face Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas da Comarca de Bragança Paulista, negando registro de escritura de venda e compra, relativa à aquisição de bem imóvel à época em que eram menores incapazes, representados por sua genitora.

A sentença baseou-se no argumento de que o título contém nulidade insanável, consistente na ausência de representação por ambos os genitores.

Alegam, em síntese, que sua genitora foi a única e exclusiva responsável por sua manutenção até atingirem a maioridade, o que constou expressamente do título, podendo qualquer dos genitores, isoladamente, exercer o poder familiar. Argumentam com o fato de que esse negócio jurídico lhes beneficiou, tendo incrementado seu patrimônio, não incidindo a norma do art. 1.691, do Código Civil. Por fim, se pautam pela observância do princípio da função social da propriedade e pela ausência de prejuízo a terceiros.

A D. Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso.

É o relatório.

O recurso comporta provimento.

É certo que há diversos precedentes do Egrégio Conselho Superior da Magistratura (Apelações Cíveis n. 0012929-18.2014.8.26.0344, 0072005-60.2013 e 9000002-71.2014) por mim relatadas tratando do tema.

Entretanto, o presente caso contém particularidade que o diferencia dos precedentes acima indicados. Isso porque, aqui, os próprios adquirentes, todos já maiores de idade e capazes, compareceram perante o Oficial Registrador, representados por seu advogado, a fim de obterem o registro da escritura pública de venda e compra, não se conformando com o teor da nota de devolução n. 35.843 e suscitando dúvida inversa (fls. 01/05), em que referendam o negócio jurídico realizado quando eram menores de idade e afirmando que a aquisição do imóvel os beneficiou.

Cediço que o art. 1.691, do Código Civil vigente, dispõe sobre a necessidade de autorização judicial para que os pais celebrem negócios jurídicos que gerem obrigações aos filhos que superem a mera administração de bens, devendo haver necessidade ou interesse da prole. No mesmo sentido, o art. 386, do Código Civil de 1916.

Entretanto, a norma legal em comento tem por objetivo primordial proteger os interesses de incapazes, evitando que seus genitores, na gestão de seu patrimônio, causem-lhes prejuízos de qualquer ordem. A ratio legis é que a lisura e a conveniência do negócio jurídico seja avaliada por juiz competente, após ouvido o Ministério Público, suprindo a hipossuficiência cognitiva dos incapazes.

Ora, se os únicos beneficiados com a proteção legal já atingiram a plena capacidade civil e referendam o negócio jurídico de iniciativa de sua genitora, afirmando tê-los beneficiado e, inclusive, incrementado seu patrimônio, fica superada a necessidade de apresentação de alvará judicial. Tanto é assim que, se porventura postulassem, atualmente, autorização judicial visando regularização do negócio jurídico, seria reconhecida a ausência de interesse processual, uma vez que a capacidade civil já alcançada por todos dispensa em absoluto essa autorização.

Já maiores, os adquirentes têm pleno discernimento para avaliarem e referendarem a compra e venda de que participaram.

Não é por outro motivo que o parágrafo único do art. 1.691, do Código Civil vigente, restringe a legitimidade para pleitear a declaração de nulidade dos atos previstos no caput aos filhos, herdeiros e ao representante legal, ou seja, àqueles que sejam interessados no reconhecimento dessa nulidade. Cuida-se de nulidade relativa, uma vez que viola norma de interesse particular e depende de provocação dos interessados para que seja reconhecida. Sendo relativa a nulidade, é possível a convalidação do negócio jurídico. Ora, se os próprios filhos adquirentes avalizam o negócio jurídico, assumindo que os favoreceu, convalidado está o ato e afastada fica qualquer possibilidade de se reconhecer sua nulidade por falta de autorização judicial prévia.

É bom frisar que a atual redação do item 41, do Cap. XIV, das NSCGJ, que dispõe que compete ao Tabelião de Notas, antes da lavratura de qualquer ato, exigir alvará para ato que envolva incapazes, foi acrescentada pelo Provimento CG N. 12/2013, sendo posterior à lavratura da escritura em análise.

Quanto à ausência de representação do genitor, também não tem o condão de obstar o ingresso registral. Isso porque, na falta de um dos pais, pode o outro representar a prole (CC, art. 1.690), sendo ambos detentores do Poder Familiar. Acresça-se a isso os fatos de que constou da escritura pública que os menores eram dependentes economicamente da genitora e, ainda, que não consta que o genitor tenha, em algum momento, se oposto ao negócio jurídico em questão, realizado há 23 anos.

Por fim, o que foi dito com relação à ausência de prévia autorização judicial também se aplica à ausência de representação pelo genitor: os adquirentes, já maiores e capazes, referendaram o ato praticado pela genitora.

Uma vez suscitada a dúvida inversa, tal documento, juntamente com a escritura pública de venda e compra passou a integrar o título que os recorrentes pretendem registrar. Estando contida inequívoca ratificação do negócio jurídico pelos interessados agora maiores e capazes, definitivamente superada qualquer invalidade.

Por fim, cumpre salientar que o negócio jurídico realizado há 23 anos já se consolidou e não consta ter causado qualquer prejuízo a terceiros e tampouco seu ingresso está em dissonância com os princípios registrais.

Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO ao recurso, para julgar improcedente a dúvida inversa, permitindo o ingresso registral do título.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

Conselho Superior da Magistratura

Apelação Cível 1007772-35.2016.8.26.0099

Procedência: Bragança Paulista

Apelantes: Carina Aparecida Sant’Anna, Sheila Sant’Anna, Marielli Sant’Anna e Tiago Alexandre Sant’Anna

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e

Anexos da comarca

VOTO (n. 50.821):

1. Anoto, à partida, adotar o relatório lançado pelo eminente Relator da espécie.

2. Permito-me, da veniam, lançar um reparo.

3. Parece-me, da veniam, mais do que hora de deixar de admitir o que se convencionou chamar dúvida “inversa”, ou seja, aquela destinada pelo próprio interessado, diretamente, ao juízo corregedor.

A prática, com efeito, não está prevista em lei, o que já é razão bastante para inadmiti-la, por ofensa à cláusula do devido processo (inc. LIV do art. 5º da Constituição de 1988), com a qual não pode coadunar-se permissão ou tolerância (jurisprudencial, nota bene) para que os interessados disponham sobre a forma e o rito de processo administrativo, dispensando-se o expressamente previsto no estatuto de regência (Lei n. 6.015, de 31-12-1973, arts. 198 etseqq.).

Se o que basta não bastara, ainda cabe considerar que ao longo de anos a dúvida inversa tem constituído risco para a segurança dos serviços eaté mesmo para as justas expectativas dosinteressados. É que, não rara vez, o instrumento vem sendo manejado sem respeito aos mais elementares preceitos de processo registral (o primeiro deles, a existência de prenotação válida e eficaz), de modo que termina sem bom sucesso, levando a delongas que o paciente respeito ao iter legal teriam evitado.

4. Superada a preliminar, entretanto, voto pelo provimento do recurso, porque a nulidade por falta de alvará judicial, na hipótese inscrita no art. 1.691 do Código civil, só pode ser pleiteada pelos filhos, porseus herdeiros ou seu representante legal. Ora, incasu os apresentantes e interessados não são outros, senão aqueles primeiros (os filhos), que querem ver registrado o contrato que em seu favor lhes celebrara a mãe. Não parece, portanto, possa o oficial levantar um óbice que ao próprio juiz, em demanda contenciosa, não seria lícito suscitar de ofício (cf. par. únicos do art. 1.691 e do art. 168, ambos do Cód.civ.).

DO EXPOSTO, por meu voto preliminar, julgava extinto o processo, sem resolução de mérito, prejudicado o recurso de apelação interposto por Carina Aparecida Sant’Anna, Sheila Sant’Anna, Marielli Sant’Anna e Tiago Alexandre Sant’Anna.

No mérito, dou provimento ao recurso, para o fim de que, reformado o r. decisum da inferior instância, perfaça-se o perseguido registro strictosensu.

É como voto.

Des. RICARDO DIP

Presidente da Seção de Direito Público (DJe de 07.02.2018 – SP)

Fonte: INR Publicações | 07/02/2018.

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