LOTE VAGO EM REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – Parte II


  
 

* Amilton Alvares e George André Alvares

Este artigo dá continuidade ao publicado anteriormente com o mesmo título em https://www.portaldori.com.br/2013/12/17/lote-vago-em-regularizacao-fundiaria (publicação do dia 17/12/2.013). Leva em conta, especialmente que, em 30/03/2.015, o MM. Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis na Comarca de São José dos Campos prolatou decisão, no Processo nº 29/10-PP  da 8ª Vara Cível, autorizando a cobrança de emolumentos em registro de lote vago de Regularização Fundiária de Interesse Social, desde que o valor venal do lote seja superior a 6000 UFESP.

É certo que não se faz Regularização Fundiária (RF) para regularizar lote vago. A razão finalística da RF é garantir o direito social de moradia mediante a legalização da situação do ocupante ou morador do lote, a quem deve ser outorgado o respectivo título de posse ou de propriedade (art. 46 da Lei nº. 11.977/2.009). Não se faz RF para beneficiar proprietário de lote vago nem possuidor que não seja ocupante do lote. A RF leva em conta – antes e acima de tudo – a situação das moradias existentes, situação fática consolidada do assentamento urbano em regularização. A rigor, lote vago é incluído na planta do parcelamento por interesse urbanístico específico do Município, não propriamente por interesse social. Melhor seria o Município destinar os lotes vagos à formação de áreas de uso comum da comunidade ou até mesmo para implantar outros projetos de interesse social. De qualquer forma, o lote vago incorporado em RF de interesse social não pode ter os mesmos privilégios dos lotes ocupados por moradores do assentamento. É possível considerar que o Município poderá cobrar o custo de infraestrutura dos lotes vagos, aplicando-se-lhes o disposto no art. 62, §1º, da Lei nº. 11.977/2.009. Na primeira abordagem do tema, sustentamos que, como a regularização fundiária tem por fim conceder aos ocupantes cadastrados o título de legitimação de posse (art.58 e 59, da Lei nº. 11.977/2.009), é importante exigir do Município, no registro do parcelamento, a declaração de que não há lote vago no assentamento irregular. Eis a suma do pensamento:

  • Se houver lote vago no assentamento em regularização, deve o Município declarar expressamente quais são os lotes vagos e essa informação deve constar do registro do parcelamento e da matrícula dos respectivos lotes.
  • A consequência direta é que o Município passará a ter limitações para outorgar títulos de legitimação de posse dos lotes vagos, pois o interesse magno tutelado pela Lei nº. 11.977/2.009 é o do morador cadastrado do assentamento regularizado. A lei ressalva a possibilidade de outorgar títulos de legitimação de posse aos proprietários de partes ideais (art. 59, § 2º), mas também quanto a estes há a exigência de que sejam cadastrados pela Prefeitura e comprovado o exercício da posse em lote específico.
  • Se o lote está vago, por óbvio não pode haver morador cadastrado nesse lote. Dessa forma, em regra, o título de legitimação de posse do lote vago não pode ser outorgado.  A Lei nº. 11.977/2.009 é rigorosa quanto a esse aspecto, a ponto de não ter assegurado aos ocupantes relocados o direito à legitimação de posse no próprio local (art. 58, §3º, da Lei nº. 11.977/2.009). Aos ocupantes relocados – entenda-se moradores do assentamento, o poder público deverá assegurar o direito social de moradia de alguma outra maneira.
  • Pode, eventualmente, o título de legitimação de posse ser concedido a quem é “proprietário” de parte ideal, desde que cadastrado pela Prefeitura (art. 59, § 2º, da Lei nº. 11.977/2.009). Tal circunstância deve ser declarada expressamente no termo de legitimação de posse ou em documento apartado, expedido pelo Município, sob sua responsabilidade exclusiva, de maneira a espancar qualquer dúvida.
  • Se a área originária da demarcação urbanística for um imóvel com vários proprietários de partes ideais, eventualmente, esses proprietários de partes ideais (ou seus sucessores) poderão invocar a posse do lote vago e requerer a especialização da sua parte ideal num determinado lote vago do parcelamento registrado (subitem 282.4, Capítulo XX, NSCGJ-SP, conforme Provimento CGJ/SP nº. 37/2.013). Há necessidade de comprovação da posse em lote específico. Também poderão ser registrados os instrumentos expedidos anteriormente à regularização, em nome dos respectivos adquirentes ou titulares de direitos decorrentes de contratos de compra e venda, compromisso de venda e compra, cessões e promessas de cessão (item 287, Capítulo XX, NSCGJ-SP, conforme Provimento CGJ/SP nº. 37/2.013). E não haverá então impedimento para a Prefeitura outorgar título de legitimação de posse em lote vago, mediante justificativa expressa de que o legitimado é proprietário ou sucessor do proprietário de parte ideal, com posse localizada e cadastrada em certo lote individualizado e identificado (art. 59,§2º, da Lei nº. 11.977/2.009). Essa verificação incumbe à Prefeitura, antes de outorgar o título de legitimação de posse. Não pode a Municipalidade promover “acomodações” na demarcação do assentamento e cadastramento de moradores, para atender a interesses de proprietários de partes ideais que não possuem vínculo com lote específico do parcelamento. Eventual fiscalização, para prevenir e coibir favorecimento indevido, competirá ao Ministério Público, conforme art. 127 da Constituição Federal(CF).

Afirmamos antes que poderia haver cobrança de emolumentos cartorários em registros referentes a lotes vagos integrantes de regularização fundiária de interesse social. Reafirmamos esse pensamento. De fato, assim como não há impedimento para o Município cobrar o rateio do custo da infraestrutura do proprietário do lote vago, também é possível fazer incidir a cobrança de emolumentos, mesmo que se trate de lote vago inserido no bojo de regularização fundiária de interesse social. A regularização do lote vago não está na gênese da Regularização Fundiária (RF). O que a norma busca tutelar, acima de tudo, é o ocupante cadastrado, o morador do lote, por isso o MM. Juiz Corregedor Permanente de São José dos Campos autorizou a cobrança de emolumentos em registros de lotes vagos desde que o valor do imóvel seja superior a 6.000 UFESP. Vejamos como a Egrégia Corregedoria Geral da Justiça – SP acabará disciplinando a matéria. A rigor, data venia, cabe considerar a possibilidade de cobrança de emolumentos no registro de qualquer lote vago, independentemente do valor do imóvel.

O possuidor do lote vago nada mais é do que um adquirente ou proprietário comum, que se situa na cadeia de beneficiários indiretos da RF. Não pode ser colocado em igualdade de condições com o morador, sob tutela da norma que prestigia o direito social de moradia e valoriza o interesse social do morador cadastrado do assentamento regularizado. Ainda que se trate de RF de interesse social, o lote vago é uma integração que decorre de interesse específico, e por isso mesmo não afasta o poder-dever do Município de cobrar o rateio do custo da infraestrutura (art. 62 §1º, da Lei nº. 11.977/2009). Proprietário de lote vago tem a tutela normal do direito de propriedade e colherá naturalmente a valorização de seu imóvel segundo as regras ordinárias do mercado imobiliário, sem direito à isenção de emolumentos cartorários. Os atos registrais em favor do proprietário de lote vago não estão compreendidos nas normas de isenção do art. 68 da Lei nº. 11.977/2.009 nem no art. 290–A da Lei nº. 6.015/73, pois, na essência, lote vago não integra a RF de interesse social. Não basta o lote vago pertencer formalmente à RF de interesse social, pois, ainda que o Município tenha declarado de interesse social uma determinada regularização fundiária, é certo que o lote vago é incluído no plano demarcatório e de regularização do assentamento por conveniência do Município, logo constitui interesse específico do agente promotor da RF. E, sob esse prisma, cabe ao proprietário do lote vago suportar o pagamento do rateio do custo de implantação da infraestrutura e os emolumentos, mesmo porque a posse do lote vago não se enquadra no modelo insculpido no art. 183 da CF, que exige a utilização do lote pelo possuidor como moradia própria ou de sua família, como condição da usucapião especial urbana, norma acolhida na Lei nº. 11.977/2.009, para a usucapião tabular de lotes de até 250 m² (art. 60, “caput” e parágrafo 3º). A Corregedoria Geral da Justiça- SP já se pronunciou acerca da cobrança de emolumentos em RF, afirmando que a norma do art. 68 da Lei nº. 11.977/2.009 deve receber exegese estrita, como exige a regra de interpretação das isenções tributárias (Processo CG nº. 2.011/42.551 e 2.009/95.948).

Em aresto antigo do STF, o voto do Ministro Luiz Galotti, no julgamento do RE nº. 71.758, de 1.972, lembrou a frase de Napoleão – “Tenho um amo implacável, que é a natureza das coisas”. Disse o Ministro que não se pode chamar de renda o que não é renda e de compra o que não é compra. E mesmo reconhecendo que no Direito se manifesta o poder diabólico das ficções, prosseguiu com o seu pensamento afirmando que “dizer que despesa é renda jamais ocorreu a ninguém, nem poderia ocorrer, por contrariar a essência das coisas”. Assim, também não dá para afirmar que há regularização fundiária de lote vago, quando a lei da RF tem por escopo final garantir o direito social de moradia e outorgar titulação ao ocupante cadastrado (art. 46 da Lei nº. 11.977/2.009). Somente a preexistente ocupação do lote pode justificar a RF; ninguém poderia justificar RF num conjunto de lotes vagos demarcados e sem moradores; e mais difícil ainda seria justificar RF de interesse social em lote vago. O Provimento nº. 44 da Corregedoria Nacional de Justiça, de 18/03/2.015, ressalvou a possibilidade de a RF abarcar áreas com ocupação não residencial (art. 10, parágrafo 2º), mas nenhum ato normativo assegura RF de lote vago. Dessa forma o lote vago é um estranho no ninho da RF, especialmente na RF de interesse social. Não merece abrigo na legislação protetiva que concede isenção no custo da infraestrutura básica e nos emolumentos. Quando muito, poderá ser integrado na planta demarcatória da RF por conveniência e interesse específico do Munícipio, mas jamais poderá ter os benefícios da RF de interesse social. Caberá ao Município cobrar do proprietário do lote vago o rateio no custo da infraestrutura, conforme permite o art. 62, parágrafo primeiro da Lei nº. 11.977/2.009. Mostra-se oportuno, os Municípios exercerem o poder outorgado pela Constituição Federal de legislar sobre RF, conforme reconhecido expressamente no art. 49 da Lei nº 11.977/2.009. E convém que o façam logo, especialmente para disciplinar a situação de lotes maiores de 250 m². Pode o Município estabelecer um critério objetivo e dispor que a integração em RF de interesse social de lotes maiores de 250 m², lotes não residenciais e lotes vagos, determinará a caracterização da RF de dupla feição. Isso permitirá a cobrança do rateio do custo da infraestrutura dos lotes que, na essência, não estão vinculados ao interesse social da RF, portanto não integram a RF de interesse social, que por isso será caracterizada pelo Município como RF de dupla feição.

Cumpre destacar que a cidade de São José dos Campos tem aproximadamente duzentos parcelamentos informais ou assentamentos urbanos irregulares aguardando regularização. Nos últimos três anos foram registrados doze parcelamentos no 2º Registro de Imóveis e outro tanto no 1º RI, procedimentos de RF realizados pelo Município. Todos foram caracterizados como RF de interesse social. Todos possuem muitos lotes vagos e nesse contexto merece destaque o quadro resumo do Loteamento Santa Hermínia, apresentado a seguir:

LOTEAMENTO SANTA HERMÍNIA QUANTIDADE      %   ÁREA TOTAL        %
Lotes até 250m²         260    29,99     47.026,61      7,46
Lotes de 250m² a 500m²         258    29,76     94.651,01      15,02
Lotes de 500m² a 1.000m²         179    20,64     122.937,44      19,50
Lotes acima de 1.000m²         170    19,61     365.747,24      58,02
Total         867     100     630.362,30        100

 

 

 

No loteamento Santa Hermínia há 157 lotes vagos, muitos com área expressiva. Os lotes de até 250 m² ocupam apenas 7,46% da área do loteamento. A expressiva área correspondente a 58,02% do assentamento regularizado (630.362,30 m²) é ocupada por lotes com área superior a 1.000 m². Algumas casas do loteamento possuem piscina, existem 2 lotes com área superior a 5.000 m², muitos lotes têm valor venal lançado pelo Município acima de R$ 1 milhão, e tudo foi regularizado como RF de interesse social. Em igualdade de condições com pessoas humildes, que de fato são merecedoras das benesses e das políticas públicas, acabaram sendo beneficiados muitos moradores da cidade que possuem dois, cinco ou dez imóveis. Felizmente, parece que a Administração Municipal acordou e agora há estudos na Secretaria de Regularização Fundiária e na Câmara Municipal para restringir os benefícios da RF de interesse social aos munícipes que de fato precisam do benefício. A ideia é determinar um critério objetivo, estabelecendo que lotes maiores de 250 m² possam ser integrados na RF de interesse social, mas, quanto a estes, os lotes vagos e os de uso não residencial, a integração deve ser considerada de interesse específico, portanto a RF será caracterizada como RF de dupla feição, assegurando a cobrança do rateio do custo da infraestrutura, de maneira a permitir a regularização de mais loteamentos. O princípio é simples e precisa ser implementado para dar maior efetividade à RF. E o Município não pode perder o foco de que RF de interesse social é para beneficiar famílias de baixa renda. O que vier à reboque deve ser tratado como RF de interesse específico e o proprietário favorecido deve pagar pela valorização que a RF traz ao seu imóvel. Do contrário, a RF pode se transformar em indesejável instrumento de especulação imobiliária com emprego de dinheiro público.

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* Amilton Alvares é Procurador da República aposentado, Oficial do 2º Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de São José dos Campos/SP, colaborador do Portal do Registro de Imóveis (www.PORTALdoRI.com.br) e colunista do Boletim Eletrônico, diário e gratuito, do Portal do RI.

* George André Alvares é Advogado e Presidente do Instituto Lares (ONG de regularização fundiária). Mestrando em Direito Urbanístico e Pós-Graduado em Direito Constitucional pela PUC-SP.

Como citar este artigo: ALVARES, Amilton; ALVARES, George André. LOTE VAGO EM REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – PARTE II. Disponível em http://www.cartoriomogi.com.br/2015/07/28/lote-vago-em-regularizacao-fundiaria-parte-ii/. Acesso em XX/XX/XX, às XX:XX.

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Fonte: Cartório Mogihttp://www.cartoriomogi.com.br

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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