STJ: Cônjuge casado em separação convencional é herdeiro necessário e concorre com descendentes

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão que reconheceu a condição de herdeira necessária à viúva casada sob o regime de separação convencional de bens, mantendo-a no cargo de inventariante.

Para a Turma, o artigo 1.829, inciso I, do Código Civil (CC) de 2002 confere ao cônjuge casado sob o regime de separação convencional de bens a condição de herdeiro necessário, que concorre com os descendentes do falecido independentemente do período de duração do casamento, com vistas a lhe garantir o mínimo para uma sobrevivência digna.

A única filha do autor da herança recorreu ao STJ contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que reconheceu a viúva de seu pai como herdeira necessária. Sustentou que o cônjuge casado no regime de separação convencional de bens não é herdeiro necessário, citando para tanto um precedente da própria Terceira Turma nesse sentido, julgado em 2009.

Segundo a recorrente, na hipótese de concorrência com descendentes, deveria ser negado ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação convencional o direito à herança, pois ele não possuiria direito à meação e tampouco à concorrência sucessória. Concluiu pela necessidade de manutenção do regime de bens estipulado, que obrigaria as partes tanto em vida como na morte.

Ordem pública

O relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que o concurso hereditário na separação convencional impõe-se como norma de ordem pública, sendo nula qualquer convenção em sentido contrário, especialmente porque esse regime não foi arrolado como exceção à regra da concorrência posta no artigo 1.829, inciso I, do CC.

“O regime da separação convencional de bens, escolhido livremente pelos nubentes à luz do princípio da autonomia de vontade (por meio do pacto antenupcial), não se confunde com o regime da separação legal ou obrigatória de bens, que é imposto de forma cogente pela legislação (artigo 1.641 do CC), no qual efetivamente não há concorrência do cônjuge com o descendente”, acrescentou o ministro.

Villas Bôas Cueva ressaltou ainda que o novo Código Civil, ao ampliar os direitos do cônjuge sobrevivente, assegurou ao casado pela comunhão parcial cota na herança dos bens particulares, ainda que sejam os únicos deixados pelo falecido, direito que pelas mesmas razões deve ser conferido ao casado pela separação convencional, cujo patrimônio é composto somente por acervo particular.

O relator destacou que, no precedente invocado pela recorrente (REsp 992.749), afirmou-se que "se o casamento foi celebrado pelo regime da separação convencional, significa que o casal escolheu conjuntamente a separação do patrimônio. Não há como violentar a vontade do cônjuge após sua morte, concedendo a herança ao sobrevivente”.

Entretanto, o ministro disse que as hipóteses de exclusão da concorrência, tais como previstas pelo artigo 1.829, I, do CC, evidenciam a “indisfarçável intenção” do legislador de proteger o cônjuge sobrevivente. Segundo ele, “o intuito de plena comunhão de vida entre os cônjuges (artigo 1.511) motivou, indubitavelmente, o legislador a incluir o sobrevivente no rol dos herdeiros necessários, o que reflete irrefutável avanço do Código Civil de 2002 no campo sucessório”.

A notícia refere-se ao seguinte processo: REsp 1472945.

Fonte: STJ | 13/11/2014.

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Jurisprudência mineira – Embargos infrigentes – Inventário – Cônjuge supérstite – Regime de separação convencional de bens – Exclusão da partilha

EMBARGOS INFRINGENTES – INVENTÁRIO – CÔNJUGE SUPÉRSTITE – REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS – EXCLUSÃO DA PARTILHA – ART. 1.829, I, CC/02 – INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA E SISTEMÁTICA DO DISPOSITIVO – MANUTENÇÃO DO VOTO VENCIDO – EMBARGOS ACOLHIDOS

– Da interpretação teleológica e sistemática do art. 1.829, inciso I, do Código Civil de 2002, extrai-se que o regime de separação convencional de bens exclui o cônjuge supérstite da concorrência na herança, sob pena de subverter a livre manifestação de vontade dos nubentes, ao decidirem sobre os seus bens.

– Embargos acolhidos.

Embargos Infringentes nº 1.0479.03.050346-6/002 – Comarca de Passos – Embargante: Olímpia Agelune Schmitz, herdeira de David Agelune – Embargado: David Agelune Neto, inventariante – Interessado: Fabiana Agelune Tavares, Elza Ferreira da Silva, Maria Agelune e outro, Éber Assis Schmitz. – Relator: Des.ª Teresa Cristina da Cunha Peixoto

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em acolher os embargos infringentes.

Belo Horizonte, 18 de setembro de 2014. – Teresa Cristina da Cunha Peixoto – Relatora.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

DES.ª TERESA CRISTINA DA CUNHA PEIXOTO – Trata-se de embargos infringentes opostos por Olímpia Agelune Schmitz (f.304/320) contra o acórdão de f. 277/297, que, nos autos do inventário de bens deixados por David Agelune, deu provimento ao recurso interposto por David Agelune Neto, vencido o Desembargador Vogal.

Sustentou a embargante, em síntese, que "o regime de casamento do falecido David Agelune com Maria Izabel Martins era da separação legal de bens. E, ainda que pela eventualidade fosse convencional, conforme salientado pelo Desembargador Vogal Bitencourt Marcondes – que adotou posicionamento do Superior Tribunal de Justiça – 'separação obrigatória' é gênero que congrega duas espécies: a) 'separação legal' e b) 'separação convencional', de modo que, sob qualquer aspecto, não há concorrência do cônjuge com os descendentes", pugnando pelo acolhimento dos embargos.

Contrarrazões às f. 349/373, suscitando preliminar de não conhecimento dos embargos infringentes, ao argumento de que, "embora notoriamente o acórdão recorrido tenha de fato reformado uma sentença, em momento algum foi alcançado o mérito da lide, uma vez que, em tal decisum, ocorreu a extinção do processo por falta de uma das condições da ação, tratando-se, então, de sentença terminativa e não de mérito".

Na decisão monocrática de f. 381/387, neguei seguimento ao recurso, por manifesta inadmissibilidade, o que desafiou a interposição do Agravo Interno nº 1.0479.03.050346-6/003 (f. 390/399), que foi provido, por maioria, na sessão de 28.02.2013, conforme acórdão de f. 409/421.

Às f. 425/438, David Agelune Neto apresentou recurso especial, que teve o seguimento obstado, todavia, pela decisão de f. 461/462 do 1° Vice-Presidente deste Tribunal, motivo da interposição do agravo de f. 465/472, remetido de forma eletrônica ao Superior Tribunal de Justiça (f. 485).

Às f. 487/488, Olímpia Agelune Schmitz pleiteou a remessa dos autos a esta Desembargadora, para apreciação do mérito dos embargos, o que foi determinado, à f. 490, pelo Desembargador 1º Vice-Presidente, "já que o agravo, nos próprios autos, interposto por David Agelune Neto, conforme certidão de f. 485, foi remetido, de forma eletrônica, ao Superior Tribunal de Justiça, nada impedindo que o recurso pendente tenha prosseguimento nestes autos físicos, mesmo porque não dotado o agravo de efeito suspensivo".

Os autos me vieram conclusos, assim, em 11.06.2014, para o julgamento do mérito dos embargos, ficando vencida quanto à questão do conhecimento.

Revelam os autos que Maria Izabel Martins Agelune apresentou inventário de bens por arrolamento sumário em virtude do falecimento de seu esposo David Agelune, tendo o Magistrado, na sentença de f. 180/183, determinado a exclusão da requerente da partilha, "devendo somente as filhas Olímpia Agelune e Maria Agelune figurarem como herdeiras necessárias", o que deu ensejo ao recurso de apelação de f. 187/197, interposto por Davi Agelune Neto, inventariante daquela.

Esta Corte de Justiça, por maioria, no julgamento da Apelação Cível nº 1.0479.03.050346-6/001, em 12.07.2012, deu provimento ao recurso "para manter a cônjuge sobrevivente na partilha dos bens do falecido" (f. 282), constando do voto do Desembargador Relator Vieira de Brito, acompanhado pelo Desembargador Revisor Elpídio Donizetti:

“Cinge-se a discussão acerca da participação do cônjuge como meeiro dos bens deixados pelo de cujus, quando o casamento se deu com separação total de bens.

Compulsando os autos, verifica-se que o óbito de David Agelune se deu em 02.05.2003 (f. 04), data, portanto, em que foi aberta a sucessão, estando em vigor o CC/02.

Conforme determinação do art. 1.829 do CC/02, há uma ordem a ser seguida na sucessão legítima, prevendo o inciso I: ‘aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1641, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;’.

Percebe-se, portanto, que a regra da norma supracitada é que o cônjuge sobrevivente concorra com os descendentes, sendo estipuladas expressamente as exceções.

No caso em apreço, Maria Izabel Martins Agelune se casou com o falecido David Agelune sob o regime da separação universal de bens, e como sobreviveu ao mesmo, deve, como regra, concorrer com os seus descendentes.

Isto porque a hipótese de separação convencional de bens não é tratada como exceção no art. 1.829, mas apenas a separação obrigatória, prevista no art. 1.640, parágrafo único, do CC/02.

Em outras palavras, não estando o cônjuge sobrevivente nas hipóteses de exclusão expressamente previstas no art. 1.829 do CC/02, deve o mesmo figurar como herdeiro, ainda que o regime de bens seja o da separação universal, porquanto realizada de forma convencional e não obrigatória.

Sendo Maria Izabel Martins Agelune cônjuge sobrevivente, esta tem direito à sucessão legítima dos bens deixados pelo falecido David Agelune, de forma concorrente às filhas do de cujus, Olímpia e Maria, devendo prosseguir o arrolamento sumário com a sua inclusão, e tendo a mesma falecido em 29 de agosto de 2006 (f. 85), a parte que lhe cabia, deve ser transmitida a seus herdeiros.

Quanto à tese apresentada pela apelada de que deveria o casamento ter sido realizado em separação obrigatória de bens, tenho que razão não lhe assiste.

Isto porque apesar do que está disposto nos arts. 1.523, inciso I, e 1.641, inciso I, ambos do CC/02, não há nos autos provas de que o inventário do casamento anterior do falecido não teria terminado antes de contraída as novas núpcias” (f. 280/282).

De outro lado, consignou o Desembargador Vogal Bitencourt Marcondes:

“O i. Relator possui entendimento de que a hipótese de separação convencional de bens não é tratada como exceção no art. 1.829, mas tão somente a separação obrigatória, daí porque o cônjuge sobrevivente, no caso, deve figurar como herdeiro. O Superior Tribunal de Justiça adotou posicionamento em sentido contrário, ao qual adiro, no sentido de que o regime de separação obrigatória de bens é gênero, que congrega as espécies separação legal e separação convencional, razão pela qual o cônjuge supérstite não é herdeiro necessário.

Ademais, entendeu que as relações familiares são regidas pelo princípio da autonomia da vontade, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, observadas as disposições de ordem pública, as pessoas têm a liberdade de escolher o regime de bens, dispor do patrimônio e testar. Essa autonomia da vontade foi preservada pelo legislador ordinário e as manifestações em vida devem ser mantidas e consideradas no momento da morte, para fins de aplicação das regras sucessórias” (f. 287).

Disse o Vogal, além do mais, que,

"[…] por outro lado, sustenta o apelante que a própria apelada manifestou anuência com a partilha, em que a viúva estava sendo contemplada como herdeira. Com efeito, o direito de saisina transfere aos herdeiros o patrimônio do autor da herança e o inventário tem a finalidade de estabelecer o quinhão de cada herdeiro. A sucessão, portanto, é aquela prevista na lei, e sua alteração pressupõe vontade manifestada pelo autor da herança em testamento. Assim, não é na concordância da partilha que pessoa não considerada herdeira, por lei, poderá adquirir bens, até porque, na sucessão legítima, a parte renunciante acresce a dos outros herdeiros da mesma classe (art. 1.810)" (f. 296).

Pretende a embargante, desse modo, resgatar o voto minoritário, cingindo-se o debate dos autos ao exame da possibilidade de o cônjuge supérstite casado pelo regime de separação convencional de bens integrar a relação de herdeiros.

Estabelece o art. 1.829 do Código Civil de 2002:

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”.

A redação bastante ambígua do texto normativo transcrito tem gerado grande divergência na doutrina e na jurisprudência, mas entendo como o i. Desembargador Vogal, rogando vênia a doutos entendimentos em sentido contrário.

Com efeito, da exegese do dispositivo transcrito, percebe-se que o legislador tencionou excluir expressamente da sucessão o cônjuge casado sob o regime de separação legal de bens, imposto atualmente nos termos do art. 1.641 do Código Civil:

“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)

III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial”.

Como já dito, a interpretação do artigo tem o objetivo de evitar fosse burlado o dispositivo citado, que, por questão de ordem pública, retirou dos nubentes a livre manifestação de vontade, notadamente com vistas à proteção patrimonial, nas situações em que penderem causas suspensivas do matrimônio ou nas situações de vulnerabilidade de um dos cônjuges, sendo certo que, se se incluísse o consorte supérstite na concorrência da herança, estar-se-ia permitindo a obtenção indireta do patrimônio que se visou, legalmente, ou por força impositiva do Estado, proteger.

O mesmo raciocínio, a meu sentir, deve ser adotado em relação à separação convencional, se analisado o aspecto teleológico e sistemático da norma, não se podendo admitir que situações que levaram, ainda que por convenção das partes, à incomunicabilidade de bens, por disposição de livre manifestação de vontade, fossem relegadas quando da morte de um dos cônjuges, sob pena de se permitir a inobservância post mortem de um ato jurídico perfeito de autodeterminação.

Para melhor elucidação, trago à colação a balizada doutrina de Eduardo de Oliveira Leite, ao citar o escólio de Miguel Reale: “Tudo aponta para uma exegese finalista (ou teleológica) que guarda coerência com o sistema civil brasileiro encarado como um todo e, portanto, tendente a interpretar a nova norma codificada de forma ampla, abrangendo, indistintamente, tanto o regime da separação legal de bens, quanto o convencional.

Nesse sentido, já se manifestara o grande Miguel Reale, para quem uma interpretação isolada do dispositivo (art. 1.829, I, do CC) poderia levar a uma conclusão errônea, ou seja, o da concorrência do cônjuge sobrevivente no regime de separação de bens comuns, ou pré-nupcialmente pactuado.

Para ele, 'se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança, estaríamos ferindo o disposto no art. 1.687, sem o qual desapareceria todo o regime de separação de bens (convencional) em razão do conflito inadmissível entre esse artigo e o de n. 1.829, fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio a unidade sistemática'.

Com efeito – e sempre de acordo com o pensamento do Justifilósofo – a obrigatoriedade da separação de bens é uma 'consequência necessária' do pacto concluído pelos nubentes, logo, a palavra 'separação obrigatória' ‘[…] não se restringiria aos casos do art. 1.641 do atual Código Civil’” (CAHALI, Yussef Said; CAHALI, Francisco José, organ. O art. 1.289, I, do Código Civil e o regime de separação convencional de bens. Edições especiais Revista dos Tribunais 100 anos. Ed. Revista dos Tribunais, vol. IV; p. 675-676).

É o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:

“Direito civil. Família e Sucessões. Recurso especial. Inventário e partilha. Cônjuge sobrevivente casado pelo regime de separação convencional de bens, celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. Interpretação do art. 1.829, I, do CC/02. Direito de concorrência hereditária com descendentes do falecido. Não ocorrência.

– Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia da vontade, da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.

– Até o advento da Lei nº 6.515/77 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02.

– Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados unicamente entre os descendentes.

– O regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância.

– Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário.

– Entendimento em sentido diverso, suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687 do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, deveprevalecer a interpretação que conjuga e torna complementares os citados dispositivos.

– No processo analisado, a situação fática vivenciada pelo casal – declarada desde já a insuscetibilidade de seu reexame nesta via recursal – é a seguinte: (i) não houve longa convivência, mas um casamento que durou meses, mais especificamente, 10 meses; (ii) quando desse segundo casamento, o autor da herança já havia formado todo seu patrimônio e padecia de doença incapacitante; (iii) os nubentes escolheram voluntariamente casar pelo regime da separação convencional, optando, por meio de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, pela incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos e rendimentos.

– A ampla liberdade advinda da possibilidade de pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, prevista pelo Direito Patrimonial de Família, não pode ser toldada pela imposição fleumática do Direito das Sucessões, porque o fenômeno sucessório ‘traduz a continuação da personalidade do morto pela projeção jurídica dos arranjos patrimoniais feitos em vida’. 

– Trata-se, pois, de um ato de liberdade conjuntamente exercido, ao qual o fenômeno sucessório não pode estabelecer limitações.

– Se o casal firmou pacto no sentido de não ter patrimônio comum e se não requereu a alteração do regime estipulado, não houve doação de um cônjuge ao outro durante o casamento, tampouco foi deixado testamento ou legado para o cônjuge sobrevivente, quando seria livre e lícita qualquer dessas providências, não deve o intérprete da lei alçar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao regime de bens pactuado. 

– Haveria, induvidosamente, em tais situações, a alteração do regime matrimonial de bens post mortem, ou seja, com o fim do casamento pela morte de um dos cônjuges, seria alterado o regime de separação convencional de bens pactuado em vida, permitindo ao cônjuge sobrevivente o recebimento de bens de exclusiva propriedade do autor da herança, patrimônio ao qual recusou, quando do pacto antenupcial, por vontade própria.

– Por fim, cumpre invocar a boa fé objetiva, como exigência de lealdade e honestidade na conduta das partes, no sentido de que o cônjuge sobrevivente, após manifestar de forma livre e lícita a sua vontade, não pode dela se esquivar e, por conseguinte, arvorar-se em direito do qual solenemente declinou, ao estipular, no processo de habilitação para o casamento, conjuntamente com o autor da herança, o regime de separação convencional de bens, em pacto antenupcial por escritura pública.

– O princípio da exclusividade, que rege a vida do casal e veda a interferência de terceiros ou do próprio Estado nas opções feitas licitamente quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar, robustece a única interpretação viável do art. 1.829, inc. I, do CC/02, em consonância com o art. 1.687 do mesmo Código, que assegura os efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido, bem como preserva a autonomia privada guindada pela eticidade.

– Recurso especial provido. Pedido cautelar incidental julgado prejudicado” (REsp 992.749/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 01.12.2009, DJe de 05.02.2010).

“Direito das sucessões. Recurso especial. Pacto antenupcial. Separação de bens. Morte do varão. Vigência do novo Código Civil. Ato jurídico perfeito. Cônjuge sobrevivente. Herdeiro necessário. Interpretação sistemática. 1 – O pacto antenupcial firmado sob a égide do Código de 1916 constitui ato jurídico perfeito, devendo ser respeitados os atos que o sucedem, sob pena de maltrato aos princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva. 2 – Por outro lado, ainda que afastada a discussão acerca de direito intertemporal e submetida a questão à regulamentação do novo Código Civil, prevalece a vontade do testador. Com efeito, a interpretação sistemática do Codex autoriza conclusão no sentido de que o cônjuge sobrevivente, nas hipóteses de separação convencional de bens, não pode ser admitido como herdeiro necessário. 3 – Recurso conhecido e provido” (REsp 1111095/RJ, Rel. Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal Convocado do TRF 1ª Região), Rel. p/ Acórdão Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, j. em 01.10.2009, DJe de 11.02.2010).

Assim, entendo que deve prevalecer a higidez do sistema, a permitir a interpretação extensiva do art. 1.829, inciso I, do CC/02, de modo a harmonizá-lo com as demais regras que tratam da matéria, concluindo-se que a separação convencional de bens, como manifestação de vontade das partes, não pode ser suprimida para efeitos de sucessão hereditária, devendo prevalecer a eficácia do regime na vida e na morte.

Registra-se, por necessário, que o julgador, ao interpretar a lei, não pode se descurar da intenção da parte ao praticar o ato, ressaltando o insuperável Carlos Maximiliano, apoiando-se em Roberto Ruggiero, que, para ser hermeneuta completo, é mister entesourar "profundo conhecimento do direito e cognição sólida não só da história dos institutos, mas também das condições de vida em que as relações jurídicas se formam" (Hermenêutica e aplicação do direito, 8. ed, p. 112).

Há que se entender, portanto, que, se os nubentes optaram por se casar sob o regime de separação de bens, isolando o patrimônio de cada um, o fizeram exatamente para que pudessem ser livres para dispor e administrar seus bens, não podendo o direito sucessório impor limitações inexistentes em vida. Assim, se foi estabelecido por vontade dos nubentes o regime de bens pelo qual optaram de livre vontade, e se esse regime não foi modificado no curso da vida em comum, como faculta a lei, à evidência que não pode o Estado intervir após a morte, mudando o regime adotado e direcionando parte do patrimônio exclusivo do falecido para o sobrevivente, expressando um ato de vontade que não se coaduna com o expressado pessoalmente pelo falecido em vida.

Logo, data venia, a regra que estabelece, no direito hereditário, a concorrência do cônjuge sobrevivente, não pode alcançar aqueles que, em vida, optaram por ter patrimônio distinto, sob pena de violação evidente ao art. 1.687 do CC/02, estando incluído no art. 1.829, I, desse diploma legal, por conseguinte, não apenas o regime de separação obrigatória, mas também o regime de separação convencional de bens.

É como me manifestei no julgamento do Processo nº 1.0024.09.566202-9/005, em 23.06.2013, impondo-se o acolhimento dos presentes embargos para fazer prevalecer o voto minoritário que, esclareça-se, não se insurgiu contra o afastamento da tese, pelo Relator, de que o casamento deveria ter sido realizado pelo regime de separação obrigatória, restringindo-se o debate, como já dito, à análise da (im)possibilidade do cônjuge supérstite casado pelo regime de separação convencional de bens integrar a relação de herdeiros.

Com tais considerações, e reiterando o pedido de vênia, acolho os embargos infringentes.

Custas recursais, pelo embargado.

DES. ALYRIO RAMOS – Embora já tenha votado anteriormente no sentido dos votos vencedores (A.I. 1.0024.09.566202-9/005), convenci-me de que o melhor entendimento é aquele manifestado no voto minoritário do Desembargador Bitencourt Marcondes, razão pela qual acolho os embargos infringentes.

DES. ROGÉRIO COUTINHO – De acordo com a Relatora.

DES. EDGARD PENNA AMORIM – Convenço-me da pertinência da fundamentação deduzida pela em. Relatora para dar ao caso concreto a solução alvitrada por S.Ex.ª, a quem peço licença para subscrever o judicioso voto, cuja publicação recomendo, pela relevância das teses que aborda.

DES. BITENCOURT MARCONDES – De acordo com a Relatora.

Súmula – ACOLHERAM OS EMBARGOS INFRINGENTES.

Fonte: Recivil – DJE/MG | 06/11/2014.

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A outorga conjugal na separação convencional de bens – realidade e operabilidade – Por: Vitor Frederico Kumpel

* Vitor Frederico Kümpel

O objetivo da coluna de hoje é discutir a aplicabilidade da Outorga Uxória no regime de separação convencional de bens, passando pelo direito intertemporal, em vista dos casamentos celebrados na vigência da codificação de 1916, chegando, por fim, à operabilidade e à funcionalidade do instituto na atualidade. O Código de 2002 introduziu a prescindibilidade da vênia conjugal no regime de separação convencional de bens. Agora, resta saber se a regra é aplicável aos casamentos celebrados na vigência da codificação anterior. Embora a discussão seja antiga, pautando-se desde os idos de 2003, mais precisamente 11 de janeiro, questiona-se além de tudo o limite interpretativo do tabelião de notas e do registrador imobiliário no exercício de suas atribuições, além de se propor um novo olhar à realidade em benefício da concatenação normativa e da adequação à complexificação social do ordenamento.

É bom lembrar que a outorga ou vênia conjugal é a autorização que um cônjuge concede ao outro para alienação ou oneração de bens imóveis com a finalidade de controle, a fim de evitar prejuízo econômico para o cônjuge não titular do referido bem, lembrando ainda que nos regimes de comunhão os frutos, por exemplo, se comunicam, ainda que os bens sejam de titularidade exclusiva de apenas um dos consortes.

Apesar de a dispensa da autorização conjugal, em regime de separação total convencional de bens, para alienação ou constituição de ônus reais sobre imóvel ser uma das grandes inovações da codificação de 2002, (art. 1.647, inciso I), na medida em que o Código anterior não dispensava vênia conjugal em nenhuma hipótese, a novidade gerou inúmeras discussões com diversos detalhes problemáticos, principalmente no que toca à atuação do notário no momento da instrumentalização da vontade jurídica de seus usuários e do registrador no momento do assentamento do título no fólio registral. O Código atual gerou uma diferenciação nos regimes de separação total convencional e obrigatória na medida em que a comunidade jurídica continuou a entender vigente a súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que determina vênia no regime de separação total obrigatória, questão que refoge à discussão deste artigo. Quando, de fato, caberia ao notário o controle da outorga conjugal? Em regime de separação total legal cabe o controle? Em casamentos celebrados sob o regime da separação convencional total antes da vigência do Código cabe o controle? Os casamentos realizados anteriormente a 2003 foram ou não abrangidos pelo novo dispositivo? O fato de o Código anterior tratar a matéria vênia conjugal como nulidade absoluta e o atual como anulabilidade gera alguma diferenciação no controle? As dúvidas são múltiplas e as tentativas de soluções ainda mais variáveis. Na prática, o que tem ocorrido é que, por prudência, o tabelião de notas e o registrador imobiliário acabam não dispensando o controle da outorga na separação total obrigatória. Já na separação total convencional, os notários e registradores dispensam a vênia independentemente da época do casamento, adotando, portanto, posição monolítica para ambas as hipóteses. Contudo, quais seriam os benefícios deste instituto na sociedade atual? Ele ainda é operável no que toca à proteção familiar? A reflexão é essencial em vista da complexidade social: graças à família mosaico, à isonomia social e jurídica entre o homem e a mulher, bem como consequência das concepções culturais cambiantes que tornam muitos institutos anacrônicos, principalmente os inseridos no direito de família, sujeitos a ebulições.

No diploma de 1916, o artigo 235 previa a anuência recíproca entre os cônjuges como requisito de validade para a alienação ou oneração de bens imóveis, qualquer que fosse o regime conjugal. Anuência esta que se traduz em um consentimento, na verdade uma autorização, que de modo algum se confunde com a representação ou com a assistência. Na representação temos a prática de um ato por um terceiro em nome do representado, na assistência o ato é praticado em conjunto por assistido e assistente, prevalecendo a carga volitiva do assistido. Já na autorização, o sujeito pratica o ato por si só, sendo avalizado por terceiro expressamente imputado por lei. A carga volitiva compete exclusivamente ao praticante, e o outorgante apenas autoriza sua prática. Tanto que a representação e a assistência são hipóteses de validação em matéria de consentimento genérico negocial, enquanto a vênia é matéria de validação no que toca à capacidade específica ou legitimação negocial. São certamente institutos com naturezas jurídicas diversas.

A outorga ou vênia é um ato pessoal manifestado, como já dito, por pessoa expressamente prevista em lei, com objetivo de controle dos atos de disposição imobiliária. Os atos de autorização são exigidos pelo artigo 1.647 do Código Civil de 2002 quando da venda, da doação, da troca, da alienação em geral, da cessão de direitos, da renúncia ou de qualquer oneração ou gravame imobiliário, como usufruto, servidão, superfície, hipoteca ou alienação fiduciária, em vista da importância que o sistema confere ao bem de raiz e à sua proteção. Entretanto, qual o motivo da imprescindibilidade da autorização conjugal, evidentemente quando tratamos de um bem particular de um único cônjuge não sujeito à meação?

A existência legal da outorga conjugal encontra razão nos regimes de comunhão, também chamado de condomínio germânico, onde não há cota ou fração sobre a coisa na vigência da sociedade conjugal, muito embora os bens, ora em discussão, não estejam sujeitos à referida comunhão. São bens particulares e assim conservam essa qualidade. Porém, os efeitos reflexos é que implicam no referido controle. Como já mencionado, entram na comunhão as benfeitorias em bens particulares (art. 1.660, inc. IV) e os frutos dos bens particulares (art. 1.660, inc. V), logo, uma edícula construída por um cônjuge no imóvel do outro gera comunhão na referida edícula. Por isso todo ato que tenda a onerar ou desfalcar o patrimônio, reduzindo a sua capacidade de utilização, carece do assentimento do cônjuge1 não titular, no caso de bens imóveis ou de direitos a eles relativos.

A outorga que se diz uxória, adjetivo correspondente a uxoria, feminino de uxorius, do latim uxor, uxoris, ou seja, referente à mulher casada1, espelha, na verdade, a realidade da primeira metade do século XIX, em que a mulher não estava inserida no mercado de trabalho de forma plena e era financeiramente dependente do marido para sobrevivência. Por isso, o instituto sempre foi utilizado como forma de evitar a dilapidação patrimonial do casal pelo marido, ou seja, a ideia da proteção à mulher casada. Nesse sentido temos o artigo 235 do Código Civil de 1916 (o marido nunca prescindia da outorga uxória em qualquer que fosse o regime de bens estabelecido), bem como o art. 259, que dispunha sobre a comunicação dos aquestos mesmo na ausência da comunhão de bens.

Existia tanto a outorga uxória quando a marital. Ao marido conferia-se a condição de chefe da sociedade conjugal, com a colaboração da mulher no interesse da família (Art. 233 do Código Civil de 1916). Assim, ele era responsável pela representação legal da família, com a administração tanto de bens comuns, quanto particulares da mulher, além do provimento da família e da manutenção do domicílio (Incisos I a V do diploma de 1916 mencionado). A justificativa para tanto era que o homem, por possuir maiores atividades profissionais, sociais e econômicas fora do lar, adquiria maior experiência de vida, por conseguinte, maiores condições para solucionar problemas e conduzir a família1.

A abordagem que distinguia a outorga marital da uxória terminou com a implantação da moldura isonômica de direitos entre as figuras masculina e feminina pela Constituição Federal de 1988 (Art. 226, parágrafo 5º). Por isso diz-se que a expressão verdadeiramente técnica, a ser usada hoje, seria Outorga Conjugal, válida tanto para o homem quanto para a mulher. Atualmente a outorga é necessária aos atos elencados nos regimes da comunhão parcial de bens, da comunhão universal, bem como no regime de participação final nos aquestos, com exceção do previsto pelo art. 1.656 do CC, que faculta a livre disposição dos imóveis neste último regime, desde que expressamente previsto no pacto antenupcial.

É sabido – e já foi reiterado aqui – que o Código Civil de 2002 dispensou a outorga conjugal no regime da separação total convencional, chamada de separação absoluta. No entanto, a dúvida começa pela própria nomenclatura adotada. Na codificação de Beviláqua, a separação podia ser tanto legal quanto convencional, no caso da separação convencional a dispensa da outorga é clara no artigo 1.687 Código de 2002, que dispõe sobre a livre alienação ou gravação dos bens incomunicáveis. A dúvidaocorre na separação obrigatória, se há a incidência ou não da antiga súmula 377 do STF, que determina a comunicação dos bens adquiridos durante o casamento pelo esforço comum (aquestos) no regime da separação convencional. Singular é a súmula ser complementação do artigo 259 do Código de 1916 e que hoje está expressamente revogado. Porém, para não causar mais polêmica ainda, aliamo-nos à jurisprudência que dita a permanência da súmula2, muito embora a mesma esteja com seus dias contados.

A segunda dúvida nos remete ao direito intertemporal. A dispensa da outorga é aplicável apenas aos casamentos celebrados após 2003 ou também aos anteriores à vigência da codificação mais recente? A sociedade mudou e o Código atual diz exatamente o contrário do anterior na separação convencional. Agora se prescinde da vênia em regime de separação convencional. O problema, contudo, ocorreu com a uniformização das decisões administrativas, que desqualificaram a outorga para os casamentos sob a égide do regime de separação absoluta, na codificação de Beviláqua3. Observe:

CSMSP- Apelação Cível 356-6/0 da Comarca de São José do Rio Preto. Ementa: REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura pública de venda e compra – Recusa com base no art. 235, I, do Código Civil de 1916, combinado com o art. 2.039 do Código Civil de 2002 – Ausência de outorga uxória – Dúvida improcedente – Formalidade legal não inerente o regime de bens adotado – Incidência do art. 1.647, I, do diploma atual, que não afeta ou modifica tal regime – Registro cabível – Recurso não provido.”Entendeu-se pela dispensa da outorga em regime de separação na vigência do Código de 2002, qualquer que fosse o tempo da celebração do casamento. A outorga foi entendida como elemento de eficácia do negócio, interpretação, de modo geral, problemática, ignorando o direito adquirido, um ato jurídico perfeito, corroborando na contra mão do estabelecido pelo próprio Código de 2002 em seus artigos 2.039 e 2.035. Para deixar mais claro, foi entendido que a vênia incorporaria o negócio celebrado após a vigência do Código atual. Porém a outorga diz respeito à situação de casado e que segundo o art. 2.039 do CC, obviamente adota as regras do sistema anterior. Não bastasse isso, o art. 2.035 declara: tudo que diz respeito à validade dos negócios (nulidades e anulabilidades), constituídos antes da entrada em vigor do Código atual (casamento), obedece a legislação anterior, obviamente.

Tanto que repisando o art. 2.039 da lei Federal 10.406/2002, as regras dos regimes de bens estabelecidas no Código de 1916 devem ser aplicadas aos casamentos celebrados sob sua égide, mesmo na vigência do diploma atual, o que não poderia ser diferente em respeito à garantia fundamental do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Ademais, no art. 6º da LINDB , "a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada", sendo que o parágrafo primeiro caracteriza ainda o ato jurídico perfeito como o "o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou". Segundo Alexandre de Moraes, "ato jurídico perfeito é aquele que reuniu todos os seus elementos constitutivos exigidos pela leie o “princípio constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito aplica-se a todas as leis e atos normativos, inclusive às leis de ordem pública"4. O respeito ao ato jurídico perfeito é garantido pela própria Lei Fundamental, art. 5º, inciso XXXVI.

Por isso, a regra, de modo geral, é que os efeitos da nova lei apenas alcançam os fatos ocorridos posteriormente ao início da vigência da mesma, trocando em miúdos, trata-se do princípio da irretroatividade das leis. Assim, mesmo no caso da revogação de uma norma, ela não deixa de existir, apenas a sua validade e eficácia ficam prejudicadas, pois ainda permanecem em vigor no que toca ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, ou seja, em situações que se prolongam no tempo por ultratividade.

O direito adquirido se incorpora definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, com efeitos latentes, pois nem a lei, nem o fato posterior podem alterá-lo. Desse modo a outorga em casamentos anteriores a 2003 deveria permanecer até mesmo na vigência do novo ordenamento, mesmo por uma questão de segurança do sistema. Como afirma Maria Helena Diniz, "a segurança do ato jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido pela proteção que se concede ao seu elemento gerador, pois se a nova norma considerasse como inexistente, ou inadequado, ato já consumado sob o amparo da norma precedente, o direito adquirido dele decorrente desapareceria por falta de fundamento"5. Logo, se o casamento ocorreu em tempo hábil, na vigência da lei que contempla o direito, e obedeceu aos requisitos de validade do negócio, tais como agente capaz, objeto lícito e forma prevista ou não proibida em lei (art. 82, CC 1916 e art. 104 do atual), além dos requisitos próprios do casamento, gerou direito adquirido, que irradia efeitos.

A todo direito corresponde uma ação, de forma que não existe direito sem ação que o assegure ou o faça valer, tornando-o exigível. Direito sem ação não é direito. É bem possível, que os cônjuges, casados sob o regime da separação de bens pelo código anterior, já esperassem ser sua autorização indispensável à venda ou à oneração de imóveis por seu consorte, lembrando ainda que a vênia gerava nulidade absoluta e não a mera anulabilidade do Código atual. Por isso, se um consorte vende um imóvel do seu patrimônio particular sem a outorga ou o suprimento judicial do outro, nasce para o cônjuge ignorado o direito de invalidar a alienação, ou seja, um direito de ação consectário do direito subjetivo. Explicada a questão retomemos o artigo 2.039 CC/02. Para melhor compreender a questão, vale pequena incursão histórica. Conforme exposto nos comentários ao Novo Código Civil sob coordenação do relator Deputado Ricardo Fiuza, o texto original do projeto proposto na Câmaraestabelecia que "O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido, mas se rege pelas disposições do presente código" Após a passagem pelo Senado com a emenda do senador Josaphat Marinho, o dispositivo ganhou a redação atual, sob a seguinte justificativa: "houve necessidade de se promover a modificação porque se, como dito na parte inicial do dispositivo, 'o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por este estabelecido', não se regerá pelo novo"6 (grifos nossos). Ora, se o próprio legislador suprimiu a expressão “mas se rege pelas disposições do presente código” foi exatamente para fazer permanecer as disposições de 1916 para os casamentos anteriores a 2003. Trocando em miúdos, o notário ao lavrar qualquer escritura de situação ou de matrimônio anterior a 2003 deve aplicar os artigos do Código de 1916 e jamais os do atual.

Ainda no que diz respeito às disposições transitórias do Código de 2002, em uma interpretação sistemática, combinando o artigo 2.039 com o 2.035, que diz que a validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor do Código de 2002, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução, ambas as normas conjugadas trazem à baila a regra do código anterior para os casamentos realizados em sua vigência, vez que a outorga conjugal se trata essencialmente de um elemento de validade, como já dito, nulificava o negócio no Código anterior e o torna anulável no atual. Elemento de eficácia é, por exemplo, condição, termo ou encargo, mas jamais algo invalidante.

Anote-se ainda que pelo diploma anterior, a ausência da outorga era causa de nulidade absoluta do negócio (arts. 235, 242 e 252), conforme exaustivamente mencionado, portanto, as regras jurídicas concernentes à outorga marital do Código de 1916 são de ordem pública, não se subordinando às conveniências pessoais de um ou outro cônjuge, e não podendo ser dispensadas a qualquer pretexto1. A nulidade é o estado do negócio que ingressou no mundo jurídico descumprindo requisitos de validade considerados essenciais ao interesse social e à ordem pública. Por isso, em função de sua relevância e gravidade, em caso de infringência de nulidades, a ordem jurídica reage vigorosamente, imputando o grau máximo de invalidade ao negócio7.

Todavia, admite-se que o Código de 1916 não era nada didático, pois previa as nulidades em geral, o que acabava gerando confusões e discussões e, por si só, já denotava a imprecisão e agramaticalidade do mesmo. Não obstante, o que concluímos, por se tratar de uma nulidade, é que no diploma anterior, a ausência da outorga era verdadeira afronta à ordem social, vez que de ordempública. Por tal motivo é que jamais tabelião e registrador praticavam os atos em seu mister sem a vênia, porém autorizavam a alienação do pai para o filho sem anuência dos demais descendentes, pois a matéria sempre foi anulável, de ordem privada, portanto.

No Código atual, por sua vez, a outorga é elemento de anulabilidade, neste caso a afronta envolve primariamente o interesse do particular, com tratamento diverso dos casos de nulidade. Destarte, nos casamentos posteriores a 2003, o controle da outorga é de ordem privada, pois o negócio é anulável, já se o casamento se deu antes da codificação atual e, nos dias atuais, haja uma dispensa do controle, o negócio é nulo, incidindo questão de ordem pública. Em qualquer hipótese, abordamos atos de legitimação, ou seja, da capacidade especial exigida por lei, que implica em elementos de validade (art. 104, inciso I) do ato. E a atitude da jurisprudência tem sido contra legem, dispensando a outorga para casamentos, sob fundamentos os mais variados e inusitados.

E é aí que surge o nosso maior problema, pois embora pragmaticamente essa abordagem jurisprudencial realmente seja a opção mais simples, ela não é técnica, pois, como dito, tratamos de elemento de validade do negócio jurídico, não de eficácia como entendeu a jurisprudência mencionada.

Diante de toda essa complexidade normativa, como ficam os tabeliães e registradores? Como atos administrativos, os atos dos oficiais extrajudiciais adstringem-se às regras do ordenamento jurídico, devendo sempre pautar-se pelo princípio da legalidade. Seus atos não são dotados de discricionariedade (conveniência e oportunidade). Ademais, a inobservância das prescrições normativas pelo oficial é motivo de infração disciplinar, conforme art. 31, inciso I, da lei Federal 8.935/1994. É nesse sentido que os oficiais de modo geral acabam exigindo a outorga conjugal em qualquer hipótese para o ingresso do negócio no fólio real. Porém, na prática dispensam, na separação total convencional, a outorga conjugal, qualquer que seja o período do casamento e gerando, como consequência, uma série de negócios nulos.

Arrematando tudo o que foi dito, fica apenas a reflexão: O fenômeno jurídico é em sua essência multifacetado, e deve ser lido, entendido, examinado e interpretado apesar de sua complexidade. A sociedade atual tende a simplificar institutos como os ora analisados, apesar de sua alta complexidade. Como deve se pautar o notário e o registrador diante de situações como a ora analisada? Toda ação deve basear-se na análise e observação da jurisprudência e, então praticar o ato? Ou deve se pautar por um estudo e reflexão e negar a prática do ato, que em tese implica em nulidade absoluta, e, portanto vício insanável de ordem pública, e que na prática pode ocasionar sérios prejuízos ao cônjuge prejudicado. Fica a reflexão.

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1. Enciclopédia Saraiva do Direito. Coordenação Prof. R. Limongi França. São Paulo. Saraiva. 1977.

2. STJ – REsp 1.163.074-PB. DJ 04.02.2010

3. CSMSP – Apelação Cível 356-6/0.

4. MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada, Atlas, São Paulo, 2002, p. 299

5. DINIZ, Maria. Helena. Lei de Introdução do Código Civil Brasileiro Interpretado. Saraiva: São Paulo, 9ª edição, 2002, p. 185

6. Novo Código Civil Comentado. Coordenador: Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1858

7. VELOSO, Zeno. Invalidade do Negócio Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 35.

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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