Artigo: O Alvará Municipal e as Serventias Extrajudiciais – Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

Ultimamente os municípios têm investido com freqüência contra as unidades de serviços notariais e de registros para a cobrança da chamada “taxa de licença”, como forma de viabilizar a expedição pelas prefeituras do respectivo alvará de funcionamento para os cartórios.

Para enfrentar a questão, de saída, há de considerar que os serviços notariais e de registros possuem natureza pública. Já não é novidade que a atividade notarial e registral, desde o advento da Constituição Federal de 1988, possui roupagem peculiar, caracterizando-se pelo exercício privado de uma função pública, mediante delegação do Poder Público (art. 236, caput, da CF).

Nesse trilho, os serviços de registro e notariais são públicos, não afastando esta característica o fato de serem prestados em caráter privado por particulares. Segundo a doutrina, inclusive, seus atores enquadram-se na categoria de particulares em colaboração com o Estado, de modo que as unidades para as quais receberam a delegação do Poder Público são consideradas parte integrante da organização judiciária, como serventias do foro extrajudicial.

Em outros dizeres, apesar dos atos notariais e de registro serem exercidos em caráter privado – porque eles não são remunerados pelos cofres públicos, mas sim pelo pagamento de custas e emolumentos que lhes fazem os interessados nos respectivos serviços –, tal circunstância não desnatura a natureza dos referidos serviços, que são sabidamente públicos. São, em realidade, atividades jurídicas próprias do Estado, cuja prestação é traspassada para os particulares mediante delegação. Vale dizer, notários e registradores atuam como delegados do Poder Público.

Nesse caminho, colhe-se elucidativo raciocínio de José Cretella Júnior: “Relembre-se que o serviço público tem esse caráter, não em si e por si, em essência – serviço público material – mas ‘em razão de quem o fornece’. Se o Estado titulariza certo serviço – ensino, transporte, a atividade é, formalmente, serviço público. Os serviços notariais e de registro cabem, por sua relevância, ao Estado, mas os Poderes Públicos, por delegação, permitem que sejam exercidos em caráter privado”. 1

Com arrimo nessas ponderações iniciais, faz-se necessário considerar que os serviços notariais e de registros não podem ser equiparados às atividades comerciais comuns ou mesmo assemelhados a qualquer serviço prestado em iniciativa privada. Colaciona-se nessa linha de pensamento manifestação precisa de Ana Luísa de Oliveira Nazar de Arruda: “Muito salutar é, entretanto, salientar efusivamente que um cartório não pode ser equiparado a uma empresa privada, em que se prestam serviços de caráter privado, essencialmente disponíveis, muitas vezes supérfluos, e de natureza eminentemente contratual. Os serviços notariais e de registro são de natureza compulsória, de caráter público, cuja prestação interessa a toda sociedade”. 2

Sedimentada esta premissa, indaga-se: afinal, o que é alvará?

Hely Lopes Meirelles sempre ensinou que “Alvará é o instrumento de licença ou da autorização para a prática de ato, realização de atividade ou exercício de direito dependente de policiamento administrativo. É o consentimento formal da Administração à pretensão do administrado, quando manifestada em forma legal.” 3

A partir do conceito fornecido pela clássica doutrina administrativista vê-se que “alvará” nada mais é do que um ato administrativo pelo qual a Administração Pública confere licença ou autorização para a prática de ato ou para o exercício de atividade sujeitos ao poder de polícia do Estado – tomada aqui a expressão “Estado” no seu sentido amplo, significando qualquer das pessoas jurídicas de direito público, na esfera federal, estadual e municipal.  

Nessa senda, não parece correto admitir que o funcionamento da unidade de serviço extrajudicial – que presta serviço público à população e cuja existência decorre de Lei, havendo regras definidas nas Leis Federais 6.015/73, 8.935/94. 9.492/97 e 10.169/00, entre outras – possa estar condicionado à concessão de alvará por parte da municipalidade. Ora, se como adrede examinado, a atividade do notário e do registrador é considerada serviço público disciplinado por lei, não há outra conclusão a se chegar. Falta aos municípios legitimidade para autorizar a prestação ou o funcionamento dos serviços notariais e de registros. Entender noutro sentido, com a devida vênia, leva ao absurdo de se permitir, por exemplo, a exigência de alvará municipal para a instalação e funcionamento do fórum de determinada comarca, ou de qualquer outro órgão público seja do Estado, seja da União.

Em passo seguinte, a esta altura já com certa maturidade doutrinária, não se discute mais que na novelsistemática constitucional, o poder delegante a que se refere a Lex Mater, no caput do art. 236, é, inexoravelmente, o Poder Judiciário. Afinal, se este é o Poder responsável pela fiscalização e decretação do fim da delegação – nos termos da Lei vetora da atividade notarial e registral (Lei nº 8.935/1994) –, nada mais natural que seja atribuída ao Judiciário a competência para outorgar as delegações notariais e de registros.

Nesse ângulo, ainda na dogmática jurídico-constitucional, o § 1º do art. 236 da Constituição – norma constitucional de eficácia limitada, na clássica dicção de José Afonso da Silva – estabelece, que “Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade e criminal dos notários, os oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário”.  

A premissa constitucional é muito clara e espanca qualquer dúvida. Não há, pois, necessidade de qualquer esforço hermenêutico para concluir que o Poder Judiciário é o responsável pela fiscalização dos serviços notariais e de registros.

Completando o preceito constitucional, a Lei nº 8.935/1994 disciplinou detalhadamente o regime jurídico a ser aplicado aos notários e registradores e em capítulo específico (Capítulo VII) esmiuçou como deve ser a fiscalização do Poder Judiciário frente às serventias extrajudiciais. Observe-se em detalhe a polida redação do art. 37, que para sua intelecção dispensa outras ponderações: “A fiscalização judiciária dos atos notariais e de registro, mencionados nos arts. 6º a 13, será exercida pelo juízo competente, assim definido na órbita estadual e do Distrito Federal, sempre que necessário, ou mediante representação de qualquer interessado, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos”.

Coloca-se em evidência que não é outro o objetivo dessa zelosa fiscalização a ser materializada pelo Judiciário Estadual senão para que os serviços notariais e de registros “sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desses serviços, observados, também, critérios populacionais e sócio-econômicos, publicados regularmente pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística” (art. 38 da Lei nº 8.935/1994).

Com efeito, considerando-se o alvará como instrumento que materializa uma fiscalização positiva em relação à determinada atividade, é de rigor advertir que na hipótese dos serviços notariais e de registros, essa fiscalização é incumbência exclusiva do Poder Judiciário. Nessa ampla moldura, eventual interferência do Poder Executivo Municipal na fiscalização dos cartórios extrajudiciais mostra-se juridicamente inoportuna e incabível, capaz inclusive de balançar a harmoniosa convivência dos Poderes da República, comprometendo-se o pacto federativo.

Diga-se de passagem, sequer legitimação constitucional para esta atuação dos municípios existe. Peremptória, nesse sentido, foi a conclusão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: “(…) Trata-se de matéria incontroversa, havendo expressas disposições legais a discipliná-la no sentido de que compete ao Poder Judiciário fiscalizar as atividades realizadas pelos notários, oficiais de registros e respectivos delegados, não podendo, pois, o Município exercer poder de polícia com relação a estes serviços. Nos termos do art. 236, § 1º, da CF/88 e art. 37 da Lei n. 8.935/84, compete ao Poder Judiciário estadual fiscalizar as atividades realizadas pelos notários, oficiais de registros e seus respectivos prepostos, sendo indevida a exigência, pelo ente municipal, de licença prévia de funcionamento e cobrança de taxa de fiscalização ou vistoria (TJRS – Apelação Cível 70042273854, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Arno Werlang, DJ 13.12.2012). Também nessa linha confiram-se os julgados:TJRS – Apelação Cível nº 70015176829, Primeira Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Silveira Difini, julgado em 09/08/2006; TJRS – Apelação e Reexame Necessário nº 70010126001, Primeira Câmara Cível, Rel. Henrique Osvaldo Poeta Roenick, julgado em 15/12/2004. 

Quadra anotar ainda que não bastassem todos esses fundamentos jurídicos, há um imperativo de ordem prática que também deve ser considerado. No mais das vezes, o que se vê no mundo dos fatos é que a fiscalização municipal se limita única e exclusivamente à mera arrecadação de taxas periódicas e nada mais. É dizer em palavras outras que sequer o poder de polícia municipal – que serve de substrato para a exação tributária na modalidade “taxa” – é efetivamente levado a efeito pelo Poder Executivo Municipal, resumindo-se à cobrança do tributo sem qualquer conduta ou providência de ordem fiscalizatória para com aspectos técnicos referentes à instalação, funcionamento, higiene, saúde, segurança, ordem ou tranqüilidade públicas.

Entrementes, os municípios costumam fundamentar sua atuação fiscalizatória na necessidade de verificação do correto uso e ocupação do solo, localização física dos prédios, atendimento à legislação de acessibilidade, dentre outras questões. Cabe dizer que nessa ótica verifica-se nítida desconsideração por parte dos municípios da peculiar natureza jurídica dos serviços notariais e de registros, que, como amplamente explorado, não se confundem com as atividades das empresas privadas. Nessa linha de raciocínio, observe-se pedagógica manifestação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal: “O poder de policia a ser exercido por serviços desta natureza, ainda que relacionado à questão urbanística, é da competência exclusiva da Corregedoria do Tribunal de Justiça, de forma que a exigência pelo Distrito Federal de Alvará de Funcionamento é indevida.(…) Avaliar se o imóvel é ou não seguro para a atividade, se está de acordo com as normas urbanísticas e ambientais, com o zoneamento, com os padrões legalmente estabelecidos para o funcionamento dos prédios”, para efeito de exigência de expedição de alvará de funcionamento, é rigorosamente providência desnecessária, uma vez que esse exame é feito quando da construção do prédio pela Emissão do Alvará de construção, depois, pela expedição de carta de Habite-se. Manifesto o desvio de finalidade com que se houve a autoridade coatora” (TJDFT – 2ª T. Cível, Apelação Cível e Remessa de Ofício nº 2000.01.1 081982-9, Rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto, julgado em 01/12/2003). 

Eloquente, a propósito, é o argumento de que as normatizações administrativas a cargo das Corregedorias Gerais da Justiça dos Estados – verdadeiras responsáveis pela orientação, coordenação e fiscalização das unidades de serviços extrajudiciais – têm evoluído sensivelmente no regramento das condições e exigências para a prestação dos serviços notariais e de registros, detalhando minuciosamente os padrões a serem observados pelos seus titulares. Mencione-se, por exemplo, valiosa previsão contida nas Normas do Serviço Extrajudicial da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que em seu Capítulo XIII, item 20.1, determina: “Observadas as peculiaridades locais, ao Juiz Corregedor Permanente caberá a verificação dos padrões necessários ao atendimento deste item, em especial quanto a: a) local, condições de segurança, conforto e higiene da sede da unidade do serviço notarial ou de registro; (…) c) adequação de móveis, utensílios, máquinas e equipamentos, fixando prazo para a regularização, se for o caso; (…) g) fácil acessibilidade aos portadores de necessidades especiais, mediante existência de local para atendimento no andar térreo (cujo acesso não contenha degraus ou, caso haja, disponha de rampa, ainda que removível); h) rebaixamento da altura de parte do balcão, ou guichê, para comodidade do  usuário em cadeira de rodas; i) destinação de pelo menos uma vaga, devidamente sinalizada com o símbolo característico na cor azul (naquelas serventias que dispuserem de estacionamento para os veículos dos seus  usuários) e, finalmente, um banheiro adequado ao acesso e uso por tais cidadãos”.

De mais a mais, comprovando-se não tratar de mero argumento de retórica, em termos essencialmente práticos, tem se verificado no contexto hodierno uma objetiva e eficaz fiscalização realizada pelo Poder Judiciário nas serventias extraforenses, bastando para se chegar a esta certeza uma simples análise das atas de correição, nas quais se encontram elencados diversos pontos como instalações, equipamentos, acessibilidade, higiene, segurança entre outros. Irrefutável, pois, que as condutas fiscalizatórias das prefeituras municipais esbarram em atribuições de outro Poder. Alinhando-se ao entendimento de ser exclusividade do Poder Judiciário a fiscalização das unidades extrajudiciais o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sem deixar dúvidas: “Taxa em razão do poder de polícia. A Lei matogrossense nº 8.033/2003 instituiu taxa em razão do exercício do poder de polícia. Poder que assiste aos órgãos diretivos do Judiciário, notadamente no plano da vigilância, orientação e correição da atividade em causa, a teor do § 1º do art.236 da Carta-cidadã” (STF – ADI nº 3151, julgado 08/06/2005, Rel. Min. Carlos Ayres Brito, DJ de 28/04/2006).

Por derradeiro, cabe acrescentar outro estribado argumento alhures apresentado por Marco Antonio de Oliveira Camargo. 4  Considerando-se, à guisa de raciocínio, as serventias de registro civil das pessoas naturais, a Lei nº 8.935/1994 determina peremptoriamente que “em cada sede municipal haverá no mínimo um registrador civil das pessoas naturais”. Desse modo, se a lei exige sua existência em todos os municípios não tem cabimento as prefeituras municipais dificultar ou impedir a instalação e funcionamento desse serviço trivial aos cidadãos. Parece teratológico considerar possível que a municipalidade possa censurar o funcionamento deste essencial serviço público. Imagine-se, nesse passo, o absurdo que seria se determinado município recusasse a concessão do alvará de funcionamento de uma serventia de registro civil das pessoas naturais – o que, para quem defende a legitimidade da fiscalização municipal, seria em tese possível, já que a concessão ou não do alvará é ato discricionário da municipalidade. Quem faria os registros de nascimento e de óbito? Os munícipes ficariam impedidos de se casar?

Em razão do princípio da continuidade dos serviços públicos, assim como da essencialidade dos serviços notariais e de registros à população é ululante que o ente municipal não pode impedir a prestação destes serviços indispensáveis.  Aliás, sob este prisma a questão já foi enfrentada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, tendo sido afastada conduta manifestamente ilegal de determinado município: “Reexame Necessário de Sentença. Mandado de Segurança. Fechamento de cartório de registro civil como meio coercitivo no recebimento pela prefeitura municipal de taxa de alvará e localização dessa entidade judicial. Ilegalidade do ato. Ordem concedida. Sentença reexaminada confirmada. Traduz-se em ato ilegal e abusivo o Decreto Legislativo Municipal que determina o fechamento de Cartório de Registro Civil como meio coercitivo no recebimento dos tributos devidos por essa entidade judicial"(TJMT – RN 1.002, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ferreira Leite, julgado 26.11.1996) .5

Por todos os argumentos articulados é de se concluir que as serventias extrajudiciais não estão sujeitas à ingerência fiscalizatória dos municípios, de modo que eventuais condutas das autoridades municipais nesse sentido, em realidade, desnaturam todo o arcabouço jurídico que rege a atividade notarial e registral.

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Referências

1. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988, vol. IX, p. 4.611.

2. ARRUDA, Ana Luísa de Oliveira Nazar. Cartórios extrajudiciais: Aspectos Civis e Trabalhistas. Editora Atlas, p.17.

3. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Malheiros Editores, 22ª Edição. p.122 e 123.

4. CAMARGO, Marco Antonio de Oliveira. Da desnecessidade de alvará e taxa municipal, publicado em 06/12/2010, no blog do Colégio Notarial do Brasil, acessível em http://www.notariado.org.br/blog/?link=visualizaArtigo&cod=204)

5. RIBEIRO, José. Serviços Notariais e registrais. Imposto sobre serviço – ISS. As serventias e o alvará municipal. Disponível emhttp://www.irib.org.br/html/boletim/boletim-iframe.php?be=3247

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Artigo – Deontologia Notarial: Introdução e Importância – Por Fernando Alves Montanari

* Fernando Alves Montanari

Este artigo busca, de alguma forma, contribuir para uma simples introdução no estudo da deontologia do campo notarial e o lançar de sua importância para o desenvolvimento do mesmo como um todo.

As atividades tabelioas que hoje podem ser experimentadas pela sociedade brasileira nos diversos cartórios de notas e de protestos que cobrem o país são fruto de uma historicidade forjada com o empenho e a dedicação dos tabeliães que as exercitam desde a Antiguidade (mormente as notas), somando-se a isso a ingerência do Poder Público desempenhado pelos representantes da coletividade, tudo para o bem e a dignidade daquelas, através da criação, implementação e fiscalização de políticas e de um arcabouço jurídico que garante às notas e protestos estofo.

Para que hodiernamente pudéssemos contar com o serviço público que nos beneficia de forma ímpar com a segurança jurídica que esperamos do mesmo, através dos titulares destes cartórios e seus prepostos, reforçando seu principal atributo (fé pública), foi necessária uma sucessão natural (às vezes, forçada) de acontecimentos que os livros e artigos especializados sobre a matéria dão conta de registrar, nos instruir e garantir que as futuras gerações deles tomem conhecimento.

Ao mesmo tempo em que estas atividades foram evoluindo com muito suor, determinação e o emprego da inteligência dos notários, necessário foi conceber, aplicar e desenvolver um conjunto de normas que pudessem regrar o serviço para que caminhos tortuosos não fossem percorridos, para que o bem geral fosse respeitado e para que esta aparelhagem pudesse dar conta das pretensões e necessidades que a sociedade carecia e carece.

Não por acaso, de nada adianta para o grupo social um cartório que seja conhecido somente pela praticidade com que executa seus serviços, mas que é deficiente em conhecimentos técnico-jurídicos. De outra banda, não cumpre seu papel um cartório que seja conhecido somente pela capacidade intelectual de seu delegatário, enquanto os seus misteres estão perdidos nos procedimentos mal concebidos e executados para seus interessados. A união entre a teoria e a prática e seu desempenhar harmônico faz o bom tabelionato, que deve possuir um responsável capaz de por fim aos reclames sociais das notas e dos protestos, bem como uma equipe capaz de bem executar seus deveres com o uso de técnicas administrativas e gerenciais próprias da natureza da serventia. Só assim os conhecidos e populares escritos públicos (estejam eles instrumentalizando uma venda e compra, um inventário, uma declaração antecipativa de vontade ou uma que discipline uma união estável – sem esquecer dos atos extraprotocolares de reconhecimento de assinaturas e autenticações de toda ordem) e protestos atingirão seus fins, garantirão e serão marcados pela segurança jurídica como atos perfeitos e acabados, pautados na publicidade, autenticidade e eficiência.

Todavia, da mesma forma que não só de pão vive o homem, as notas e protestos sobreviveram até hoje, dentre outros, graças a uma estrutura ética prática cumprida por parte daqueles que os anima.

Neste particular viés, se quisermos que as notas e protestos continuem evoluindo, cumpre-nos indagar: qual conduta deve animar aqueles que têm por profissão desempenhar o Direito através das funções registrais ou, mais particularmente, as tabelioas? Existem princípios capazes de orientar essa conduta para que seja adjetivada como “digna”, “ética” e “moralmente boa” não só pelos seus pares, mas pela própria sociedade e pelo Poder por ela constituído? Seria possível especular sobre um regime ético-jurídico que consiga estruturar a conduta do profissional das Notas e, uma vez inserido dentro deste sistema axiológico-normativo, classificar seu comportamento como aquele que atingiu o fim que destinava e que valeu: por si só, para aqueles que o demandaram e para todos que direta ou indiretamente tomaram ou tomarem contato com ele? Classificá-lo, enfim, como um bom comportamento ético profissional?

Tais indagações, pelo que se percebe, não querem saber se este ou aquele notário tem conhecimentos legais e jurídicos suficientes para confecção desta ou daquela escritura ou se é capaz de lavrar o instrumento de protesto adequado; se ele está a par das orientações jurisprudenciais que norteiam a sua atividade, das questões jurídicas em voga ou das exaustivamente discutidas; ou, ainda, se ele conhece o texto frio e os meandros das normas de serviços extrajudiciais emanadas da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça a que esteja sob fiscalização direta ou indireta.

Elas escamoteiam a preocupação com o comportamento dos tabeliães no desempenho de suas funções para que esse seja o mais próximo de uma plausível e possível perfeição e possa ser destacado como portador da ideia de bom e digno para todos, ou seja, ser emplacado como um comportamento justo. Não são questões descabidas ou ultrapassadas. Pelo contrário! São perguntas que buscam enaltecer o respeito que os tabeliães devem nutrir pela profissão que envergam antes mesmo de colocarem no campo prático as normas jurídicas que tanto pelejam “saber”, “entender” e “compreender”, nos mais íntimos e escancarados sentidos que estas palavras carregam.

As faculdades de Direito gastam pouquíssimas aulas, geralmente no início de seus cursos, quando dos estudos das propedêuticas jurídicas, para diferenciarem e aproximarem a Moral e o Direito (e, em algumas, a Ética). Depois disso, talvez pelo enorme tamanho dos conteúdos programáticos, dão atenção quase que exclusiva às dogmáticas jurídicas, para não dizer uma atenção integral.

Para a maioria destas instituições de ensino, inclusive ditas “de escol”, infelizmente, a preocupação com a deontologia passa ao largo. No geral somente quando o profissional, neófito ou não, começa a esbarrar nos problemas que a falta de ética pode fazer emergir no exercício do Direito e, não raras vezes, quando ele próprio se percebe no cerne destes problemas, é que a preocupação com os deveres ou regras desta natureza desperta e/ou se acentua. Neste contexto, as perguntas formuladas acima deixam de parecer simples questionamentos de mais um artigo que versa sobre a prática da ética e se tornam essenciais (basilares mesmo!), na determinação de um sentido geral de regras de ação para a própria vida do(a) Tabelião(a), seja no campo profissional ou não, pois as notas são verdadeiro sacerdócio dentro e fora do cartório, facilmente perceptível por aqueles tabeliães que exercem suas funções fora dos grandes centros, onde são conhecidos por todos do município, fato que as metrópoles disfarçam.

Seria no mínimo leviandade olvidar que a técnica, o direito objetivo, o direito subjetivo e a própria dogmática sejam importantes para qualquer profissional do Direito e um completo absurdo esquecer que estes são basais para aqueles que desempenham os registros públicos, sobretudo os que devem formalizar a vontade das partes de modo jurídico. O notário não interpreta em termos médicos ou só em fórmulas aritméticas o querer dos interessados que o procuram. Ele verte e formaliza esta vontade em termos jurídicos e, portanto, é indispensável o bom conhecimento do Direito como um todo.

Mas, só isso não basta. Como também não basta todo o arcabouço de instrumentalização, aumento de competências e atribuições que dotem as Notas de uma maior gama de serviços a serem disponibilizados à população.

Os preceitos jurídicos trazidos pelas normas (dever-ser) não alcançam por si mesmos a produção de efeitos. Eles precisam ser exercitados e conjugados com as vontades das partes para se tornarem uma escritura pública (ser) através da figura do notário, que tem por dever a Prudência, a Imparcialidade, a Igualdade e a legalidade, mas que carrega consigo seus conhecimentos, seus desconhecimentos, suas habilidades, suas inabilidades e, também, como não poderia ser diferente, suas disposições éticas.

Tais disposições variam de profissional para profissional, nada mais natural.

O entrave surge quando estas disposições não são consolidadas como virtudes do(a) Tabelião(ã), que deixa de dar cumprimento à norma e, talvez, à ética que deveria bem conduzir a função notarial, fugindo do dever moral-ético-jurídico que lhe cabia, prejudicando os interessados que o procuram, lesando a sociedade em que inserido e traindo a confiança de seus pares. Quando assim age, este profissional está maculando a ética profissional e aquele que dá fé se torna indigno de fé, subvertendo e manchando o sistema das notas e do protesto e, a partir daí, em cadeia, desrespeitando os interessados, aqueles que se envolverão com seu ato, seus pares, seus funcionários, suas associações representativas e a sociedade como um todo. A inclinação ética deficiente repercute, portanto, em toda a cadeia.

Por isso, o estudo, a formação, o debate, a reflexão e o desenvolvimento de uma ciência que trate dos deveres profissionais a que estão submetidos os notários, tal como a deontologia se propõe, é fundamental e tende a resultados mais salutares das funções desenvolvidas por estes profissionais e dos objetivos visados.

A deontologia notarial, que podemos entender de forma bem simplista como o conjunto de princípios e deveres que regula a atuação do Tabelião na prática para o bem da sociedade em que inserido e que dignificam a sua profissão, não é uma balela que deixará de existir dentro em breve. Trata-se de uma questão que todos devemos enfrentar para sabermos, em nossas vidas profissionais, distinguir o bom do mal procedimento, o correto do incorreto, o justo do injusto. Propõe o estudo e desenvolvimento dos deveres dos Notários do ponto de vista empírico.

Disso advém que uma ética notarial com deveres elevados reforça a fé que a sociedade deposita nas funções notariais, assegurando e alicerçando a Justiça, pois quanto maior for o empenho do Tabelião no bem agir profissional, maiores são os campos de aplicação e de extensão do seu ato, com uma maior incidência do princípio profilático de prevenção de litígios.

Se concordamos até aqui, fica fácil perceber, por via direta, que uma ética notarial com deveres elevados faz assegurar a própria solidariedade social, um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil e um princípio (vetor) que se esparge por todo o sistema. Trata-se de uma forma de relacionamento capaz de aproximar ainda mais o notariado da sociedade, de modo que a concretização dos direitos e garantias, fundamentais ou não, se integram e são alcançados de forma mais justa (equânime para todos).

Os deveres éticos profissionais do notariado não são insossos. Representam o sabor da dignidade que deve revestir as notas, muito além de uma fria “instrumentalização da vontade das partes”. Extrapolam, por isso, uma espécie de “mecanicidade das notas”, para um instrumentalizar mais humano e ético.

A diferença entre saber essas coisas no mundo ideal e aplicá-las na prática está, entre outros, na coragem que cada Tabelião empenha no exercício das notas e protestos e na força vital que o anima para persistir no caminho certo, sem derrogações.

São Marcos evangelizou no sentido de que “qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á” (Marcos 8:35). O agir ético profissional exige de todos os tabeliães uma força ética positiva para a vida tabelioa e manobras de coragem para não sucumbir àquilo que é tido por um comportamento indigno. São justamente estas virtudes que o tornam forte no desempenho de sua função, digno não só de apor fé notarial nos atos que pratica, mas de ser reconhecido como um profissional pela distinta confiança daqueles que o procuram, por encarnar a segurança e a prudência. Se optar por agir de forma diversa (antiética), ou seja, se optar por agir apenas por si e para salvar os seus particulares interesses ou as escusas vontades dos interessados que o procurarem para tanto, começará a se distanciar da Justiça e da solidariedade social e, dessarte, angariará o proceder em insegurança (com os famosos “jeitinhos”), representando em um perigo para si, para os demais e para as próprias notas e protestos.

A par disso, finalizando este, incumbe-nos indagar: importa refletir sobre a deontologia notarial hodierna?

A resposta positiva salta à mente pela própria essencialidade de aplicação dos princípios éticos profissionais que ela estuda, explica e desenvolve, possibilitando o correto exercício da função notarial em respeito à Justiça, à Solidariedade social, à Prudência, ao sacerdócio da Prevenção dos Litígios e à Fé Pública, seu principal atributo; e, por consequência, subsistência, engrandecimento e evolução das notas e dos protestos.

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Questão esclarece acerca do título hábil para cancelamento de registro de legitimação de posse concedido com base na Lei nº 11.977/2009.

Regularização fundiária de interesse social. Legitimação de posse – registro – cancelamento.

Para esta edição do Boletim Eletrônico a Consultoria do IRIB selecionou questão acerca do título hábil para cancelamento de registro de legitimação de posse concedido com base na Lei nº 11.977/2009. Veja como a Consultoria do IRIB se posicionou acerca do assunto, valendo-se dos ensinamentos de Eduardo Augusto:

Pergunta

No caso de regularização fundiária de interesse social, caso o titular do direito de posse não esteja ocupando o imóvel, nem tenha registrado cessão de seu direito, qual o título hábil para que o poder público cancele o registro da legitimação de posse concedida (art. 60-A, parágrafo único, da Lei nº 11.977/2009)?

Resposta

Vejamos os ensinamentos de Eduardo Augusto:

“Na hipótese de o titular do ‘direito de posse direta para fins de moradia’ não se encontrar na posse do imóvel e de não ter havido registro da cessão de seu direito na matrícula do respectivo lote, poderá o poder público emitente do título de legitimação de posse requerer o cancelamento de seu registro, nos termos do inciso III do artigo 250 da LRP (‘a requerimento do interessado, instruído com documento hábil’). Apesar de a lei não apresentar mais detalhes, o ‘documento hábil’ para tal cancelamento deverá ser, no mínimo, uma certidão da conclusão do processo administrativo (devido processo legal, com contraditório e ampla defesa), que declarou extinto o título de legitimação de posse [395].

_______________

395. Analogia ao inciso IV do artigo 250 da LRP, que trata de hipótese similar, mas referente à regularização fundiária em imóvel rural (assentamentos rurais).”

(AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. “Registro de Imóveis, Retificação de Registro e Georreferenciamento: Fundamento e Prática”, Série Direito Registral e Notarial, Coord. João Pedro Lamana Paiva, Saraiva, São Paulo, 2013, p. 445-446).

Recomendamos, para maior aprofundamento no assunto, a leitura da obra acima mencionada.

Finalizando, recomendamos sejam consultadas as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça de seu Estado, para que não se verifique entendimento contrário ao nosso. Havendo divergência, proceda aos ditames das referidas Normas, bem como a orientação jurisprudencial local.

Fonte: IRIB.

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