Entrevista: a irrepetibilidade da verba alimentar X boa fé

A 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, na última semana, indenização no valor de R$ 10 mil para um homem que pagou pensão alimentícia por longo tempo a um menino do qual pensava ser o pai. Após um exame de DNA ter excluído a paternidade, o homem ingressou com ação judicial requerendo a repetição de indébito – devolução do que pagou indevidamente com a pensão mensal – e pagamento por danos morais. Os pedidos foram negados e o autor recorreu da decisão sob o argumento de ter sido traído pela ex-companheira. O juiz Danniel Gustavo Bomfim Araújo da Silva, presidente do Ibdfam/AC, em entrevista ao portal Ibdfam, comentou a decisão, confira:  

Considerando o princípio da irrepetibilidade da verba alimentar, a boa fé pode relativizar esse princípio?

No artigo 876, primeira parte, do Código Civil, elucida que “todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir", portanto, repetição do indébito constitui-se na cobrança de valores pagos quando estes não eram devidos, portanto a ação de repetição de indébito é a medida processual na qual se pleiteia a devolução de quantia paga indevidamente.

Os alimentos são em regra, irrepetíveis, ou seja, não são passíveis de restituição por se tratarem de prestação pecuniária que visa a sobrevivência da pessoa, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, o bem jurídico vida estaria acima de qualquer outro posto em confronto.

Em seu curso de direito civil no volume de direito de família 4.ª Ed., o promotor Cristiano Chaves de Farias, presidente da Comissão dos Promotores de Família do Ibdfam defende que: mesmo vindo a ser desconstituído o título que serviu de base para o pagamento dos alimentos (é o exemplo de uma superveniente negativa de paternidade ou mesmo anulação de casamento), descaberá a restituição dos alimentos pagos regularmente, em face da regra da irrepetibilidade.

Os tribunais superiores ja vinham decidindo, reiteradamente, em favor  da irrepetibilidade dos alimentos. Entretanto, em recente decisão, no Resp1384418, a 1.ª seção do Superior Tribunal de Justiça julgando recurso de autarquia previdenciária contra acórdão do TRF da 4ª Região, decidiu pela relativização da irrepetibilidade de verba alimentar.

Decidiu o STJ que na hipótese de receber valores de caráter alimentar por força de tutela antecipada, que seja posteriormente revogada, deverá o titular do direito patrimonial devolver os valores recebidos, o que já indica uma mudança da jurisprudência sobre o tema que antes era incontroverso.

No caso julgado, um pai pleiteou pensão por morte do filho. Os pagamentos foram efetuados por força de decisão judicial que concedeu antecipação de tutela. Ao final do processo, ficou decidido que ele não tinha direito ao benefício e a autarquia previdenciária buscou a devolução dos valores pagos.

O TRF-4 decidiu que os benefícios previdenciários, se percebidos de boa-fé, não estão sujeitos à devolução. Para o relator do recurso, ministro Herman Benjamin, a decisão que antecipa liminarmente a tutela não enseja a presunção, pelo segurado, de que os valores recebidos integram em definitivo o seu patrimônio. Tal garantia é dada pelo artigo 273 do CPC.

Essa mudança de entendimento já era advogada por parcela respeitável da doutrina com a proposta de relativização do princípio da irrepetibilidade dos alimentos, possibilitando a devolução dos valores pagos indevidamente.

Estudiosos do direito, a exemplo de Carlos Roberto Gonçalves, demonstram que mesmo defendendo a irrepetibilidade dos alimentos, essa regra não poderá ser absoluta e que “O princípio da irrepetibilidade não é, todavia, absoluto e encontra limites no dolo em sua obtenção, bem como na hipótese de erro no pagamento dos alimentos […] porque, em ambas as hipóteses, envolve um enriquecimento sem causa por parte do alimentado, que não se justifica. (2009. p. 477)”.

Portanto os alimentos não podem ser simplesmente irrepetíveis, deve haver uma flexibilização sobre esse entendimento, analisando caso a caso, evitando que injustiças terríveis sejam deflagradas, pois não sendo dessa forma, a função da justiça de promover a paz social não seria alcançada. 

Entendo que na hipótese de pagamento de verba alimentar por quem não deveria surge, para quem forneceu erradamente, a pretensão de ressarcimento que deve ser deduzida contra a mãe ou contra os responsáveis pela manutenção do alimentado. 

A relativização da irrepetibilidade dos alimentos na Lei 11.804/08 é necessária devendo ser analisada caso a caso e não como um dogma, uma vez que as relações jurídicas devem ser norteadas pelos princípios constitucionais e diante da repetida aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, bem como das cláusulas gerais do direito como a boa fé, e tornar essa regra inflexível, seria desafiar esses princípios.

A responsabilidade civil no Direito de Família tem sido bastante explorada, qual a sua opinião sobre este tema?

As relações familiares não tem cunho, exclusivamente, contratual. Hodiernamente, a família foi guinada de um núcleo, substancialmente econômico e patrimonial para um prisma socioafetivo compreensão e colaboração mútua. Todavia, a obrigação de reparar danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes da prática de um ato ilícito também ocorre no âmbito do Direito de Família. 

Entendo que, para que exista responsabilidade civil necessário se faz a verificação de três elementos indispensáveis: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. A aplicação das regras da responsabilidade civil na seara familiar, portanto, dependerá da ocorrência de um ato ilícito, devidamente comprovado. A simples violação de um dever decorrente de norma familiar não é idônea, por si só, para a reparação de um eventual dano.

Desta maneira, não é exequível a incidência pura e simples das regras da responsabilidade civil diante da singularidade própria das relações familiares, reclamando uma reflexão, para que não haja uma deturpação do núcleo familiar e de suas relações. Por isso não é admissível o uso irrestrito e indiscriminado das regras atinentes à responsabilidade civil no âmbito do Direito das Famílias de modo que sua aplicação irrestrita poderá privilegiar a relação patrimonial em detrimento da relação socioafetiva no núcleo familiar.

A EC 66/2010 afastou a discussão da culpa pelo fim do enlace conjugal. Quando o Judiciário analisa casos de traição pode ocorrer ofensa na não intervenção estatal na vida privada dos cidadãos?

A alteração constitucional promovida pela Emenda Constitucional nº 66/2010 de iniciativa do IBDFAM instituiu o divórcio como único modo de dissolver o casamento, seja ele de forma consensual ou litigiosa, acabando com a figura da separação judicial.

A principal consequência advinda dessa modificação foi o fim da discussão da culpa, não cabendo mais ao Estado Juiz questionar sobre as causas que levaram à dissolução do casamento. Deve-se assim prestigiar a Entidade familiar e os princípios da afetividade, socioafetividade dignidade da pessoa humana e da especial proteção à família previstos na constituição federal em detrimento da intervenção indiscriminada do estado no âmbito familiar.

Assim, muito embora busque o estado à proteção da família não deve interferir de igual modo como interfere nas relações contratuais de caráter privado. Quando da análise de culpa por fim de relacionamentos e avaliação de danos morais e materiais causados a análise deve se restringir aos danos causados e ao nexo causal existente, dentro da esfera patrimonial dos indivíduos e nunca para encontrar o culpado pelo fim da união. A família tem sua base socioafetiva e se mantém sólida por relações de amor e afeto. Ninguém pode ser punido pelo desamor.

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM – Com informações do TJ/SP I 06/09/2013.

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Entrevista: reconhecimento de paternidade socioafetiva

Na semana passada publicamos matéria sobre decisão unânime da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) mantendo sentença que julgou procedente o pedido em ação de reconhecimento de paternidade socioafetiva. Veja entrevista com o promotor aposentado Dimas Messias de Carvalho, membro do IBDFAM e um dos advogados da ação*:

Qual é a importância da decisão em Minas Gerais relativa à socioafetividade?

Finalmente tivemos uma decisão mineira do TJMG que apreciou o mérito e não apenas a possibilidade, em tese, do ajuizamento da ação. Diante desse precedente os caminhos se abrem para a propositura de novas ações, diminuindo os riscos de extinção do processo sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido. Além do TJMG, é importante ressaltar que o parecer da Procuradoria de Justiça que também foi favorável.

Esta decisão mostra que o TJMG se posiciona no rol dos tribunais mais modernos do país?

O Tribunal de Justiça Mineiro, apesar de ainda carregar uma fama injusta de conservador, possui atualmente um grande número de desembargadores de excepcional capacidade jurídica e sensíveis às mudanças sociais, notadamente nos novos modelos de arranjos familiares, que tem como elemento agregador a socioafetividade. Entre esses notáveis julgadores se incluem o relator do acordão, Des. Kildare Gonçalves Carvalho, que é professor de Direito Constitucional e autor de renomada obra da mesma disciplina. Da mesma forma a revisora Desª Albergaria Costa e o vogal Des. Elias Camilo são magistrados que se destacam pela excelência e sensibilidade em seus julgamentos, podendo serem consideradas modernas.

É inequívoco, todavia, que esta decisão coloca o TJMG em outro nível de avanço no País, em efetivamente garantir os princípios constitucionais da dignidade humana, igualdade e isonomia dos filhos, tanto que a decisão foi muito aplaudida e comentada nos recentes congressos do IBDFAM, entre eles o do Mercosul, despertando interesse também de juristas do Peru e Argentina, que queriam saber os fundamentos da decisão.

Por que a socioafetividade ainda não está expresssamente prevista na legislação?

Penso que é em razão do Código Civil de 2002 ter sua origem no Projeto 634 de 1975, quando ainda não se discutia a socioafetividade. Somente em 1979 foi publicado o memorável artigo " a desbiologização da paternidade", do prof. mineiro João Baptista Vilela, conforme lembra Rodrigo da Cunha Pereira na sua obra sobre os princípios fundamentais norteadores do direito de família e que usei muito nas razões para fundamentar a procedência do pedido. O Congresso Nacional, entretanto, já se sensibilizou e reconheceu a importância da filiação socioafetiva, sendo apresentado em 03.06.2013, o PL 5682/2013 para incluir no art. 27 do ECA a possibilidade de ser exercitado o reconhecimento do estado de filiação em face dos pais biológicos ou socioafetivos.

Qual é a importância da participação do IBDFAM, na condição de amicus curiae, na ação (ARE 692186 – Paraíba) que tramita no STF para discutir a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica?

É essencial, como aliás vem ocorrendo em vários outros pleitos para humanizar o Direito de Família e efetivamente respeitar a pessoa humana com dignidade. O IBDFAM mudou o Direito de Família no Brasil, efetivando os princípios constitucionais e igualdade entre as pessoas. O princípio da afetividade foi construído e divulgado pelos sócios do IBDFAM, como Paulo Lôbo, Rodrigo da Cunha Pereira, Giselda Hironoka, Luiz Edson Fachin, Maria Berenice Dias, Sérgio Resende de Barros, entre outros, sempre enfrentando grandes oposições. Assim é imprescindível a participação do IBDFAM como amicus curiae em qualquer discussão de relevância para o direito de família, atuando como um farol para iluminar um norte mais feliz e humano na família brasileira, especialmente tratando-se da socioafetividade.

*Também advogaram na ação Jacob Lopes de Castro Máximo e Daniella 

Velloso Pereira.

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM I 04/09/2013.

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O reconhecimento da multiparentalidade no Direito brasileiro

* Yves Zamataro

Em notícia recentemente divulgada pelos principais meios de comunicação, principalmente, no meio jurídico, vimos o STF, em votação no plenário virtual, reconhecer repercussão geral em tema que discute a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. Essa questão chegou até o STF em decorrência de um processo no qual foi pedida a anulação de registro de nascimento feito pelos avós paternos, como se eles fossem pais, e o reconhecimento da paternidade do pai biológico.

Em 1ª instância, a ação foi julgada procedente, reconhecendo-se essa paternidade. Esse mesmo entendimento foi mantido em 2ª instância e pelo STJ. Entretanto, ao interpor recurso perante o STF, os demais herdeiros do pai biológico alegaram que a decisão do STJ, ao fazer prevalecer a paternidade biológica em detrimento à socioafetiva, afrontaria a disposição contida no art. 226, da CF, segundo o qual "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".

O relator do recurso, ministro Luiz Fux, levou a matéria ao exame do plenário virtual por entender que o tema – a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica – é relevante sob os pontos de vista econômico, jurídico e social. Por maioria de votos, os ministros seguiram o relator.

A multiparentalidade deve ser entendida como a possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe, simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles. Inclusive, no que tange a eventual pedido de alimentos e herança de ambos os pais.

Exemplificando, podemos citar a surpreendente decisão proferida pelo Poder Judiciário do Estado de RO decidir pelo registro, em certidão de nascimento, de dupla filiação paterna (biológica e socioafetiva) de uma criança que, comprovadamente, reconhecia os dois homens como pais e deles recebia, ao mesmo tempo, assistência emocional e alimentar.

De fato, o reconhecimento da multiparentalidade e, principalmente, a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento à paternidade biológica representa um avanço significativo no Direito de Família. Consagram-se os princípios da dignidade humana e da afetividade, afastando-se a preocupação inicial com a proteção ao patrimônio, voltando-se à proteção das pessoas e, por consequência, passando a prevalecer, no âmbito jurídico, o trinômio amor, afeto e atenção.

Todavia, não se trata, ainda, de questão pacificada, dividindo-se a opinião de nossos principais juristas.

Para Regina Beatriz Tavares, professora de Direito de Família da FGV, "o vínculo de socioafetividade vai muito além do simples sustento, de morar sob o mesmo teto ou de dar assistência. Se a criança tem um pai biológico que a assiste, também, não cabe ter uma dupla paternidade."

De outro lado, por ocasião da decisão proferida pelo TJ/SP ao autorizar a inclusão o nome da advogada Vivian Medina Guardia na certidão de nascimento de seu enteado Augusto, o professor Flávio Tartuce, diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família, em SP, manifestou-se no sentido de que ela supera "A Escolha de Sophia", em alusão ao livro onde uma mãe, presa num campo de concentração, durante a Segunda Guerra, é forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto.

"A jurisprudência escolhia um ou outro. Agora, não. São os dois: o pai biológico e o afetivo."

Para o professor Flávio Tartuce, o reconhecimento da multiparentalidade produzirá efeitos em todas as esferas, mas principalmente, em questões de herança e pensão alimentícia.

De qualquer forma, em que pesem as manifestações e decisões proferidas a esse respeito, devemos nos conscientizar que se trata de um tema, ainda, delicado e que merece peculiar atenção. Principalmente, quanto ao seu real objetivo que, em hipótese alguma, deve ter caráter patrimonial.

Os laços de sangue e os socioafetivos devem seguir juntos sempre que essa união mostrar-se benéfica e de acordo com os interesses sociais e afetivos da criança ou adolescente envolvido.

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* Yves Zamataro é advogado do escritório Angélico Advogados.

Fonte: Migalhas I 02/09/2013.

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