Maternidade substitutiva

* Eudes Quintino de Oliveira Júnior

O Admirável Mundo Novo, publicado por Aldous Huxley em 1932, considerado como uma fábula futurística, eliminou a figura do pai e da mãe e introduziu a criação de bebês manipulados em laboratório, nascidos de proveta, com comportamentos preestabelecidos para ocuparem determinada casta, além da obrigatoriedade de se sentirem felizes, mesmo que seja com o auxílio da droga “soma”, que os induzia a tal estado.

A experiência que parecia ficção, num passe de mágica, começa a se delinear como realidade, porém com a participação do pai e mãe. A engenharia genética desbasta um novo caminho para solucionar satisfatoriamente o problema da infertilidade. A nova área da procriação assistida vem se desenvolvendo a passos longos, produzindo técnicas cada vez mais aperfeiçoadas com a manipulação dos componentes genéticos dos dois sexos, para se atingir o projeto parental. Assim, uma das possibilidades que se apresenta ao casal que pretende filhos e não atinge seus objetivos pela via natural, por um problema médico que impeça a gestação na doadora genética, é a de realizar a fertilização in vitro, com a manipulação dos materiais procriativos masculino e feminino e a consequente transferência intrauterina dos embriões. Nasce, assim, a figura da gestação de substituição, conhecida por "barriga de aluguel".

Apesar da Constituição do Brasil1, estabelecer que o planejamento familiar é livre decisão do casal e o Estado deverá proporcionar recursos científicos para o exercício desse direito para aqueles que não conseguem atingir a procriação, não há ainda legislação ordinária para estabelecer todos os pressupostos e requisitos para a reprodução assistida. O regimento existente é uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, que regulamenta as normas técnicas e éticas do procedimento. Mesmo assim, o Código Civil Brasileiro, em vigor a partir de 2002, em iniciativa exemplar, ensaiou os primeiros passos na regulamentação das inseminações e fecundações homóloga e heteróloga (art. 1597).

Supletivamente, portanto, o Conselho Federal de Medicina editou a já revogada resolução 1957/2010 sobre a gestação de substituição (doação temporária de útero) e permitiu o procedimento desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. Assim, obrigatoriamente, a doadora temporária deve pertencer à família da doadora genética até o segundo grau de parentesco (mãe, irmã), justamente para afastar qualquer tentativa de comércio e lucro. Ausente o vínculo de parentesco, exige-se a autorização do Conselho Regional de Medicina.

Nova resolução editada pelo Conselho Federal de Medicina, que leva o 2013/2013, ampliou o parentesco da doadora temporária atingindo familiares de um dos parceiros num parentesco consanguíneo até o quarto grau (mãe, irmã, tia e prima), respeitando sempre o limite de idade de 50 anos.

Nem sempre é possível contar com parentes que estejam dispostos ou até mesmo que tenham condições de saúde para se submeterem à gestação de substituição e alojar os embriões que serão transferidos. Não só a restrição de saúde, como também a idade limite de 50 anos. Até então o que se via na maioria dos casos, era a mãe da mulher impedida da gestação figurar como doadora temporária do útero. Mas, a própria Resolução permite ao Conselho Regional de Medicina de cada Estado a análise dos casos de exceção não previstos e, se preenchidos os requisitos, expedir autorização para transferência de embriões para uma receptora que não pertença à família.

Incisiva a definição da Lei Portuguesa2 a respeito da maternidade de substituição: "Entende-se por maternidade de substituição qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando-se aos poderes e deveres próprios da maternidade".

Daí que, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, no âmbito da atribuição que lhe foi conferida pela Resolução citada do CFM, vem permitindo a cessão temporária de útero entre não parentes para gestar bebês, desde que haja recomendação médica para tanto e que ausente qualquer suspeita de comércio entre os envolvidos. Na reprodução assistida a mulher não parente que gestará o bebê é indicada pelos pais interessados no procedimento e, como exigência do protocolo, deve assinar um termo no sentido de que cederá gratuitamente "apenas o espaço físico do seu útero e os alimentos necessários ao desenvolvimento do feto em questão, e tendo se manifestado consciente de que partiu exclusivamente do casal o desejo de ter a criança e o respectivo material genético, portanto não terá nenhum vínculo genético ou moral com este nascimento", conforme ponderadamente acentuou o Conselheiro e Bioeticista Reinaldo Ayer de Oliveira3.

A doadora temporária de útero, assim como o doador de órgãos, assume uma dimensão transcendente da sua própria natureza humana, realiza a mais nobre ação humanitária, tal qual pelicano que faz verter seu sangue para alimentar seus filhotes. Guardadas as comparações, trata-se de um caso de substituição processual na área jurídica. Diz Frederico Marques que o instituto tem lugar quando alguém, em nome próprio, pleiteia direito alheio. Quer dizer, defende o próprio interesse para satisfazer o alheio.

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1. Artigo 226 § 7º da Constituição da República Federativa do Brasil.

2. Artigo 8º da Lei nº 32, de 26 de julho de 2006, que trata da Procriação Medicamente Assistida.

3. Parecer apresentado na Consulta 126.750/05, aprovado na 3.463ª Reunião Plenária do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, em 4/4/2006.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp – Centro Universitário do Norte Paulista.

Fonte: Migalhas I 08/12/2013.

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Paternidade intrauterina

* Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Pedro Bellentani Quintino de Oliveira

O feto surge como agente de tutela estatal em várias oportunidades. A Declaração dos Direitos da Criança, promulgada pela Assembleia Geral da ONU, preconiza que a criança, em razão de sua imaturidade física e mental, necessita de proteção legal apropriada, tanto antes como depois do nascimento. O ECA acrescenta ainda o direito de proteção à vida e à saúde, proporcionando um nascimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Já não se pode limitar o direito do nascituro apenas ao de nascer. E sim ampliá-lo e agregar a ele o nascer com dignidade, com saúde, com a proteção Estatal necessária, extensiva à sua mãe, de quem é dependente na vida pré-natal. A assertiva é de fácil constatação e a esse respeito foi proposto um projeto de lei para considerar o embrião como dependente para fins de dedução na base de cálculo do imposto de renda, mas não vingou em razão do aborto provocado pelo legislador.

Pode o feto, desta forma, pela projeção alcançada, figurar como autor em ação de alimentos, investigação de paternidade e outros direitos compatíveis com sua condição de concebido, mas não nascido.

Pois bem. A lei 11.804/08, conhecida como “alimentos gravídicos”, melhor seria se fosse “alimentos do nascituro” em apertado resumo, confere direito à mulher gestante, não casada e que também não viva em união estável, de receber alimentos, desde a concepção até o parto. Para tanto, deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do suposto pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos pelas partes.

Trata-se, como se percebe, de uma de uma decretação provisória de paternidade, calcada somente em indícios. Eventual contestação pugnando pela realização de exame excludente da alegada paternidade será analisada após o nascimento da criança. É uma situação de incerteza que obrigará o suposto pai a arcar com a verba alimentar, não se afastando da finalidade da medida que é atingir uma procriação responsável, com o comprometimento integrado e solidário dos genitores, numa verdadeira guarda compartilhada intrauterina.

Feitas tais considerações, é de se concluir pela dificuldade da determinação da paternidade, que trabalha somente com indícios, elementos circunstanciais que gravitam em torno do fato principal sem, contudo, apresentar uma prova inconcussa. A não ser a colheita do líquido amniótico da gestante a partir de 14 semanas, que carrega risco de provocar o abortamento, por se tratar de procedimento invasivo.

Agora, no entanto, em razão evolução da engenharia genética, já é possível a realização no Brasil de exame não invasivo consistente na procura do DNA fetal circulante na mãe e compará-lo com o material fornecido pelo pretenso pai. O avanço científico é tamanho que, além do objetivo da paternidade, carrega precisão quase que incontestável no sentido de demonstrar que o feto seja portador de síndromes de Down, Edwards, Patau, Turner, Klinefelter e Triplo X.

Permanece sim a proibição de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, mas não se questiona a realização do exame para diagnóstico pré-implantatório e testes genéticos visando verificar se o embrião é portador de alterações cromossômicas ou genéticas. Se a constatação for positiva, admite-se o procedimento corretivo1.

A regra da paternitas incerta est cai por terra diante da precisão de referido exame e pode se dizer que a até então imutável afirmativa de que maternitas semper certa est também não resiste quando se tratar de inseminação artificial heteróloga, prevista no artigo 1597, inciso III do CC.

Se Machado de Assis vivesse nestes novos tempos quando escreveu Dom Casmurro, não deixaria o leitor tão ansioso a respeito da paternidade de Ezequiel, filho de Capitu. Apontaria a paternidade com toda segurança a Bentinho ou Escobar.

Mas também o romance perderia a riqueza do relato psicológico de cada personagem e a crucial pergunta se a “cigana oblíqua e dissimulada” traiu Bentinho.

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1 – Resolução Conselho Federal de Medicina, nº 1957/2010, item VI.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e advogado; Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é advogado.

Fonte: Migalhas I 08/10/2013.

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