Um novo Direito de Família que se projeta – Por Mário Luiz Delgado

* Prof. Dr. Mário Luiz Delgado

Está reaberto o debate em torno do projeto de lei que institui o chamado “Estatuto das Famílias”, reapresentado perante o Senado Federal pela Senadora Lídice da Mata, agora aperfeiçoado e sob nova roupagem. Esse projeto (PLS 470/13), como se sabe, desmembra do Código Civil o título que trata do Direito de Família e reestrutura toda a matéria, criando um estatuto autônomo.

Consentâneo com as realidades da vida, para as quais o Direito não pode fechar os olhos, o projeto busca soluções para conflitos e demandas familiares, a partir de novos valores jurídicos como o afeto, o cuidado, a solidariedade e a pluralidade. Optando pela celeridade, simplicidade, informalidade, fungibilidade e economia processual, a fim de proporcionar a efetiva concretização dos princípios constitucionais, abre as portas do sistema jurídico-positivo para as novas demandas surgidas nas relações de família, como é caso da paternidade socioafetiva, do abandono afetivo, da alienação parental e das famílias recompostas, simultâneas ou não.

Quando da apresentação da primeira versão projeto, em 2007, manifestei, em carta aberta divulgada em diversas publicações, posteriormente transformada em artigo e em capítulo de livro1, posição contrária à iniciativa. A contrariedade, no entanto, era restrita ao aspecto formal. Explico: talvez imbuído da paixão pelo Código Civil de 2002, decorrente da minha atuação direta no processo legislativo junto à ultima relatoria do projeto, tinha dificuldade em aceitar qualquer alteração relevante do Código, especialmente essa, que iria suprimir do regramento codificado toda uma disciplina jurídica. Defendia ser mais conveniente e oportuno reformar o próprio Código Civil no lugar de começar do zero, tentando criar um código novo, e que todas as inovações do Estatuto poderiam, com muito mais facilidade, ser inseridas no Código Civil.

Portanto, em momento algum, me opus à necessidade de modernização do Direito de Família tal como proposto, no mérito, pelo PL 470/13. Aliás, modernização que é imperativa, face às grandes transformações legislativas ocorridas na última década, tais como as leis 11.698 (guarda compartilhada), 11.804 (alimentos gravídicos), 11.924 (acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta), 12.010 (adoção) e a EC 66/10.

Passados os anos, e com o peso da experiência que transforma certezas em dúvidas, hesito, agora, sobre a correção da minha posição anterior. Como defendo em meu livro “Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro”, a evolução do Direito é sempre marcada por movimentos cíclicos e alternados de concentração e de fragmentação ou dispersão das fontes. O desenvolvimento da sociedade, a causar o envelhecimento natural dos códigos, gera, em contrapartida, a necessidade de se regulamentar a lattere do código toda uma gama de novas questões. Esse processo de dispersão das fontes sempre se sucede ao processo de codificação.

O Direito de Família realmente possui institutos que o diferenciam, de forma muito peculiar, dos demais ramos, especialmente pela sua aderência direta e imediata às realidades da vida, que de tão diversificadas e mutáveis implicam a impossibilidade de o Código Civil albergar todas as demandas da família contemporânea. Sob esse aspecto, uma legislação unificada em forma de estatuto autônomo talvez venha a proporcionar uma hermenêutica mais harmônica dos princípios constitucionais e facilitar a sua concretização, tal como sustentado pelos elaboradores do projeto. Nos domínios da técnica legislativa, os estatutos são textos legais bastante semelhantes aos códigos, procurando disciplinar de modo completo e estanque uma determinada ordem de relações jurídicas. Implicam sempre na criação de direito novo, não tratando de condensar normas pré-existentes.

De qualquer forma, independentemente do aspecto formal da iniciativa legislativa, o fato é que o projeto, quanto ao seu conteúdo, representa notável avanço legislativo, à medida que incorpora no regramento positivado posições que atualmente só são acolhidas na jurisprudência, porém com considerável deficit na segurança jurídica. Isso porque a uniformização dessas questões só é obtida depois de muitos anos, quando decididas pelo Superior Tribunal de Justiça.

Algumas dessas inovações, entretanto, estão sendo mal compreendidas. Veja-se o caso, por exemplo, do reconhecimento de certos direitos às chamadas entidades familiares paralelas. Os críticos ao projeto sustentam a impossibilidade jurídica dos arranjos familiares simultâneos, a exemplo de uniões estáveis paralelas, ou nomeadamente a concomitância de união estável e casamento, produzirem quaisquer efeitos jurígenos. Apegados ao dogma da família patriarcal, monogâmica e matrimonial, tais críticos esquecem as situações extraídas da realidade social e que vem sendo reconhecidas pela jurisprudência, tanto do Superior Tribunal de Justiça, como de diversos tribunais estaduais, cada vez mais pujante no amparo das multifárias manifestações familiares, mesmo porque não cabe ao Estado exercer qualquer tipo de controle sobre o comportamento das pessoas na seara afetiva.

Cite-se, aqui, o julgamento do REsp 1.126.173/MG, de 9 abril de 2013, onde o STJ, para fins de aplicação da lei 8.009/90, decidiu que o devedor, possuindo entidades familiares simultâneas e concomitantes, tem estendida a impenhorabilidade do bem de família a ambos os imóveis utilizados como residência pelas famílias paralelas .

No julgamento da Apelação Cível 70022775605, a 8ª câmara Cível do TJ/RS reconheceu efeitos jurídicos também à união estável concomitante ao casamento não desfeito, com partilha de bens entre cônjuges e companheira.

No mesmo sentido, em demanda envolvendo uniões estáveis paralelas, colhe-se a seguinte manifestação em voto-vencedor do desembargador José Fernandes de Lemos, da 5ª câmara Cível do TJ/PE, na Apelação Cível 296.862-5:

“No caso em análise, há que se atentar para o fato evidente de que, se o varão esteve no vértice de uma relação angular com duas mulheres, duas casas e duas proles, preenchendo em ambos os núcleos o papel de marido, de provedor e de pai, é que cultivava a compreensão pessoal de que podia integrar duas famílias, e, no seu íntimo, nutria a aberta intenção de fazê-lo.

(…)

Tais circunstâncias, se analisadas com a devida isenção de ânimo, demonstram o caráter familiar da união amorosa mantida pela autora-apelante, que em nada se assemelha às relações clandestinas e furtivas, de finalidade meramente libidinosa. Assim, configurando-se a formação de autênticos núcleos familiares simultâneos, não há razão jurídica para que se exclua um deles da tutela estatal, desmerecendo-o e relegando-o à plena desconsideração, ou, quando muito, à tutela do direito obrigacional.”

E antes que se deturpe o sentido desta minha manifestação, para transformá-la em uma espécie de ode à poligamia, ressalto o meu pleno convencimento da permanência do princípio monogâmico como um dos princípios basilares do nosso Direito de Família legislado, ao lado da afetividade, da busca da felicidade, da isonomia de gênero e do melhor interesse da criança e do adolescente. Ocorre que todo e qualquer princípio está sujeito à colisão com outros princípios e até mesmo com outras regras, submetendo-se, portanto, a contínua e permanente operação de ponderação. A convivência dos princípios é sempre tensa, conflitual e, por isso, não pode o princípio da monogamia impedir o reconhecimento de determinados direitos, especialmente quando estiver em jogo o macro princípio da dignidade da pessoa humana. Os princípios colidentes coexistem, deixando de ser aplicados em um caso ou em outro, de acordo com o seu peso ou sua importância naquela situação concreta, mas permanecendo no ordenamento.

Da mesma forma que se reconhecem direitos ao casamento putativo, a despeito de sua nulidade absoluta, em prol do princípio da boa fé, é de se reconhecer também juridicidade às uniões paralelas quando, através de uma operação de ponderação e sopesamento, se puder afastar o princípio monogâmico no caso concreto.

O que se verifica, como tendência jurisprudencial, portanto, é a proteção da família em seu sentido mais amplo, abrangendo, inclusive, a multiplicidade da entidade familiar, em hipóteses excepcionais.

Enfim, se o projeto 470/13 puder ser aperfeiçoado, o momento é este. E nesse sentido, o IASP, através de sua Comissão de Estudos de Direito de Família e das Sucessões, estará, oportunamente, se debruçando sobre o texto.

Concorde-se ou não com a iniciativa da Senadora Lídice da Mata e do IBDFAM, não se pode lhe retirar o mérito de trazer luzes a um debate tão instigante quanto apaixonante, como sói acontecer com todas as questões de família.

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1 DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 466-469.

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* O autor é advogado e parecerista.

Fonte: Site Mário Luiz Delgado.

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EPM discute competência do Poder Executivo Federal na regulamentação do Registro Eletrônico no curso de Registros Públicos e Notas Eletrônicos

Na última quinta feira (6/11), a Escola Paulista da Magistratura recebeu o desembargador Luis Paulo Aliende Ribeiro, o registrador Sérgio Jacomino e um platéia de visitantes para a discussão sobre o Poder Executivo Federal na regulamentação do Registro Eletrônico – SINTER. O debate fez parte da programação do curso de Registros Públicos e Notas Eletrônicos, sob coordenação do juiz Antonio Carlos Alves Braga Júnior e do desembargador Marcelo Martins Berthe.

O desembargador Luis Paulo Aliende Ribeiro iniciou a exposição do tema diferenciando a finalidade das informações que o Registro de Imóveis preserva em relação ao acesso e controle de informações que o Poder Excutivo pretende obter. “O Registro de Imóveis existe para fins imobiliários e de crédito, já os cadastros eventualmente de atribuição do poder executivo seriam de âmbitos fiscais. Um sistema planificado exige um regramento e, para isso, é imprescindível analisarmos a questão da regulamentação pública do registro”.

O magistrado mencionou o artigo 236 da Constituição Federal, o qual estabelece que as atividades notariais e registrais são estatais, cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo. Ele acrescentou que outro tipo de atuação direta do estado é vedada.

Aliende também alegou que a definição “infra legal” ao se criar um sistema de registro eletrônico deve ser feito por parcela daquele que desempenha o papel regulatório. “O encargo de fiscalização pressupõe o estabelecimento, o controle e a verificação de regras, com a aplicação de penalidades legalmente previstas aos infratores por aqueles que desempenham o papel de regulação”, esclareceu. Ainda de acordo com o desembargador, a atividade deveria ser auto regulada pelos próprios notários e registradores.

Para o desembargador, uma regulação coletiva estabelece e impõem aos membros certas regras, além disso, a regulação se faz por uma atuação de autoridade estatal, mas com maior independência possível em relação ao setor regulado. Ou seja, essa regulação deve ser feita conjugado com uma auto regulação coletiva e consensual, onde se mantem a independência para aqueles que foram delegados os serviços, sem vínculos ou interesses econômicos políticos governamentais.

Precisamos de uma regulação o mais isenta possível, porque antes mesmo de ser um estudioso sobre o assunto, também sou cidadão e vejo que a tutela dos meus dados, das minhas informações relativas a propriedades, não devem ser objetos de um tratamento indevido, para obtenção de vantagens contrárias aos meus interesses legítimos”, considerou.

O registrador Sérgio Jacomino alertou para o risco de agentes públicos federais realizarem consultas sem que haja parâmetros de identificação de quem acessou os dados. “A obtenção de dados é de caráter pessoal, protegidos pela publicidade, que tem suas finalidades. Se um agente público faz uma consulta sem que haja rastros, podemos presumir a possibilidade do uso indevido das informações” disse.

Já de acordo com o juiz Antonio Carlos Alves Braga Júnior, a criação de um banco nacional de informações de Registro de Imóveis deve ser feita pelo próprio Registro de Imóveis. “Validar essa atuação do Executivo para criação desse banco é cometer o maior equívoco. As limitações devem ser impostas para mantermos a competência da regulação pelos órgãos tradicionais”, finalizou Braga.

Fonte: iRegistradores | 10/11/2014.

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