Família que vivia em imóvel de empresa não pode ser despejada após demissão enquanto durar a pandemia

Um casal de ex-empregados que vive em imóvel da empresa não deve ser despejado em razão da pandemia do Coronavírus. A juíza da Vara do Trabalho de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, que analisou o caso, destacou que “direitos patrimoniais não devem se sobrepor ao direito à vida, à saúde e à moradia”.

Mesmo considerando o fim do vínculo de emprego e do início da inadimplência dos aluguéis serem anteriores à pandemia, a magistrada entendeu que o despejo, neste momento, vai de encontro às medidas de distanciamento social recomendadas pelo Ministério da Saúde devido ao estado de calamidade pública provocado pela Covid-19.

“Assim sendo, o interesse da coletividade e da saúde pública devem prevalecer sobre o interesse privado patrimonial”, concluiu a juíza. Ela registrou, no entanto, que outro pedido de despejo poderá ser apresentado após o fim das atuais medidas de prevenção recomendadas pelo Ministério da Saúde e pelo governo local.

A sentença determinou ainda que os ex-empregados paguem ao frigorífico todos os aluguéis atrasados, que vão desde agosto de 2018 até julho de 2020, além dos que vierem a vencer até a data da desocupação do imóvel. Por fim, condenou o casal a pagar honorários sucumbenciais ao advogado do frigorífico, no importe de 5% sobre o valor devido ao fim do processo.

Competência da Justiça do Trabalho

O conflito em questão envolve um imóvel funcional, alugado pelo frigorífico para servir de moradia a seus empregados durante o contrato de trabalho. Ao dar início à ação, a empresa denunciou a permanência irregular dos dois ex-empregados no local, após a extinção do vínculo empregatício, e pediu a condenação deles ao pagamento dos aluguéis atrasados e a emissão de uma ordem de despejo compulsório do imóvel.

A competência da Justiça do Trabalho para julgar o caso foi esclarecida pela magistrada ao lembrar que a Emenda Constitucional 45/2004 incluiu as relações de trabalho, e não só de emprego, dentre os temas a cargo do judiciário trabalhista. “O contrato de aluguel em discussão tem relação direta com o contrato de emprego e, por consequência, os pedidos de desocupação do imóvel e de aluguéis do período irregular”, destacou a juíza.

Enfrentamento sensível e humanitário

A advogada Juliana Giachin Pincegher, presidente da seção Mato Grosso do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM-MT, destaca que o momento de crise econômica e social exige dos operadores de Direito “uma visão sistêmica e multidisciplinar dos institutos protegidos pelo legislador, a fim de conceber a possibilidade do enfrentamento da crise de modo mais sensível e humanitário”.

“O que chama atenção, para além da questão patrimonial e financeira, é o caráter social humanístico da decisão que, ao meu sentir, de forma escorreita, indeferiu o pedido de despejo. A decisão ponderou o sensível momento que vivenciamos frente a necessidade de isolamento social recomendadas pelo Ministério da Saúde devido à crise sanitária oriunda do inegável avanço da pandemia, notadamente em nosso Estado, atual epicentro da Covid-19”, destaca Juliana.

Ela ressalta que a análise se contrapõe aos interesses do locador. “No caso específico, trata-se de empresa que disponibiliza imóvel de sua propriedade, para locação, em razão de contrato de trabalho mantido com o locatário, circunstância que, inclusive, atrai competência daquela Justiça especializada, de acordo com o disposto na Emenda Constitucional 45/2004 e artigo 114, inciso I, da Constituição Federal”, explica.

A advogada observa ainda que a Lei 14.010/2020, publicada em junho, versa sobre o  Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado – RJET no período da pandemia. As relações locatícias, contudo, permanecem com regras previstas na Lei de Inquilinato, o que, em síntese, permite o pedido e deferimento do despejo, como ressalta Juliana.

“A circunstância, como se visualiza, acaba por exigir do Poder Judiciário máxima cautela e razoabilidade a fim de manter, quanto possível, o equilíbrio das relações contratuais, sem que isso importe expor locatários inadimplentes em situação de risco à saúde pública”, comenta a advogada.

Pedido da ONU contra despejos

Segundo Juliana Giachin, a problemática ganha contornos humanitários ao se considerar que, na última quinta-feira, 9 de julho, a Organização das Nações Unidas – ONU pediu ao Brasil que suspenda todos os tipos de despejo enquanto durar a pandemia. Segundo Balakrishnan Rajagopal, relator especial para o direito à moradia, cerca de 2 mil famílias já foram obrigadas a sair de casa e outros milhares correm risco de despejo no país.

“Não há, em resumo, como negar que o momento pede que a intervenção do Judiciário, ao analisar questões contratuais desta natureza, o faça sob o preceito constitucional da dignidade humana, em seu amplo aspecto e nuances, a fim de que a decisão seja adequada e protetiva para o bem-estar coletivo, máxime porque a restrição à circulação de pessoas, somada ao provável desemprego, evidencia a extrema dificuldade da pessoa desalojada na busca de novo aluguel para moradia”, defende Juliana.

De acordo com a advogada, o cenário exige medidas excepcionais até que cessem os efeitos da recomendação de isolamento social pelas autoridades de saúde. “Revela-se prudente que o pêndulo oscile em favor da promoção do direito à saúde e moradia do locatário, parte mais vulnerável na relação, do que ao interesse privado patrimonial do locador, sob pena de exposição ainda maior aos riscos de contaminação e disseminação da doença”, finaliza.

Fonte: IBDFAM

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