Registro Civil de Pessoa Jurídica – Organização religiosa – Averbação de alteração estatutária – Autonomia privada coletiva – Liberdade a ser exercida em conformidade aos valores do ordenamento jurídico – Disposições que violam o Estatuto da Pessoa Humana e o princípio democrático ao conceder poderes absolutos aos dirigentes da organização religiosa e inviabilizar a participação dos membros, mesmo em consideração à particularidade dos valores religiosos – Qualificação registral negativa mantida – Recurso não provido.


  
 

Número do processo: 1026801-24.2017.8.26.0071

Ano do processo: 2017

Número do parecer: 57

Ano do parecer: 2019

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 1026801-24.2017.8.26.0071

(57/2019-E)

Registro Civil de Pessoa Jurídica – Organização religiosa – Averbação de alteração estatutária – Autonomia privada coletiva – Liberdade a ser exercida em conformidade aos valores do ordenamento jurídico – Disposições que violam o Estatuto da Pessoa Humana e o princípio democrático ao conceder poderes absolutos aos dirigentes da organização religiosa e inviabilizar a participação dos membros, mesmo em consideração à particularidade dos valores religiosos – Qualificação registral negativa mantida – Recurso não provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso administrativo interposto por Tabernáculo Pentecostal Monte Horebe contra a r. decisão da MM. Juíza Corregedora Permanente do 1º Oficial de Registros de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca da Bauru, que indeferiu a averbação de ata de assembleia geral de alteração estatutária em razão da violação de normas jurídicas cogentes, sustentando, em preliminar, nulidade da r. sentença por ausência de fundamentação e, no mérito, o cabimento da realização do ato de averbação ante a conformidade das alterações ao ordenamento jurídico considerada sua natureza jurídica de organização religiosa (a fls. 119/128).

A Douta Procuradoria Geral da Justiça opinou pelo não provimento do recurso (a fls. 144/147 e 160).

É o relatório.

Opino.

Apesar da interposição do recurso com a denominação de apelação, substancialmente cuida-se de recurso administrativo previsto no artigo 246 do Código Judiciário do Estado de São Paulo, cujo processamento e apreciação competem a esta Corregedoria Geral da Justiça.

Diante disso, pela aplicação dos princípios da instrumentalidade e fungibilidade ao processo administrativo, passo a seu conhecimento.

A r. sentença não padece de nulidade por ausência de fundamentação uma vez que enfrentou o cerne da questão posta a incompatibilidade das previsões estatutárias da organização religiosa ante as normas cogentes, notadamente referentes à igualdade e ao princípio democrático enquanto meios de concretização da dignidade da pessoa humana.

A liberdade de crença religiosa e o consequente espaço jurídico para o exercício dessa liberdade, inclusive por meio da criação das organizações religiosas, são direitos fundamentais decorrentes da liberdade de pensamento e do exercício da autonomia privada coletiva, garantidos pela Constituição Federal.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu artigo 10º, já previa esse direito:

Art. 10.º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei. (grifos meus)

Da mesma forma, o artigo 18 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, incluído na ordem jurídica nacional por meio do Decreto n. 592, de 6 de julho 1992, estabelece:

ARTIGO 18

1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.

3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas à limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.

Desse modo, não há dúvida da excelência do direito atinente ao exercício da autonomia privada para formação das organizações religiosas em conformidade à liberdade de crença religiosa.

As particularidades do exercício desse direito devem ser consideradas e não seguem, exatamente, as previsões da organização do Estado ou de outras pessoas jurídicas de direito privado, como as sociedades comerciais.

Nesse sentido, o parágrafo 1º do artigo 44 do Código Civil, prescreve: São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negarlhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

Não obstante, o exercício dessas liberdades de autodeterminação das pessoas deve obedecer à moldura concedida pelo ordenamento jurídico.

Assim, é permitido a partir dos valores constitucionais de tutela da pessoa humana o controle das previsões estatutárias das organizações religiosas.

Pietro Perlingieri (Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 300), após referir que liberdade de associação constitui uma especificação da cláusula geral de tutela da pessoa, afirma:

Esta premissa é necessária para avaliar a resposta do ordenamento diante dos contrastes entre as manifestações de autonomia associativa e a tutela dos associados: tomem-se, como exemplo, os estatutos de associações que prevêem uma disciplina da relação associativa lesiva à dignidade dos inscritos, as cláusulas que proíbem o recurso ao juiz em caso de conflitos, as práticas vexatórias da maioria dirigidas contra opositores internos “descômodos”. A atividade associativa não constitui uma área subtraída ao primado da pessoa.

Desse modo, compete a análise jurídica das previsões estatutárias sem ingresso, obviamente, no âmbito dos valores religiosos.

Mesmo considerado o aspecto hierárquico não é possível a inserção de regras concedendo poderes absolutos aos dirigentes da organização religiosa atribuindo-lhes um poder superior e incontrastável, impedindo a modificação do estatuto e a destituição do Líder Espiritual e Autoridades Eclesiásticas, como se infere do exame das previsões contidas nos artigos 13, 14 e 15, p. 5º, 29, 36 e 37 do Estatuto.

Apesar da possibilidade da inserção de questões hierárquicas, juridicamente, não é possível em ente de autonomia privada coletiva atribuir poderes absolutos aos dirigentes e retirar (ou dificultar, sobremaneira) dos membros a possibilidade de controle dos atos e práticas sociais.

Essa situação, mesmo considerada as particularidades da entidade religiosa fere a tutela da pessoa humana e o princípio democrático.

Nem mesmo a concordância da totalidade dos membros da organização religiosa permitiria a validade dessas estipulações em virtude da indisponibilidade desses direitos.

Daniel Sarmento (Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 317) trata da incidência dos direitos políticos, iluminados pela democracia, nas instituições privadas nos seguintes termos:

Além disso, o princípio democrático também condiciona os juízes na interpretação e aplicação das normas do Direito Privado, assim como na exegese de cláusulas contratuais ou estatutárias que rejam as instituições associativas nesse último caso, inclusive, independentemente de qualquer mediação por parte do legislador ordinário.

Afora esses casos, pensamos também que é possível utilizar diretamente o princípio democrático na resolução de litígios envolvendo a participação em decisões coletivas relevantes nas instituições privadas. Não se trata, repita-se à exaustão, de reconhecer um direito subjetivo constitucional a esta participação, válido em todos os contextos, mas de considerar o vetor democrático, subjacente aos direitos políticos, no equacionamento de controvérsias jurídicas surgidas no cenário privado.

Há precedente do Conselho Superior da Magistratura acerca dos limites do exercício da autonomia privada coletiva na criação de entidades religiosas, como se observa de trecho do voto do Excelentíssimo Senhor Desembargador José Carlos Xavier de Aquino, na Apelação n. 0018134-71.2014.8.26.0071, j. 9/11/2015:

Dispõe o art. 44, § 1º, do Código Civil:

São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

Ao comentar o dispositivo, Lamana Paiva observa que o texto oferece uma ideia errônea acerca da possibilidade de formação e registro das organizações religiosas, parecendo conferir-lhes uma “imunidade legal” que em verdade não têm. Aduz inexistir essa pretensa liberdade absoluta de criação das organizações religiosas, pois não existe exercício ilimitado de direito, mormente quando esse direito tenha a pretensão de ser oposto, pelos particulares, à soberania do Estado. Depois de citar o Enunciado n. 143, da III Jornada de Direito Civil, promovida pela CEJCNJ, destaca que a expressão “negar registro”, contida no § 1º, do art. 44, apenas veda que o registrador, imotivada e simplesmente, negue o deferimento de registro, podendo, destarte, fazer exigências.

Por tudo isso, conclui que a qualificação negativa do registrador, desde que amparada na lei, não pode ser confundida ou interpretada como tentativa de embaraço ao funcionamento das igrejas e cultos religiosos. E que a ingerência vedada constitucionalmente diz respeito àquelas indevidas intromissões dos agentes públicos de qualquer nível da Administração Pública nas atividades internas das organizações religiosas, seus cultos, liturgias, credos e atos de gestão que consubstanciam, afinal, seu funcionamento.

Nestes termos, a qualificação registral negativa foi realizada nos limites de controle concedidos pelo ordenamento jurídico, competindo sua manutenção.

Ante o exposto, o parecer que, respeitosamente, submete-se à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de que a apelação seja recebida como recurso administrativo e a ele seja negado provimento.

Sub censura.

São Paulo, 1º de fevereiro de 2019.

Marcelo Benacchio

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, recebo a apelação como recurso administrativo e a ele nego provimento. Publique-se. São Paulo, 04 de fevereiro de 2019. (a) GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, Corregedor Geral da Justiça – Advogado: RODRIGO DE OLIVEIRA, OAB/SP 340.495.

Diário da Justiça Eletrônico de 11.02.2019

Decisão reproduzida na página 028 do Classificador II – 2019

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook e/ou assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito.