Em decisão inovadora, pais conquistam adoção póstuma de jovem que deixou bens

Um casal conseguiu, em abril, o reconhecimento de adoção póstuma de um jovem que deixou bens a serem inventariados. Os pais adotivos cuidaram do rapaz desde bebê e passaram a conviver integralmente com o menino aos 8 anos de idade, quando ele foi definitivamente entregue pelos pais biológicos. A decisão é da 2ª Vara de Família e Sucessões de Araçatuba, no interior de São Paulo.

O pai biológico contestou o pleito, pedindo a improcedência da ação de adoção póstuma sob a alegação de mero interesse financeiro, já que o casal dispôs de 27 anos para requerer o pleito e não o fizeram. A mãe biológica, por sua vez, foi favorável ao pedido dos autores, ressaltando que eles deram “muito amor” ao filho e que era desejo do rapaz ser adotado pelos requerentes.

O magistrado atentou à peculiaridade do caso, que carece de construção jurisprudencial pelo fato do adotando estar morto. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA trata da adoção póstuma quando morre aquele que fez o pedido de adoção. Já o Superior Tribunal de Justiça – STJ alargou a matéria para admitir propositura de ações post mortem com o adotante já falecido, desde que comprovado o vínculo.

Decisão privilegiou vínculos de afeto

Documentos e testemunhas comprovaram o vínculo afetivo entre os autores e o jovem morto, com reconhecimento mútuo enquanto pais e filho. Para o juiz Fernando Moreira, vice-presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a decisão foi irretocável.

“Privilegiou uma situação existencial consolidada no tempo em detrimento de uma discussão meramente patrimonial. Assegurou a situação de fato da filiação em contraposição à formalidade do ato. Mostrou que existe pluralidade de arranjos familiares, constituídos pelo afeto e com igual hierarquia, que extrapolam vínculos sanguíneos. Por fim, fez valer a solidariedade nas relações familiares, beneficiando, patrimonialmente, aqueles pais que efetivamente cuidaram do filho ao longo da vida”, elogia o magistrado.

Ele explica que o ECA, em seu artigo 42, §6º, prevê a possibilidade de continuidade do processo de adoção quando os adotantes falecerem no curso do processo, desde que haja inequívoca manifestação de vontade em concluir a adoção. Já o STJ, em diversas oportunidades, tem alargado a hipótese legal para permitir a adoção mesmo antes do início do processo, desde que seja inequívoca a vontade de adotar e se siga as mesmas regras de comprovação da filiação socioafetiva: tratamento do adotando como filho e conhecimento público dessa condição (REsp 1326728/RS).

“A decisão do magistrado de Araçatuba, de forma inovadora, tomou por base essas mesmas regras (do ECA e do STJ) para permitir a adoção após a morte do adotando”, acrescenta Fernando.

Efeitos sucessórios e existenciais

O juiz afirma que o reconhecimento da adoção póstuma não se limita às repercussões financeiras. “O efeito sucessório é decorrente dessa decisão, mas não devemos nos esquecer do efeito existencial, ou seja, ver chancelada pelo Poder Judiciário uma situação fática que perdurou por toda uma vida. Ver reconhecido o vínculo de filiação, inclusive com o direito aos nomes de família.”

“Nunca me esqueço de um casal idoso que buscava reconhecer uma filha adotiva que tinha aproximadamente 40 anos de idade. Diante daquela situação inusitada, em audiência, perguntei o porquê da adoção tantos anos depois. Eles me disseram, com os olhares marejados, que não tiveram condições e conhecimento para a propositura da ação antes, mas que não poderiam morrer sem viver a felicidade de uma adoção de direito, estampada em seus documentos, sobretudo porque a filha adotiva foi a única, dentre todos os filhos biológicos, que passou toda a vida ao lado do casal”, lembra Fernando.

Ele opina que o interesse dos autores que moveram a ação de Araçatuba não parece meramente patrimonial. “O magistrado destacou que há fartas provas de que os pais adotivos sempre cuidaram do adotando e se apresentavam publicamente como pais e filho, o que foi confirmado pela mãe biológica. Situação bastante diversa seria se os pais adotivos tivessem convivido por um curto período e se distanciado, retornando apenas com a morte”, pondera.

Construção jurisprudencial

O juiz fala sobre a recorrência de pleitos como esse no ordenamento jurídico brasileiro. “Se observarmos a jurisprudência dos tribunais brasileiros, verificaremos a existência de diversos casos em que se discute a adoção póstuma. Na maioria deles, buscava-se firmar o entendimento que acabou consagrado pelo STJ acerca da sua possibilidade, mesmo antes da propositura da ação”, diz.

Ele ressalta a importância de uma construção jurisprudencial sobre o processo de adoção após a morte do adotado. “O caso de Araçatuba lança um novo olhar sobre a matéria, já que se trata da morte do próprio adotando, o que é incomum e não encontra expressa previsão legal. Trata-se de uma lacuna no ECA a exigir respostas de seus intérpretes.”

“Posso concluir que essa é a beleza dos Direitos das Famílias: sermos surpreendidos a cada dia com uma nova situação de fato que nos faz repensar todos os nossos pré-conceitos”, assinala Fernando. O processo tramita em segredo de justiça.

Fonte: IBDFAM

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias

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