Direito humano à verdade e memória – Comissão Nacional da Verdade – Resolução 02/2017 da CEMDP – Retificação de registros de óbito – Normas administrativas gerais atualmente existentes suficientes – Independência funcional dos registradores e magistrados – Desnecessidade de outras providências.


  
 

Número do processo: 121505

Ano do processo: 2018

Número do parecer: 307

Ano do parecer: 2018

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 2018/121505

(307/2018-E)

Direito humano à verdade e memória – Comissão Nacional da Verdade – Resolução 02/2017 da CEMDP – Retificação de registros de óbito – Normas administrativas gerais atualmente existentes suficientes – Independência funcional dos registradores e magistrados – Desnecessidade de outras providências.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de solicitação da E. Presidência do Tribunal de Justiça para manifestação desta Corregedoria Geral da Justiça quanto ao cumprimento da Resolução n. 02/2017 da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos concernente ao procedimento para emissão de atestados para fins de retificação de assentos de óbito das pessoas reconhecidas como mortas ou desaparecidas políticas, nos termos da Lei n.° 9.140/95 e 12.528/11; consoante procedimento em curso perante a E. Corregedoria Nacional de Justiça.

É o breve relatório.

O direito humano à verdade e o direito humano à memoria têm por finalidade saber a verdade sobre acontecimentos referentes à violação dos direitos humanos, tortura, desaparecimentos forçados, e outras situações, independentemente do tempo transcorrido, permitindo compreensão e reconciliação da sociedade, inclusive para que não se repitam tais fatos ante sua memória histórica.

Queila Rocha Carmona e Alexandre Bucci[1] comentam essa questão nos seguintes termos:

Fundamental é assegurar os direitos à memória, à verdade e à justiça, sob pena de se fomentar violência institucional que apenas agrava a violência do antigo arbítrio responsável por desaparecimentos e mortes durante o regime militar brasileiro.

A contribuição para o fortalecimento da Comissão Nacional da Verdade se traduz, pois, em verdadeira defesa do direito à memória coletiva.

Sob outro ângulo, a busca pela verdade significa combate à impunidade de graves violações de direitos humanos e honrar esta responsabilidade é condição essencial para fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o próprio regime de direitos humanos no Brasil.

Com isto, substituídas as políticas do medo e da perseguição, reconhecer-se-á violações e efetiva tutela futura aos direitos humanos, valorados de maneira destacada em sociedade democrática que se busca seja reconstruída, sob postulados de tolerância e pluralidade, o que implica em necessária atribuição de força normativa ao direito à memória e à verdade, como resposta jurídica à indiferença e à prática de tortura e desaparecimentos forçados, outrora institucionalizados, trazendo à tona necessário ajuste histórico com crimes permanentes que enfraqueceram o Estado de Direito, a democracia e o regime de direitos humanos no Brasil.

A presente manifestação considera a excelência do direito em exame, notadamente por sua direita ligação com a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito.

O expediente em curso perante a E. Corregedoria Nacional de Justiça tem por objeto a retifícação das certidões de óbito de molde a dar efetividade ao direito humano à verdade e a memória.

Os artigos 1º, 3º e 7º, parágrafo segundo, da Lei n.° 9.140/95 têm a seguinte redação:

Art. 1º São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias.

Art. 3º O cônjuge, o companheiro ou a companheira, descendente, ascendente, ou colateral até quarto grau, das pessoas nominadas na lista referida no art. 1°, comprovando essa condição, poderão requerer a oficial de registro civil das pessoas naturais de seu domicílio a lavratura do assento de óbito, instruindo o pedido com original ou cópia da publicação desta Lei e de seus anexos.

Parágrafo único. Em caso de dúvida, será admitida justificação judicial.

Art. 7º Para fins de reconhecimento de pessoas desaparecidas não relacionadas no Anexo I desta Lei, os requerimentos, por qualquer das pessoas mencionadas no art. 3º, serão apresentados perante a Comissão Especial, no prazo de cento e vinte dias, contado a partir da data da publicação desta Lei, e serão instruídos com informações e documentos que possam comprovar a pretensão.

§ 2º Os deferimentos, pela Comissão Especial, dos pedidos de reconhecimento de pessoas não mencionadas no Anexo I desta Lei instruirão os pedidos de assento de óbito de que trata o art. 3º, contado o prazo de cento e vinte dias, a partir da ciência da decisão deferitória. (grifos meus)

Nessa perspectiva, é possível compreender a previsão específica da lavratura de assento de óbito de pessoas vítimas de desaparecimento forçado por decorrência de violação dos direitos humanos por agentes estatais; desde que não houvesse registro do óbito.

De outra parte, os objetivos da Comissão da Verdade, nos termos do artigo 3º da Lei n.° 12.528/11, são os seguintes:

Art. 3º São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:

I – esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1°;

II – promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III – identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1° e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV – encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei n.° 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V – colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;

VI – recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII – promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

A Comissão Nacional da Verdade, em decorrência do exercício de suas atribuições legais, realizou a reconstrução histórica da verdade acerca das causas e circunstâncias de mortes havidas em casos de graves violações dos direitos humanos.

Os artigos 80, 8º), e 81 da Lei de Registros Públicos fixam entre os requisitos do assento de óbito:

Art. 80. O assento de óbito deverá conter:

(…)

8º) se a morte foi natural ou violenta e a causa conhecida, com o nome dos atestantes;

Art. 81. Sendo o finado desconhecido, o assento deverá conter declaração de estatura ou medida, se for possível, cor, sinais aparentes, idade presumida, vestuário e qualquer outra indicação que possa auxiliar de futuro o seu reconhecimento; e, no caso de ter sido encontrado morto, serão mencionados esta circunstância e o lugar em que se achava e o da necrópsia, se tiver havido.

Parágrafo único. Neste caso, será extraída a individual dactiloscópica, se no local existir esse serviço.

Nestes termos, a retificação dos assentos de óbito, nessas circunstâncias, envolve a efetivação do direito a verdade e a memória.

A previsão contida nos artigos 3º e 7º, parágrafo segundo da Lei n.° 9.140/95, salvo melhor juízo, é limitada à hipótese de ausência do registro do óbito, determinando sua realização, podendo, conforme o caso, ser necessária a via judicial em caso da insuficiência de informações ou dúvida.

Não obstante o conteúdo da Resolução n.° 02/2017 da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, de natureza administrativa, em minha modesta compreensão, a legislação incidente somente permite a realização de registro inexistente, não a retificação.

A inexistência de registro é situação jurídica diversa da presença de registro a ser retificado, a exemplo do que ocorre no registro de nascimento tempestivo (LRP, art. 50 e ss.) e o tardio (LRP, art. 46).

A Lei de Registros Públicos estabelece duas vias para retificação do registro civil, incluído o de óbito, a administrativa e a jurisdicional.

Os artigos 110 e 109 da Lei de Registros Públicos estabelecem, respectivamente, a modalidade administrativa e jurisdicional, conforme segue:

Art. 110. O oficial retificará o registro, a averbação ou a anotação, de oficio ou a requerimento do interessado, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, independentemente de prévia autorização judicial ou manifestação do Ministério Público, nos casos de:

I – erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção;

II – erro na transposição dos elementos constantes em ordens e mandados judiciais, termos ou requerimentos, bem como outros títulos a serem registrados, averbados ou anotados, e o documento utilizado para a referida averbação e/ou retificação ficará arquivado no registro no cartório;

III inexatidão da ordem cronológica e sucessiva referente à numeração do livro, da folha, da página, do termo, bem como da data do registro;

IV – ausência de indicação do Município relativo ao nascimento ou naturalidade do registrado, nas hipóteses em que existir descrição precisa do endereço do local do nascimento;

V – elevação de Distrito a Município ou alteração de suas nomenclaturas por força de lei.

(…)

Art. 109. Quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o Juiz o ordene, ouvido o órgão do Ministério Público e os interessados, no prazo de cinco dias, que correrá em cartório. (Renumerado do art. 110 pela Lei n° 6.216, de 1975).

§ 1º Se qualquer interessado ou o órgão do Ministério Público impugnar o pedido, o Juiz determinará a produção da prova, dentro do prazo de dez dias e ouvidos, sucessivamente, em três dias, os interessados e o órgão do Ministério Público, decidirá em cinco dias.

§ 2º Se não houver impugnação ou necessidade de mais provas, o Juiz decidirá no prazo de cinco dias.

§ 3º Da decisão do Juiz, caberá o recurso de apelação com ambos os efeitos.

§ 4° Julgado procedente o pedido, o Juiz ordenará que se expeça mandado para que seja lavrado, restaurado e retificado o assentamento, indicando, com precisão, os fatos ou circunstâncias que devam ser retificados, e em que sentido, ou os que devam ser objeto do novo assentamento.

§ 5º Se houver de ser cumprido em jurisdição diversa, o mandado será remetido, por oficio, ao Juiz sob cuja jurisdição estiver o cartório do Registro Civil e, com o seu “cumpra-se”, executar-se-á.

§ 6º As retificações serão feitas à margem do registro, com as indicações necessárias, ou, quando for o caso, com a trasladação do mandado, que ficará arquivado. Se não houver espaço, far-se-á o transporte do assento, com as remissões à margem do registro original.

A duplicidade das vias administrativa e jurisdicional também consta nas Normas e Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, conforme item 139 e seguintes, do Capitulo XVII.

A natureza da retificação pretendida, normalmente, demandará a via judicial, porquanto a administrativa é para casos de menor complexidade.

Ao Oficial do Registro Civil é garantida independência funcional para a qualificação dos requerimentos a ele apresentados; portanto, respeitosamente, não seria cabível a criação de norma administrativa específica, bastando as regras gerais já existentes.

Também deve ser ressaltada a ausência de representações acerca de atos irregulares dos Senhores Titulares de Delegação na particularidade do requerimento do Doutor Defensor Público.

Da mesma forma, não caberia qualquer orientação aos Magistrados, no exercício da atividade jurisdicional, acerca de como proceder na situação referida nos autos, pena de violação da independência e autonomia daqueles.

Nessa perspectiva, as previsões legais gerais são suficientes à realização da excelência do direito humano à verdade e memória, assim, eventualmente, não haveria necessidade de providências administrativas específicas.

Ante ao exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de não ser necessária a prática de providências específicas para instruções a Magistrados e Oficiais do Registro Civil para atos de retifícação de assentos de óbito na hipótese objeto deste expediente, com a observação da não indicação de irregularidades, bem como a possibilidade de correção de casos pontuais que acaso ocorram.

Sub Censura.

São Paulo, 03 de agosto de 2018.

Marcelo Benacchio

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, determino a remessa de cópia desta decisão e do parecer a E. Presidência do Tribunal de Justiça. Publique-se. São Paulo, 03 de agosto de 2018 – (a) – GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO – Corregedor Geral da Justiça.

Fonte: INR Publicações

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