1ªVRP/SP: Registro de Imóveis. Cláusulas restritivas de impenhorabilidade e inalienabilidade. A extensão das cláusulas restritivas ao potencial construtivo registrado (por meio de averbação) não pode ser automático e contraria a própria razão de ser de tal direito.


  
 

Processo 1054728-04.2019.8.26.0100

Pedido de Providências – Registro de Imóveis – 18º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo – Brooklyn Empreendimentos S.A. – Vistos. Trata-se de pedido de providências formulado pelo Oficial do 18º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Sociedade Cidade Jardim Ltda., representada por sua sucessora Brooklyn Empreendimentos S.A, após negativa de averbação de cláusulas de impenhorabilidade e inalienabilidade dos direitos de potencial construtivo da matrícula nº 194.337. Alega o Oficial que o imóvel matriculado está gravado com tais cláusulas, e que após reconhecimento de direitos de potencial construtivo o proprietário pretende averbar que a restrição se estende a tais direitos, que já foram parcialmente alienados. O Oficial negou o requerimento, sob o argumento de falta de previsão legal para o ato. Juntou documentos às fls. 09/172. A requerida respondeu às fls. 176/185. Aduz que o imóvel foi recebido por doação e gravado com cláusulas restritivas justamente para preservação do patrimônio, local do Jockey Club de São Paulo. Argumenta que o potencial construtivo está ligado de forma indissociável ao próprio bem, e que permitir sua alienação seria um desvirtuamento das cláusulas, sendo necessária a averbação para ciência do alcance das restrições a terceiros. O Ministério Público opinou às fls. 289/292 pela improcedência do pedido. Houve parecer da ARISP às fls. 298/301 e resposta da requerida às fls. 304/309. É o relatório. Decido. Com razão o Oficial e o D. Promotor de Justiça. Inicio explicitando a natureza administrativa do presente procedimento, que invariavelmente traz limitações à cognição e alcance da decisão. Tratando-se de expediente unilateral, feito a requerimento do proprietário diretamente perante o registro imobiliário, está o Oficial obrigado a seguir os princípios registrários, entre eles a legalidade, o que o impede de agir de forma diversa da prevista em lei, em especial quando não há autorização expressa para realizar tais atos. Havendo recurso a esta Corregedoria Permanente, há exercício atípico de jurisdição administrativa pelo juiz de direito, cuja decisão não tem caráter jurisdicional, mas meramente de revisão hierárquica da qualificação exercida pelo registrador. Esta decisão do juiz corregedor, portanto, encontra os mesmos limites trazidos à qualificação do Oficial, não sendo possível exacerbar as limitações de cognição, não podendo, portanto, a decisão transvestirse de caráter jurisdicional, sendo vedado, por exemplo, a declaração de inconstitucionalidade de lei, declaração de nulidade intrínseca ou declaração de existência de direito contestado. Em sendo assim, no presente feito, ao decidir pela improcedência do pedido, pelas razões que serão melhor expostas abaixo, não se está declarando que os direitos de potencial construtivo não estão protegidos pelas cláusulas restritivas que gravam o imóvel, mas tão somente que a averbação de tal fato na matrícula imobiliária, por requerimento unilateral do proprietário, não é possível. Todavia, não há impedimento para que o interessado busque a via jurisdicional própria para que se declare a extensão de tais direitos, com possível inscrição na matrícula, até mesmo declarando-se a nulidade do ato de disposição já realizado (Av. 25 da M. 194.337). Dito isso, faço breve análise da natureza das cláusulas restritivas. Como bem colocado por Ademar Fioranelli em sua obra “Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade” (São Paulo: Saraiva, 2009, p.1): O direito não está sujeito a restrições de quaisquer espécies, sob pena de se estar ferindo o próprio direito. Todavia, esse conceito está longe de ser absoluto, pois normas legais emergentes ou originárias de inúmeros fatos sociais (…) vêm, muitas vezes, opor restrições e limitar um direito. Assim acontece hoje com a propriedade, consagrada constitucionalmente, que se vê, após o passar dos séculos, cercada por restrições. (…) Tais restrições têm sido objeto de severas críticas da doutrina. A mais contundente foi feita por Ferreira Alves: “A inalienabilidade está em oposição com uma lei fundamental da economia política, a que exige a livre circulação dos bens, lei esta que interessa em mais alto grau à riqueza pública e, portanto, toda disposição que derroga esta lei é contrária ao interesse em geral e assim ilícita (Sucessões, n. 83, p. 190; RT, 474/29).” De fato, sendo a propriedade um dos mais amplos e importantes direitos em nosso ordenamento, qualquer restrição a ela imposta deve estar devidamente justificada nos demais objetivos da Constituição, permitindo-se a restrição de um direito em favor de outro. Como consequência, tais restrições devem estar previstas em lei e interpretadas restritivamente, sob pena de limitar o direito à propriedade sem fundamento que sustente tal ato. E o direito de propriedade, conforme célebre definição, engloba o direito de dispor do bem, direito este que engloba não só o interesse do proprietário como de toda a sociedade, uma vez que a livre circulação de ativos é essencial para o funcionamento saudável da economia. E as cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade são, em sua essência, limitações ao direito de dispor advindo da propriedade, pois impedem a livre circulação do bem por ato voluntário ou até mesmo involuntário, no caso da penhora, pelo proprietário. Justamente por trazerem esta limitação ao direito de propriedade, seu regramento legal vem sofrendo alterações que diminuem seu alcance. Enquanto o Código Civil de 1916 previa genericamente a existência de tais cláusulas, o Código Civil de 2002, em seu Art. 1.848, limitou a imposição de tais gravames, exigindo a justa causa para sua imposição por meio de testamento, sendo entendimento da doutrina, ainda, que tal restrição não pode ser perpétua e se esgota com a morte do beneficiado. Ainda, consagrando o interesse público em face de restrições privadas, o Art. 30 da Lei 6.830/80 permite que a execução fiscal recaia sobre bens gravados com a incomunicabilidade e impenhorabilidade, além de entendimento jurisprudencial sobre a ineficácia das cláusulas frente a execução de taxas condominiais. Tudo isso a demonstrar que, na interpretação de tais cláusulas, deve ser priorizado o entendimento que limite seu alcance, privilegiando sempre a livre disposição da propriedade, sem ferir, por óbvio, a vontade do instituidor. No presente caso, vê-se pela Av. 01 da matrícula que as cláusulas foram estabelecidas em 1936, na vigência do Código Civil de 1916, quando a justa causa não era expressamente prevista em lei, apesar de discussões acerca de sua necessidade para validade das cláusulas. O objetivo da restrição, conforme consta da matrícula, era que o imóvel “jamais (respondesse) pela solução de qualquer obrigação assumida pelo Club”. O alcance da restrição, pelo menos na análise dos documentos trazidos aos autos, fica claro com a averbação 11 da transcrição nº 15.339 do 4º RI, que deu origem a matrícula. Ali constou (fl. 55): “o imóvel, representado pelos terrenos doados e todas as edificações que sobre o mesmo vão ser feitas para o novo hipódromo, fica gravado com as cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade” (grifei) A restrição, portanto, foi expressa quanto a seu alcance, limitando-se ao terreno e edificações a serem feitas para o novo hipódromo. Em outras palavras, a restrição foi instituída sobre o imóvel, entendido como a projeção horizontal existente no solo, bem como edificações realizadas para o fim específico de constituir o hipódromo. Não houve qualquer extensão da cláusula aos frutos do bem ou qualquer outro direito dele decorrente, e poder-se-ia inclusive alegar que eventuais construções ou parcelas do terreno utilizadas para outros fins que não o hipódromo estariam livres de qualquer restrição. Assim, com base tão somente na vontade do doador, não haveria ampla abrangência das cláusulas, tendo elas sido instituídas com o fim de permitir a instalação e funcionamento do Jockey Club, não podendo haver interpretação extensiva das cláusulas para que se averbe seu alcance com relação a outros direitos decorrentes do imóvel. Por óbvio, não poderia o doador prever que a cláusula abrangeria direitos de construção sobre o bem, já que a ideia de potencial construtivo alienável sequer existia na época. Não obstante, tais direitos não dizem respeito a edificações em si, mas ao próprio direito de construir. Sua alienação não parece, nos limites de cognição deste procedimento, estar vedada, por não representar, necessariamente, prejuízo ao funcionamento do Jockey, que já tem estrutura para o hipódromo. Com base em tais argumentos, relativos ao alcance das restrições impostas sobre o imóvel objeto deste feito, fundado na análise documental própria da qualificação registral, a averbação pleiteada deve ser negada. Mas não é só. Os direitos de potencial construtivo, apesar de originados na propriedade do imóvel, têm por finalidade própria sua alienação e utilização em imóveis diversos. Trata-se de direito autônomo, alienável de forma independente do imóvel e conforme o regramento municipal e do Estatuto da Cidade. Seu registro no fólio imobiliário tem por objetivo principal o controle da disponibilidade e origem do direito de construir, mas não representa vinculação exclusiva ao imóvel, tanto é assim que sua alienação é registrada tanto no imóvel de origem quanto no receptor. Sua aquisição se dá tanto de forma onerosa quanto por compensação realizada pelo Município após impor restrições ao imóvel. No presente caso, com o seu tombamento, foi outorgado o potencial construtivo, para o fim de restituir financeiramente o proprietário dos prejuízos trazidos pela limitação ao seu direito de propriedade. Ocorre que, com o tombamento, a utilização de tais direitos no próprio imóvel são restritos, sendo sua principal função a alienação para obtenção de compensação financeira pelos prejuízos. Acaso seja estendida a restrição de inalienabilidade a tais direitos, o proprietário estaria impedido não só de construir no imóvel, em razão do tombamento, quanto usufruir da devida compensação trazida por tal impedimento. Como bem colocado pelo D. Promotor: “Seria um contrassenso, portanto, ampliar a inalienabilidade do imóvel ao seu potencial construtivo, sob pena de reforçar a restrição já sofrida pelo proprietário, que não poderia construir sobre o bem, tampouco alienar o direito de construção, num duplo prejuízo. Estaria, da mesma forma, esvaziada a intenção legal, que previu a transmissão do direito de construir como compensação ao titular de imóvel tombado.” E nem se diga que, acaso alienados tais direitos e com eventual afastamento do tombamento, o proprietário estaria impedido de construir. Isso porque o potencial construtivo, como direito autônomo e não vinculado ao imóvel, surgiu, única e exclusivamente, em razão do tombamento, e deve ser utilizados, nos termos do Art. 35 da Lei 10.257/01, em outro imóvel, ou ser alienado. É dizer que o potencial construtivo alienável, nascido em razão do tombamento, deve ser utilizado necessariamente em outro imóvel, seja do próprio proprietário seja após alienação a terceiro. O direito de construir no próprio imóvel não tem relação com o potencial construtivo registrado com origem no tombamento. O registro na matrícula de origem, como já dito, tem por objetivo o controle de disponibilidade, mas não vincula o potencial alienável a utilização no próprio bem, porque sem o tombamento o direito registrável não existiria. Apenas saliente-se, neste ponto, que o tombamento, em razão de sua importância cultural ou histórica, deve ser entendido como perpétuo, sendo excepcional sua extinção, de modo que o argumento da requerida, sobre a hipotética utilização do potencial construtivo em caso de sua extinção, não supera o plano das ideias e não permite conclusão diversa quanto a qualificação do Oficial. Assim, a extensão das cláusulas restritivas ao potencial construtivo registrado não pode ser automático e contraria a própria razão de ser de tal direito. Por fim, unindo as duas razões trazidas acima para impedir a averbação pleiteada, surge uma terceira. Se o doador instituiu a cláusula para preservar o imóvel e edificações utilizadas como hipódromo, e se o direito de construir, nos termos do Art. 35 do Estatuto da Cidade, deve ser utilizado em imóvel diverso, fica claro que as cláusulas não alcançam tais direitos, já que em se tratando outro imóvel não há utilização como hipódromo no imóvel gravado com inalienabilidade e impenhorabilidade. Do exposto, julgo improcedente o pedido de providências formulado pelo Oficial do 18º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Sociedade Cidade Jardim Ltda., mantendo a negativa da averbação. Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento. Oportunamente, arquivem-se os autos. P.R.I.C. – ADV: ANTONIO GOMES DA ROCHA AZEVEDO (OAB 49961/SP)

Fonte: DJE/SP 05.12.2019

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