Registro – Retificação – Prova dos autos que aponta para a celebração do casamento na esfera religiosa antes da entrada em vigor da Constituição da República de 1891 e do Decreto 181 de 1890 – Documentos posteriores do registro civil que corroboram a ocorrência do casamento – Decreto nº 9.886 de 07 de março de 1888 que apenas estruturou sistema de registros para dar cumprimento ao art. 2º da Lei 1.829/1870, sem comprometer a validade dos casamentos religiosos – Cabível a retificação pretendida – Precedentes deste Tribunal – Sentença revista – Recurso provido.


  
 

ACÓRDÃO –

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1084867-70.2018.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante CARLA TATIANA FERREIRA BASTOS, é apelado JUÍZO DA COMARCA.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Deram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores LUIZ ANTONIO DE GODOY (Presidente sem voto), AUGUSTO REZENDE E JOSÉ EDUARDO MARCONDES MACHADO.

São Paulo, 23 de outubro de 2019.

CLAUDIO GODOY

Relator

Assinatura Eletrônica

APELAÇÃO CÍVEL

Processo n. 1084867-70.2018.8.26.0100

Comarca: São Paulo

Apelante: CARLA TATIANA FERREIRA BASTOS

Apelado: JUÍZO DA COMARCA

Juiz Dr. Erasmo Samuel Tozetto

Voto n. 20.511

Registro. Retificação. Prova dos autos que aponta para a celebração do casamento na esfera religiosa antes da entrada em vigor da Constituição da República de 1891 e do Decreto 181 de 1890. Documentos posteriores do registro civil que corroboram a ocorrência do casamento. Decreto n. 9.886 de 07 de março de 1888 que apenas estruturou sistema de registros para dar cumprimento ao art. 2º da Lei 1.829/1870, sem comprometer a validade dos casamentos religiosos. Cabível a retificação pretendida. Precedentes deste Tribunal. Sentença revista. Recurso provido.

Cuida-se de recurso de apelação interposto contra sentença (fls. 107/108) que rejeitou pedido de retificação de registro civil. Sustenta a autora, em sua irresignação, que há prova satisfatória do estado de casados de seus trisavós, Valentim Busnello e Amalia Busnello, perante a Igreja Católica, mesmo sem registro civil, pois é exatamente a falta deste registro que pretende suprir com o pedido formulado; que, se assim não fosse, seus bisavós não teriam sido reconhecidos em seus assentos de nascimento como filhos legítimos do casal; que seus trisavós têm o mesmo sobrenome, de modo que, ou foram casados, ou a relação foi incestuosa, hipótese desde já descartada, pois a certidão de nascimento de Antonio, irmão de Valentim, indica pais distintos dos de Amalia; que as certidões de óbito de Valentim e Amalia demonstram que foram casados; que irrelevante a obrigatoriedade ou não do casamento civil imposta pela legislação vigente à época, mesmo porque o casamento se deu antes da vigência da Constituição da República de 1891 e o decreto mencionado pela sentença veio para regular a Lei n. 1.829/1870, voltada apenas para fins estatísticos, sem estabelecer obrigatoriedade de registro.

A Procuradoria foi pelo provimento (fls. 135/139).

É o relatório.

Respeitada a convicção do MM. Juízo de origem, entende-se de dar provimento ao recurso.

De início, assente-se o direito da autora de, na condição de descendente, requerer a retificação do assento civil de seus trisavós, com fundamento na ampla legitimação conferida pelo art. 109 da Lei 6.015/73, entendimento já sedimentado na jurisprudência deste Tribunal (Apelação Cível 1005467-67.2018.8.26.0565, Rel. Coelho Mendes, 10ª Câmara de Direito Privado, j. 08/10/2019; Apelação Cível 1023398-86.2018.8.26.0564, Rel. Luis Mario Galbetti, 7ª Câmara de Direito Privado, j. 24/03/2014; Agravo de Instrumento 9031550-55.2003.8.26.0000, Rel. Ruiter Oliva, 9ª Câmara de Direito Privado; j. N/A, r. 22/04/2004).

No mérito, não se olvida demonstrar a certidão da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná a ausência de qualquer registro civil do casamento entre os trisavós da autora, Valentim e Amalia (fls. 73, 80 e 101).

Todavia, tudo indica que ocorrida a celebração religiosa do casamento, e em data anterior à entrada em vigor do Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, cujo art. 108 estabelece sua aplicabilidade apenas aos casamentos a partir de então celebrados; bem como em data anterior à da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891.

Naquele tempo, ainda não se havia estabelecido o casamento civil, conforme lembra Rolf Madaleno: “no Brasil, o casamento religioso prevaleceu ao tempo do Império, preconizando a Igreja a sua competência exclusiva para celebrar os matrimônios dos cristãos, existindo, então, apenas o casamento eclesiástico para a união legítima dos cônjuges. O casamento civil foi proclamado com a Constituição da República de 1891, que passou a reconhecê-lo como a única modalidade de matrimônio válido, (…).” (Curso de direito de família, 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 114).

No caso concreto, a celebração do casamento religioso perante a Igreja Católica está demonstrada pelo extrato dos livros de registro de batismo da Paróquia de Nossa Senhora da Luz de Curitiba, do qual consta que, “aos vinte e dois de março de mil oitocentos noventa e um, na Matriz Santa Parochia foi por mim baptizado = Antonio = nascido a dezoito deste mês, filho legítimo de Valentim Busnello e Amalia Busnello.” (fls. 16/17), teor inclusive certificado recentemente, em 8 de março de 2018, pelo cônego responsável (fls. 18). Se nascido filho legítimo do casal, é de se presumir, por máxima de experiência, e mormente considerando os costumes mais estritos da época, que tenha havido regular casamento perante as autoridades eclesiásticas ao menos algum tempo antes.

Corroborando a regularidade do matrimônio e a ausência de conflito com o Decreto 181 de 24 de janeiro de 1890, ou com a Constituição da República de 1891, todos os documentos civis elaborados posteriormente se referiram a Valentim e Amalia como casados, tais como as certidões de nascimento dos filhos Antonio (fls. 13) e Virgilio (fls. 12), as certidões de casamento dos filhos Antonio (fls. 22) e Eugenio (fls. 14), e as certidões de óbito dos próprios Valentim (fls. 19/20) e Amalia (fls. 21) e do filho Antonio (fls. 30).

Ponderável, ainda, o argumento da identidade de sobrenomes trazido pela autora, pois, realmente, se demonstrou nos documentos mencionados acima e na certidão de fls. 124 que os pais de Valentim não eram os mesmos que os de Amalia. Ou seja, nada indica fossem parentes, de tal arte a se reconhecer outra explicação, senão a posse do estado de casados, para o mesmo sobrenome.

Também não se considera que o Decreto 9.886 de 07 de março de 1888 tenha estabelecido a obrigatoriedade do registro do casamento civil, afastando os efeitos jurídicos dos casamentos celebrados apenas no âmbito religioso. A análise de seus dispositivos permite concluir que seu intuito foi tão somente o de estabelecer e regulamentar um sistema de registro civil, para dar execução ao art. 2º da Lei 1.829/1870, que impôs ao governo o dever de organizar “o registro dos nascimentos, casamentos e óbitos”.

Tem-se, assim, a mera criação de uma estrutura administrativa capaz de promover o recenseamento da população, em um momento de ruptura política, sem comprometer a validade ou a eficácia dos casamentos celebrados exclusivamente na esfera religiosa. A obrigatoriedade do casamento civil foi introduzida apenas com o Decreto 181/1890, em seu art. 1º, segundo o qual: “As pessoas, que pretenderem casar-se, devem habilitar-se perante o official do registro civil (…)”; tendência consolidada pela Constituição da República de 1891, em seu art. 72, § 4º, segundo o qual:

“A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”.

Nesse contexto, ainda diante da regra de julgamento do art. 1.547 do CC, que consagra o princípio do in dubio pro matrimonio, tanto mais em benefício dos descendentes (art. 1.545 do CC), é de se reconhecer a existência de vínculo matrimonial entre Valentim e Amalia, determinando-se a retificação de seus respectivos assentos civis para deles constar tal circunstância.

Por fim, nesta mesma esteira tem decidido este Tribunal em situações análogas, nas quais comprovada a realização ao menos do casamento religioso:

“Sob outro aspecto, o artigo 109 da Lei dos Registros Públicos prevê a possibilidade de restauração, suprimento ou retificação de assentamento no Registro Civil, cabendo ao interessado fazer a prova do que pretende alterar, suprir ou restaurar. Na peculiaridade dos autos, verifica-se que realmente não foi lavrado o registro de casamento civil somente o religioso de Giuseppe e Carolina (fls. 30). Em contrapartida, a análise do documento de fls. 30 comprova que Giuseppe e Carolina casaram-se na Capela de Santa Cecilia, na Capital de São Paulo, em 31/01/1898, perante testemunhas, cerimônia realizada perante o Padre Duarte Leopoldo. Outrossim, é inequívoco que o casamento religioso entre os bisavós da requerente prolongou-se no tempo, ensejando a efetiva constituição de uma família, inclusive resultando prole. Em face de inexistência de registro de casamento civil, é facultado aos descendentes requerer o registro tardio de seus antepassados, sobretudo quando contemporâneo ao período de transição entre os registros exclusivamente paroquiais e aqueles formalizados perante Registro Civil das Pessoas Naturais. Como cediço, o casamento civil foi instituído no Brasil pelo Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890. Na sequência, com a promulgação da Constituição da República de 1891, que estabeleceu o afastamento entre Religião e Estado, o casamento no Brasil passou a ser, de forma exclusiva, o casamento civil. No caso em apreço, conquanto o casamento realizado em 1898 desborde do comando legal, tal se justifica pelo fato de que se trata de matrimônio envolvendo imigrante italiano, o qual, provavelmente, desconhecia a exigência legal. Crave-se que, na época em que celebrado, máxime em comunidade de imigrantes, na sua imensa maioria de religião católica, o fato de receber o sacramento do representante máximo na Igreja no local era suficiente para o reconhecimento da união e da manifestação de vontade dos nubentes perante os demais. Por consequência, é comum a existência de casamentos formalizados apenas perante as igrejas e paróquias, sem qualquer registro cartorial. Deste modo, o simples fato de o referido ato não ter sido ratificado perante o Ofício do Registro Civil não o descaracteriza.” (Apelação Cível 1005467-67.2018.8.26.0565; Rel. Coelho Mendes; 10ª Câmara de Direito Privado; j. 08/10/2019)

“De acordo com o contexto histórico, o registro realizado à época pela Igreja Católica não pode ser desprezado. Por sua vez, apenas com o decreto nº 9.886 de 7 de março de 1888 constou em legislação a obrigatoriedade do registro do casamento em ofícios do Estado. Assim, há prova suficiente do casamento a permitir o registro civil tardio.” (Apelação Cível 1127476-68.2018.8.26.0100; Rel. Luis Mario Galbetti; 7ª Câmara de Direito Privado; j. 24/03/2014)

“Em contrapartida, a análise do documento de fls. 15 comprova que Carlos Giarelli e Maria Francisca de Toledo casaramse na Paróquia de Santa Cecília, na Capital de São Paulo, em 28/08/1899, cerimônia realizada perante o Padre Duarte Leopoldo e as testemunhas Veneri Efro e Pozzi Cesara. Outrossim, é inequívoco que o casamento religioso entre os bisavós da requerente prolongou-se no tempo, ensejando a efetiva constituição de uma família, inclusive resultando prole (cf. fls. 58). Em face de inexistência de registro de casamento civil, é facultado aos descendentes requerer o registro tardio de seus antepassados, sobretudo quando contemporâneo ao período de transição entre os registros exclusivamente paroquiais e aqueles formalizados perante Registro Civil das Pessoas Naturais. (…) No caso em testilha, conquanto o casamento realizado em 1899 desborde do comando legal, tal se justifica pelo fato de que se trata de matrimônio envolvendo imigrante italiano, o qual, provavelmente, desconhecia a exigência legal. Crave-se que, na época em que celebrado, máxime em comunidade de imigrantes, na sua imensa maioria de religião católica, o fato de receber o sacramento do representante máximo na Igreja no local era suficiente para o reconhecimento da união e da manifestação de vontade dos nubentes perante os demais. É deveras comum, por conseguinte, a existência de casamentos formalizados apenas perante as igrejas e paróquias, sem qualquer registro cartorial. Nessa medida, o simples fato de o referido ato não ter sido ratificado perante o Ofício do Registro Civil não o descaracteriza.” (Apelação Cível 1073406-04.2018.8.26.0100; Rel. Rômolo Russo; 7ª Câmara de Direito Privado; j. 22/02/2019)

Ante o exposto, DÁ-SE PROVIMENTO ao recurso.

CLAUDIO GODOY

Relator – – /

Dados do processo:

TJSP – Apelação Cível nº 1084867-70.2018.8.26.0100 – São Paulo – 1ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Claudio Godoy – DJ 29.10.2019

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook e/ou assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito”.