RECURSO ESPECIAL Nº 1.617.650 – RS (2016/0201740-6)
RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
RECORRIDO : ESPOLIO DE RUY GERHARDT BARBOSA – ESPÓLIO
REPR. POR : RODRIGO EMILIO GERHARDT BARBOSA – INVENTARIANTE
ADVOGADOS : FABIANA ESPÓSITO – RS035075
JÚLIO CÉSAR GEMIN – RS026696
DIOGO LUIZ BURILLE – RS037275
DANIEL PETRINI DE MORAES – RS055181
GUSTAVO RECH – RS075569
JULIO ALBERTO WITZLER DIAZ – RS062899
GRACIELI TIEFENSEE MARCHIONATTI – RS073039
PAULO FRAGA DA SILVA – RS078116
PEDRO ZUCCHETTI FILHO – RS093477
RICARDO FUSQUINE VERBIST – RS075427
RECORRIDO : NARA ALAIDES OLIVEIRA
ADVOGADOS : DANIEL PETRINI DE MORAES – RS055181
GRACIELI TIEFENSEE MARCHIONATTI E OUTRO(S) – RS073039
RECORRIDO : MARCIA MARISA GERHARDT BARBOSA
ADVOGADOS : FABIANA ESPOSITO – RS035075B
JULIO ALBERTO WITZLER DIAZ – RS062899
INTERES. : NILO SERGIO FERNANDES BARBOSA
INTERES. : JULIO CESAR GEMIN
INTERES. : MARINES BARBOSA LAZZARETTI
INTERES. : SIMONE MARTINS BARBOSA
INTERES. : MARLUZA SOLANGE BARBOSA NAZZARI
INTERES. : EDUARDO MARTINI BARBOSA
ADVOGADOS : GUSTAVO RECH – RS075569
RICARDO FUSQUINE VERBIST – RS075427
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA HÍBRIDA. FILHOS COMUNS E EXCLUSIVOS. ART. 1790, INCISOS I E II, DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. APLICAÇÃO AO CÔNJUGE OU CONVIVENTE SUPÉRSTITE DO ART. 1829, INCISO I, DO CC/2002. DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INEXISTÊNCIA DE RECONHECIMENTO DA VIOLAÇÃO DA METADE DISPONÍVEL. SÚMULAS 282/STF E 7/STJ.
1. Controvérsia em torno da fixação do quinhão hereditário a que faz jus a companheira, quando concorre com um filho comum e, ainda, outros seis filhos exclusivos do autor da herança.
2. O Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do e. Min. Luís Roberto Barroso, quando do julgamento do RE 878.694/MG, reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CCB tendo em vista a marcante e inconstitucional diferenciação entre os regimes sucessórios do casamento e da união estável.
3. Insubsistência da discussão do quanto disposto nos incisos I e II do art. 1.790, do CCB, acerca do quinhão da convivente – se o mesmo que o dos filhos (desimportando se comuns ou exclusivos do falecido) -, pois declarado inconstitucional, reconhecendo-se a incidência do art. 1.829 do CCB.
4. “Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus.” (REsp 1368123/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/04/2015, DJe 08/06/2015)
5. Necessária aplicação do direito à espécie, pois, reconhecida a incidência do art. 1.829, I, do CCB e em face da aplicação das normas sucessórias relativas ao casamento, aplicável o art. 1.832 do CCB, cuja análise deve ser, de pronto, realizada por esta Corte Superior, notadamente em face da quota mínima estabelecida ao final do referido dispositivo em favor do cônjuge (e agora companheiro), de ¼ da herança, quando concorre com seus descendentes.
6. A interpretação mais razoável do enunciado normativo do art. 1.832 do Código Civil é a de que a reserva de 1/4 da herança restringe-se à hipótese em que o cônjuge ou companheiro concorrem com os descendentes comuns. Enunciado 527 da Jornada de Direito Civil.
7. A interpretação restritiva dessa disposição legal assegura a igualdade entre os filhos, que dimana do Código Civil (art. 1.834 do CCB) e da própria Constituição Federal (art. 227, §6º, da CF), bem como o direito dos descendentes exclusivos não verem seu patrimônio injustificadamente reduzido mediante interpretação extensiva de norma.
8. Não haverá falar em reserva quando a concorrência se estabelece entre o cônjuge/companheiro e os descendentes apenas do autor da herança ou, ainda, na hipótese de concorrência híbrida, ou seja, quando concorrem descendentes comuns e exclusivos do falecido.
9. Especificamente na hipótese de concorrência híbrida o quinhão hereditário do consorte há de ser igual ao dos descendentes.
10. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.
ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente) e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 11 de junho de 2019(data do julgamento)
MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
Relator
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):
Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, com fundamento na alínea “a” do inciso III do art. 105 da CF, contra o acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, prolatado em sede de agravo de instrumento manejado por NILO SÉRGIO FERNANDES BARBOSA e OUTROS no curso de ação de inventário dos bens deixados por RUY GERHARDT BARBOSA, cuja ementa está assim redigida:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUCESSÃO. INVENTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. PRELIMINAR. DESCUMPRIMENTO DO ART. 526 DO CPC AFASTADA. Embora tenha sido arguida pela parte agravada o descumprimento do disposto no art. 526 do Código de Processo Civil, essa olvidou-se de comprovar o alegado, merecendo ser conhecido o recurso.
DOAÇÃO A FAVOR DA COMPANHEIRA. Mostra-se válida a doação levada a efeito pelo inventariado em favor da companheira em 1980. Necessidade de verificar se a doação não excede a parte disponível.
SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. PARTICIPAÇÃO COMO HERDEIRA. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA COM FILHOS HÍBRIDOS. Em se tratando de matéria sucessória, o legislador tratou de forma diferente os institutos do casamento e da união estável É permitido à companheira receber quinhão hereditário igual ao do filho comum e dos exclusivos do inventariado, quanto aos bens adquiridos na constância da união estável.
Inteligência do art. 1.790, I, do CPC.
Agravo de instrumento desprovido.
Em suas razões recursais, sustentou a afronta aos arts. 544 e 1790, inciso I, do CCB. Aduziu que as sucessivas doações da nua propriedade de metade do mesmo imóvel e a sua gravação com cláusula de incomunicabilidade, ocorridas em abril de 1980 e em novembro de 1997, entre o falecido e sua companheira, com quem viveu em união de 1977 até o seu passamento em 2012, violara a legislação disciplinante, pois em tendo sido reconhecida a união estável, ainda que em ação ajuizada após o óbito, o bem doado deveria ser considerado comum, e a companheira, assim, já teria a sua meação assegurada.
Referiu que a doação de um cônjuge a outro importa adiantamento do que lhes cabe por herança, estando permitida desde que tal liberalidade seja interpretada à luz do regime de bens, e, em sendo o da comunhão, que o bem pertença ao patrimônio particular do doador, o que no caso não se confirma, já que bem comum, impondo-se tornar ineficaz o ato de liberalidade, determinando-se que a meação do falecido sobre o imóvel integre o monte partível.
Por outro lado, sustentou que, concorrendo a companheira com o filho comum e, ainda, com os filhos exclusivos do de cujus, deve ser adotada a regra do inciso II do art. 1.790 do CCB, pois a que melhor atende os interesses dos filhos, ainda que a filiação seja híbrida, não se podendo garantir ao convivente cota maior em detrimento dos filhos do falecido, pois já lhe cabe a metade ideal dos bens adquiridos onerosamente durante a união. Pediu o provimento do recurso.
Nas suas contrarrazões, o espólio, Rodrigo e Nara suscitaram o não conhecimento do recurso por ato incompatível do recorrente, que não interpusera recurso contra a decisão prolatada na origem. Disseram, ainda, da ausência de legitimidade, por não se estar diante de direitos individuais indisponíveis. Finalizaram dizendo da ausência de prequestionamento, da incidência do enunciado 7/STJ e, no mérito, destacaram que a parte disponível do doador não fora ultrapassada, razão do necessário desprovimento do recurso.
O apelo excepcional fora admitido na origem.
O Ministério Público Federal pugnou pelo não conhecimento do recurso especial.
Intimadas as partes a se pronunciarem acerca do julgamento do RE 878.694, sob o rito da repercussão geral, sobrevieram as manifestações dos herdeiros/agravantes, do Ministério Público Federal às fls. 498/500, 501/502 e 510/512 e-STJ, e do Ministério Público Estadual, respectivamente.
Acórdão recorrido publicado antes da entrada em vigor da Lei 13.105/2015, razão por que o juízo de admissibilidade é realizado na forma do CPC/73, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme Enunciado Administrativo STJ 2/2016.
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):
Eminentes Colegas. A controvérsia central do presente recurso especial situa-se em torno da fixação do quinhão hereditário a que faz jus a companheira, quando concorre com um filho comum e, ainda, outros seis filhos exclusivos do autor da herança.
Discutem-se, além disso, no recurso especial outras questões, como a legitimidade do Ministério Público e a validade de doação da nua propriedade de imóvel feita pelo de cujus à sua companheira em 1980.
Antes de passar ao exame dessas questões, deve ser consignado que o falecido, cujo patrimônio agora é inventariado, morreu no dia 29/03/2012, deixando bens a inventariar e testamento.
O de cujus viveu em união estável com a recorrida, NARA ALAIDES DE OLIVEIRA de outubro de 1977 até a data do óbito, tendo com ela um filho. Além dele, o falecida também teve seis outros filhos exclusivos.
Duas são as questões devolvidas no recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, suscitando-se, ainda, em sede de contrarrazões, além do desprovimento do recurso, a ilegitimidade do Ministério Público estadual.
Inicio com a questão relativa à legitimidade para o Parquet, figurando como custos legis, recorrer do acórdão que julgou o agravo de instrumento interposto pelas partes no curso de ação de inventário em que estão habilitados apenas interessados maiores e plenamente capazes.
Ainda sob a vigência do CPC de 1973, o art. 82 previa expressamente a possibilidade de o Ministério Público intervir nas seguintes hipóteses, ressaltando-se a parte final do inciso II, relativa às disposições de última vontade:
I – nas causas em que há interesses de incapazes;
II – nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade;
III – nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.
No CPC de 2015, as situações em que prevista a intervenção se alteraram, prevendo-se, agora, nos arts. 176 e ss., que o Ministério Público atuará na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis, nos processos que envolvam:
I – interesse público ou social;
II – interesse de incapaz;
III – litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.
A legitimidade do MP para a abertura do inventário, questão de que aqui não se cuida, mas que auxilia na compreensão da sua legitimidade como custos legis, seja no CPC de 1973, seja no atual Código, depende da existência de herdeiros incapazes, o que, no presente inventário, inexiste.
Não havendo idosos ou incapazes como interessados, não há, em sede de inventário, interesse público subjacente ou mesmo direito indisponível. Aliás, as partes podem dispor de seus quinhões e inclusive renunciar a direitos sucessórios.
No entanto, na espécie, há a presença de testamento e as manifestações de última vontade, na forma dos arts. 1.126 do CPC/73 e 735, §2º, do CPC atual, exigem a participação do Ministério Público como custos legis.
A propósito:
Art. 1.126. Conclusos os autos, o juiz, ouvido o órgão do Ministério Público, mandará registrar, arquivar e cumprir o testamento, se lhe não achar vício externo, que o torne suspeito de nulidade ou falsidade.
Art. 735. Recebendo testamento cerrado, o juiz, se não achar vício externo que o torne suspeito de nulidade ou falsidade, o abrirá e mandará que o escrivão o leia em presença do apresentante.
(…)
§ 2º Depois de ouvido o Ministério Público, não havendo dúvidas a serem esclarecidas, o juiz mandará registrar, arquivar e cumprir o testamento.
Finalmente, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), racionalizando a atuação da instituição do Ministério Público, no art. 5º da Recomendação nº 16/2010 – édito que somente veio a ser revogado após a interposição do especial, isto pela Recomendação nº 34/2016 – recomendava ser desnecessária a intervenção ministerial na: VII – ação relativa às disposições de última vontade, sem interesse de incapazes, excetuada a aprovação, cumprimento e registro de testamento, ou que envolver reconhecimento de paternidade ou legado de alimentos.
Assim, a presença do Parquet e a sua legitimidade se justificam, desimportando a ausência de impugnação da decisão originalmente exarada em primeiro grau pelo recorrente, fato que não consubstancia preclusão para o ente ministerial.
Analiso, pois, o recurso especial.
A primeira das irresignações diz com a violação ao art. 544 do Código Civil por força da doação da nua propriedade de imóvel pelo de cujus à sua companheira nos idos de 1980, bem este que integraria, segundo o recurso especial, o patrimônio comum dos companheiros, pois adquirido na constância da união e que, assim, não poderia ser doado à Sra. Nara.
O segundo questionamento, que é o ponto central do recurso especial, situa-se em torno do quinhão a que faz jus a companheira tendo em vista o concurso com um filho comum e, ainda, outros seis filhos exclusivos do autor da herança.
Em relação à doação, tenho que não fora devidamente demonstrada a violação ao referido dispositivo de lei e, ainda, não se identifica o devido prequestionamento no acórdão recorrido.
A Colenda 7ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no tocante à doação, limitou-se a dizer que teria ela atendido aos ditames legais.
Não houve, em nenhum momento, o reconhecimento de que o bem em questão teria sido adquirido na constância da união ou mesmo que a parte disponível do autor da herança teria sido superada com a referida doação.
Nessa conjuntura, não identifico a presença dos necessários requisitos para o exame da afronta ao art. 544 do CCB.
Por outro lado, a legislação não proíbe a realização de doação entre os consortes, sejam eles unidos por casamento ou união estável, não se podendo do recurso conhecer no que respeita.
No tocante à concorrência na sucessão entre a companheira e os filhos do de cujus, denominada concorrência híbrida por Giselda Hironaka, o Ministério Público, no recurso especial, sustentou que, apesar de a união estável se assemelhar ao casamento, o legislador tratou de forma diferente os dois institutos notadamente em matéria sucessória.
Destacou que o artigo 1.790 do CC, ao tratar da sucessão entre os companheiros, estabeleceu que este participará da sucessão do outro somente quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável e, concorrendo com filhos comuns, terá direito à quota equivalente ao filho, e, concorrendo com filhos do falecido, tocar-lhe-á metade do que cada um receber.
Na ausência de previsão de concorrência híbrida, o MP sustentou que caberia a aplicação do inciso II do art. 1.790, reconhecendo à companheira o direito à metade do que receberam os filhos, e não do inciso I, em que receberia ela o mesmo que os descedentes, como o fizera o acórdão recorrido.
O aresto impugnado, sob a relatoria do e. Des. Jorge Luís Dall’Agnol, mantendo a decisão da lavra da Dra. Rosana Broglio Garbin, anotou, ao tratar do art. 1.790 do CCB:
A mesma norma jurídica dispõe, ainda que concorrendo com filhos comuns, a companheira tem direito a um quota igual ao dos herdeiros, deixando explícito que a condicionante é a existência de filhos comuns. Ressalto que na mencionada norma não consta a exigência de que a quota será igual quando concorre apenas com filhos comuns, daí porque basta haver filho comum para determinar o valor da quota que tocará à companheira.
Assim, a companheira Nara terá direito a uma quota igual a que tocará aos filhos do falecido, incidente sobre os bens adquiridos onerosamente na constância da união.
Feitos estes registros, destaco que a questão se mostrava controvertida na doutrina, especialmente porque a lei não previu expressamente esta situação, limitando-se a regular os efeitos da concorrência do companheiro com os seus descendentes ou apenas os descendentes do de cujus, e não com ambos.
Esta a redação do art. 1.790 do CCB:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Ocorre que o art. 1.790 do CCB foi declarado, incidentalmente, inconstitucional pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE nº 878.694, sendo determinada a aplicação ao regime sucessório na União Estável o quanto disposto no art. 1.829 do CCB acerca do regime sucessório no casamento.
A propósito, este o dispositivo constante no voto condutor do provimento do recurso extraordinario, da lavra do ilustre e operoso Ministro Luís Roberto Barroso:
(…) dou provimento ao recurso para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, por violar a igualdade entre as famílias, consagrada no art. 226 da CF/1988, bem como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso e da proteção deficiente. Como resultado, declaro o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.
O legislador no art. 1.829, de sua parte, reconheceu:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Necessário, ainda, destacar o quanto disposto no art. 1.832, a tratar do regime concorrencial entre o cônjuge (e agora o companheiro supérstite) e os descendentes:
Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
As razões trazidas no recurso especial restaram esvaziadas, notadamente aquelas condizentes com a diferenciação entre os regimes sucessórios no seio do casamento e da União Estável, no sentido da afronta ao art. 1.790, inciso II, do CCB, tendo em conta relevante fato superveniente à interposição consubstanciado na declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo.
O parâmetro legal em sede de sucessão legítima na União Estável, agora, é o do casamento, ou seja, dos arts. 1.829 e ss. do CCB.
O acórdão recorrido, todavia, reconhecera que a convivente, Sra. Nara, teria direito ao mesmo quinhão dos filhos do autor da herança em relação aos bens adquiridos na constância do casamento.
Esta Corte Superior, no entanto, interpretando o art 1.829, inciso I, do CCB, reconheceu, através da sua 2ª Seção, que a concorrência do cônjuge e, agora, do companheiro, no regime da comunhão parcial (que é o regime da União Estável), com os descendentes somente ocorrerá quando o falecido tenha deixado bens particulares e, ainda, sobre os referidos bens.
Esta é a ementa do precedente a ser seguido:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA.
1. Não se constata violação ao art. 535 do Código de Processo Civil quando a Corte de origem dirime, fundamentadamente, todas as questões que lhe foram submetidas. Havendo manifestação expressa acerca dos temas necessários à integral solução da lide, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte, fica afastada qualquer omissão, contradição ou obscuridade.
2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares.
3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus.
4. Recurso especial provido. (REsp 1368123/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/04/2015, DJe 08/06/2015)
Uma vez mais reafirmo os seus fundamentos:
17.3.– A terceira e última hipótese em que se exclui a concorrência foi disciplinada de forma um tanto quanto obscura, nos seguintes termos: “A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime (…) ; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”. Em termos mais simples o que se conclui é que, o cônjuge sobrevivente, quando casado sob o regime da comunhão parcial, não concorre com os descendentes do falecido, quando este não tenha deixado bens particulares.
A explicação a de que: se o de cujus não deixou bens particulares é porque todos os bens que integram a herança foram adquiridos no curso do casamento, de maneira que, para fins sucessórios, o cônjuge sobrevivente, embora casado sob o regime da comunhão parcial, estará, na prática, em situação idêntica àquele casado sob o regime da comunhão universal, o que atrai a incidência da regra prevista na primeira parte do inciso I, do artigo 1.829. A meação a que ele tem direito, nesse caso, tal como ocorreria naquele outro regime de bens, alcança todo o acervo patrimonial, sendo suficiente, por si mesma, para resguardar o cônjuge.
O cônjuge supérstite, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, apenas concorrerá com os descendentes se o falecido houver deixado bens particulares, ou seja, bens adquiridos antes do casamento ou que, mesmo adquiridos após essa data, não estejam por qualquer motivo, sujeitos à comunhão.
Admitindo-se que esteja autorizado o concurso, cumpre esclarecer em que termos, precisamente, ele deve ocorrer. Nesse ponto se apresentam três alternativas consistentes.
Em que pese não haja referência no acórdão recorrido acerca da existência de bens particulares, o próprio espólio reconhece, nas suas intervenções e, notadamente, à fl. 498/500 e-STJ, a existência desta categoria de bens, o que é suficiente para que aqui se declare que o juízo deverá limitar a sucessão da companheira aos bens particulares, excluindo-se os bens adquiridos na constância da União Estável, na forma da interpretação da legislação federal realizada por esta Corte Superior, a não ser que a ela atribuído por outra forma que não a sucessão legítima, sempre limitado à metade disponível do de cujus.
Cumpre, ainda, que se analise o quinhão devido à companheira, pois, em face da declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790, passara a reger a questão o art. 1.832 do CCB.
E aqui chamo a atenção dos eminentes pares acerca da necessidade de sobre ela nos debruçarmos, mesmo não tendo sido expressamente referido o art. 1.832 do CCB no recurso especial ou no acórdão recorrido, mas o fora, certamente, a questão relativa ao quinhão da convivente, cumprindo a esta Corte Superior, com base no princípio iura novit curia, aplicar o direito à espécie em face dos fatos narrados no acórdão recorrido, já que, de modo algum, exigiria a revisão da seara probatória.
Ademais, declarada a inconstitucionalidade do regime concorrencial previsto no CCB aplicado à união estável pelo art. 1.790 do CCB, que era objeto de específica discussão no especial e de prequestionamento no acórdão, fazendo, o STf, aplicar as normas da sucessão dentro do casamento, tornou-se incidente o art. 1.832 do CCB, que, assim, há de ser analisado, aplicando-se o direito à espécie e evitando-se a perenização da discussão, o que apenas investiria contra a efetividade do processo, a celeridade, a economia e a sua duração razoável.
Destaco, ainda, que não haveria sequer violação ao princípio da não surpresa, previsto no art. 10 do CCB, pois determinei a intimação das partes para manifestarem-se acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CCB e da atual aplicação do regime de casamento (fl. 494/495 e-STJ), sobrevindo manifestação do espólio e dos filhos herdeiros (fls. 498/500 e-STJ), além das razões do recorrente, mediante o Ministério Público Federal (fls. 501/502 e-STJ).
Referido dispositivo, ao disciplinar o quinhão do cônjuge (e agora do companheiro), estabelece caber à convivente supérstite quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, e que não poderá, a sua quota, ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
Do art. 1.832 do CCB extrai-se, pois, que a Sra. Nara concorrerá com os filhos do de cujus (concorrência aqui limitada aos bens particulares), e que o seu quinhão será o mesmo daqueles herdeiros que receberem por cabeça, ou seja, por direito próprio e não por representação, cumprindo definir se haverá ou não a reserva do mínimo de 1/4 da herança.
Esta a sua redação:
Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
A norma não deixa dúvidas acerca de sua interpretação quando há apenas descendentes exclusivos ou apenas descendentes comuns, aplicando-se a reserva apenas quando o cônjuge ou companheiro for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
Mais bem explicitando, resulta do art. 1.832 do CCB a inexistência de reserva de 1/4 da herança (bens particulares) ao cônjuge ou companheiro em havendo apenas herdeiros exclusivos, situação em que o consorte receberá o mesmo quinhão dos descendentes.
Em concorrendo com os seus descendentes (filhos comuns em número maior de 3) apenas, haverá a reserva de 1/4 da herança, restando aos filhos suceder 75% dos bens particulares.
No entanto, quando a concorrência do cônjuge ou companheiro se estabelece entre herdeiros comuns e exclusivos, é bastante controvertida na doutrina a aplicação da parte final do art. 1.832 do CCB.
A problemática, destaco, apenas tem fundamento quando há quatro ou mais descendentes a concorrem com o consorte supérstite, pois apenas nesta hipótese seria necessária a reserva de 1/4 da herança ao companheiro(a), já que, em concorrendo com três ou menos descendentes, todos os herdeiros restarão com no mínimo 1/4 da herança.
Estão em testilha dois interesses fundamentais. De um lado, o interesse do cônjuge/companheiro, garantindo-se-lhe um patamar mínimo sobre os bens objeto da herança, e, de outro lado, o dos filhos, que não poderão, tendo em vista as estatuições legais e constitucionais no sentido de sua igualdade, virem a receber patamares diferenciados sobre a herança do pai comum.
Flávio Tartuce, analisando a questão, elaborou um alentado apanhado doutrinário acerca das posições defendidas por insígnes civilistas brasileiros no que concerne à interpretação do enunciado normativo do art. 1.832 do Código Civil, tendo em vista a existência da já referida concorrência híbrida entre o cônjuge e os descendentes do de cujus, exclusivos e comuns.
Com base também na referida compilação, elaboro o presente quadro de modo a mais bem evidenciar os doutrinadores e as suas teses no tocante à questão ora controvertida:
Tese1
Caio Mario da Silva Pereira;
Christiano Cassettari;
Guilhemie Calmon Nogueira da Gama;
Gustavo René Nicolau;
Inacio de Carvalho Neto;
Jorge Fujita;
Luiz Paulo Vieira de Carvalho;
Maria Berenice Dias;
Maria Helena Diniz;
Maria Helena Braceiro Daneluzzi;
Mario Delgado;
Mario Roberto Carvalho de Faria;
Rodrigo da Cunha Pereira;
Rolf Madaleno;
Sebastiao Amorim;
Euclides de Oliveira;
Zeno Veloso; e
Flávio Tartuce. |
Concorrência com sucessão híbrida =
Inexistência de direito a reserva da quarta parte ao cônjuge, tratando-se todos os descendentes como exclusivos do autor da herança; |
Tese 2
Francisco José Cahali;
José Fernando Simão; e
Sílvio de Salvo Venosa |
Concorrência com sucessão híbrida =
Reserva da quarta parte ao cônjuge, tratando-se todos os descendentes como se fossem comuns. |
Tese 3
Eduardo Oliveira Leite
(Professor Titular da Universidade Federal do Paraná) |
Concorrência com sucessão híbrida =
Passo 1: divisão da herança de forma igualitária entre todos os filhos.
Passo 2: Fracionamento da herança em blocos; Bloco dos filhos comuns e Bloco dos filhos exclusivos.
Passo 3: reserva da quarta parte do bloco dos filhos comuns;
Passo 4: partilha do restante entre os filhos do bloco comum. |
Tese 4
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
(Professora Titular da USP) |
Concorrência com a sucessão híbrida =
Passo 1: Divisão da herança entre todos os filhos;
Passo 2: criação de 2 sub-heranças, uma dos filhos comuns e outra dos filhos exclusivos.
Passo 3: Divide-se a sub-herança dos filhos exclusivos entre os filhos pertencentes ao grupo e o consorte.
Passo 4: Divide-se a sub-herança dos filhos comuns entre os filhos comuns e o consorte.
Passo 5: O quinhão do cônjuge será a soma das duas quotas que a ele pertine em cada um dos grupos; |
Tese 5
Flávio Augusto Monteiro de Barros
(Ex-Magistrado e professor paulista) |
Concorrência com a sucessão híbrida =
Passo 1: Divisão da herança entre todos os filhos e o cônjuge/companheiro.
Passo 2: Apura-se qual seria o montante da reserva ao cônjuge, excluindo a parte dos filhos exclusivos.
Passo 3: Subtrai-se da herança a parte do cônjuge, dividindo o resultado pelo número de filhos (comuns e exclusivos). |
De modo a melhor visualizarmos as proposições doutrinárias, é importante aplicá-las a um exemplo que, em parte, espelha o presente caso concreto:
Herança (bens particulares): R$ 800.000,00 (valor hipotético);
Herdeiros: companheira; 1 filho comum; 6 filhos exclusivos;
Tese 1:
Divide-se a herança por igual entre os herdeiros, tratando-se todos os filhos como exclusivos. Atribui-se a cada um dos filhos e à companheira R$ 100.000,00 (não há reserva de 1/4 da herança para a consorte supérstite).
Tese 2:
Reserva-se 1/4 da herança para a consorte, tratando-se todos os filhos como se fossem comuns. Atribui-se para a companheira R$ 200.000,00, rateando-se o restante entre os 7 filhos: R$ 85.714,28 para cada.
Tese 3:
Divide-se a herança entre os filhos. A cada um dos 7 filhos respeitaria quinhão de R$ 114.285,71.
Criam-se dois blocos de filhos. Bloco dos filhos comuns (um filho): R$ 114.285,71; bloco dos filhos exclusivos (seis filhos): R$ 685.714,26.
Extrai-se a quarta parte do bloco dos filhos comuns, encontrando-se a herança do cônjuge/companheiro: R$ 114.285,71 x 1/4 = R$ 28.571,42. O remanescente é divido entre os integrantes do referido bloco dos filhos comuns (1 filho): R$ 85.714,28.
A regra aqui faria com que, no exemplo, os filhos restassem com valores diferentes, pois o comum restaria com R$ 85.714,28 e os exclusivos com R$ 114.285,71.
Tese 4:
Divide-se a herança entre todos os filhos. A cada um dos 7 filhos respeitaria quinhão de R$ 114.285,71.
Criam-se 2 sub-heranças, uma dos filhos comuns e outra dos filhos exclusivos.
Divide-se a sub-herança dos filhos exclusivos e comuns entre os filhos pertencentes ao grupo e o consorte.
Divisão na sub-herança dos filhos exclusivos: R$ 685.714,26 / 7 = R$ 97.959,18 para cada um dos filhos exclusivos e para a companheira.
Divisão na sub-herança dos filhos comuns: R$ 114.285,71 / 2 = R$ 57.142,85 para o filho comum e para a companheira.
O quinhão do cônjuge será a soma das duas quotas em cada sub-herança: R$ 155.102,03.
A regra aqui faria com que os filhos restassem com valores diferentes.
Tese 5:
Divide-se a herança entre todos os filhos e o cônjuge/companheiro. A cada um dos herdeiros respeitaria, assim, quinhão provisório de R$ 100.000,00.
A reserva de 1/4 ao consorte, então, seria calculada apenas dos valores devidos aos filhos comuns. Resultaria, que, em sendo apenas um filho comum, o quinhão do cônjuge seria de R$ 25.000,00 (1/4 de R$ 100.000,00).
Então, deveria ser subtraída da herança a parte do consorte, dividindo-se o restante entre todos os filhos (comuns e exclusivos), a quem restaria quinhão de R$ 110.714,28 (R$ 775.000,00 / 7).
De pronto, bem se extrai dos exemplos adiantados que algumas das teses propõem a realização de cálculos mais elaborados e a criação de blocos ou sub-heranças, mas acabam por resultar em valores desiguais entre os filhos, o que, entendo, resta vedado no sistema jurídico brasileiro pelo quanto disposto no art. 1.834 do CCB e no art. 227, §6º, da CF.
Este o teor das mencionadas normas:
CCB, Art. 1.834. Os descendentes da mesma classe têm os mesmos direitos à sucessão de seus ascendentes.
CF, Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(…)
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Por outro lado, nas proposições aludidas, quando não há violação à igualdade entre os quinhões do filhos, acaba-se por sugerir a realização de cálculos complexos que apenas trariam incerteza a momento bastante conturbado da vida dos herdeiros e possivelmente poderiam abrir espaço para longas discussões judiciais, desconsiderando, ainda, no sentir deste relator, a intenção do legislador ao restringir a reserva de 1/4 da herança à hipótese em que o supérstite é ascendente dos herdeiros.
O legislador fez questão de limitar a reserva apenas à concorrência entre o consorte e os herdeiros comuns, evitando reduzir o valor que seria atribuído aos herdeiros exclusivos do de cujus, porque o patrimônio amealhado pelo cônjuge sobrevivente, aí se integrando a sua meação e a herança (no mínimo de 1/4), em tese, virá a ser, um dia, herdado pelos filhos comuns.
Por isso, acabou-se alcançando um patamar maior para o consorte sobrevivente, retirando-se parcela dos filhos comuns, que, na ordem natural das coisas, virão a recebê-la quando do falecimento do genitor que sobrevivera.
Essa peculiaridade fora bem ressaltada por Luciano Camargo: “A razão dessa proteção ao cônjuge é resguardá-lo com maior parte do patrimônio familiar, sobretudo, nos casos em que ele se torna o chefe de família, devendo desempenhar os deveres de sustento e cuidado dos filhos comuns. E, sendo o cônjuge ascendente de todos os demais herdeiros, o patrimônio não deixará a família, pois, futuramente, os descendentes receberão pelo menos a parte legítima, quando da morte do ascendente comum.” (in Manual de Direito Civil – Sucessões – Ed. RT, 1ª ed. em e-book, 2014, Parte II, item 1.2.6)
A interpretação restritiva do enunciado normativo do art. 1.832 do CCB garante, a um só tempo, além do respeito a mens legis, uma divisão que atende à igualdade entre os herdeiros e, ainda, preserva o interesse dos filhos exclusivos sobre o patrimônio do ascendente falecido (que não será reduzido por força da reserva do ex-consorte do seu genitor), cujo direito, aliás, não pode ser combalido com base em interpretação extensiva de uma norma a restringir direitos de terceiros.
Analisadas, pois, as várias teses e posicionamentos doutrinários, concluo que a solução alvitrada pela maioria da doutrina brasileira há de ser endossada por esta Corte.
Aliás, esta fora a orientação adotada por aqueles que participaram da 5ª Jornada de Direito Civil do CJF, da qual adveio o enunciado 527: “Na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada a quarta parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida.”
Neste mesmo sentido, também conclui Carlos Roberto Gonçalves, com apoio na lição de Mário Luiz Delgado Régis (in Direito Civil Brasileiro, Ed. Saraiva, Vol. VII, 2ª ed., 2008, p. 158) :
Verifica-se, assim, que a primeira alternativa, ao assegurar a reserva da quarta parte somente quando todos os descendentes forem comuns, é a que melhor atende à mens legis, pois a intenção do legislador foi, sem dúvida, beneficiar o cônjuge, acarretando o menor prejuízo possível aos filhos.
Se todos os filhos são comuns, a reserva da quarta parte, ainda que implique eventual diminuição do quinhão dos filhos, não lhes acarretará maiores prejuízos, uma vez que o montante a maior destinado ao cônjuge futuramente reverterá aos filhos. Em princípio, os filhos comuns terminarão herdando parte dos bens que ficaram reservados ao cônjuge sobrevivente, como observa Mário Luiz Delgado Régis: “Quanto ao art. 1.832, deve-se considerar que, na concorrência com os descendentes, só existirá o direito do cônjuge à reserva da quarta parte da herança quando todos os descedentes forem comuns; e que, nas hipóteses de filiação híbrida, o quinhão do cônjuge e dos filhos, quanto aos bens particulares do de cujus, deve ser rigorosamente igual.”
Válida, ainda, a menção à precisa lição de Paulo Lôbo, que em tudo consona com o quanto afirmado (in Direito Civil, Ed. Saraiva, V. 6, 5ª ed., 2019, p. 154) :
“Na situação de conjugação de filhos exclusivos do de cujus e de filhos comuns dele e do cônjuge sobrevivente, este também fará jus a uma quota igual à de cada um dos filhos sobre os bens particulares deixados.
Os filhos, por sua vez, independentemente da origem, têm direito à quota igual não só sobre a meação dos bens comuns, mas também sobre os bens particulares deixados pelo de cujus.
Se este deixou três filhos exclusivos e um comum, ou o inverso, serão cinco quotas iguais sobre os bens particulares deixados, ou seja, uma quota do cônjuge sobrevivente e quatro dos filhos.
Nessa situação, o cônjuge sobrevivente não faz jus à quota mínima de um quarto.
A existência de apenas um filho exclusivo do de cujus é suficiente para impedir a incidência da garantia da quota mínima, pois esta é restrição de direito que não admite interpretação extensiva.
E se preservasse, por operação matemática, o valor da quota dos filhos exclusivos, a diminuição correspondente das quotas dos filhos comuns, para satisfazer a quota mínima do cônjuge, conduziria à discriminação de tratamento entre os filhos, em razão de suas origens, violando a vedação constitucional.
Portanto, apenas quando de filhos comuns se tratar, pode-se cogitar de quota mínima em favor do cônjuge sobrevivente.
Nas demais situações, sua quota é igual à de cada um dos filhos do de cujus.”
Por fim, não deixo de salientar a sempre pertinente lição do Professor Mairan Gonçalves Maia Júnior (in Sucessão legítima, Ed. RT, 1ª ed. em e-book, 2018, Parte III, item 11.1.4):
Na verdade, as regras que se pretendem harmonizar, simplesmente não são compatíveis. Está em questão a aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre os herdeiros de mesma classe, no caso os descendentes que, por força de preceito constitucional, hão de ser tratados de modo isonômico. Na sucessão significa que obrigatoriamente hão de receber o mesmo quinhão.
Porém, como compatibilizar o princípio da igualdade entre todos os descendentes com o preceito legal que determina a reserva de 25% (vinte e cinco por cento) ao cônjuge quando concorrer com descendentes seus?
A reserva de quota para o cônjuge constitui regra de aplicação especial pois, como já ressaltado, não atende ao princípio da igualdade entre os herdeiros chamados na mesma ordem de vocação sucessória. Por esse motivo, há de ser interpretada e aplicada como regra de exceção e, somente, na precisa hipótese abstratamente prevista pelo art. 1.832, ou seja, quando concorrer exclusivamente com descendentes comuns.
Na sucessão do cônjuge com descendência híbrida deve, simplesmente, ser aplicado o princípio da igualdade entre todos os herdeiros, destinando a mesma quota para cada um deles, sem reserva de cota mínima para o cônjuge sobrevivente.
Esse entendimento foi consagrado na V Jornada de Direito Civil, no enunciado 527, o qual estatuiu: “527 – Art. 1.832: Na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada a quarta parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida”.
Em resumo, conclui-se que a reserva de no mínimo 1/4 da herança em favor do consorte do falecido ocorrerá apenas quando concorra com seus próprios descendentes (e eles superem o número de 3).
Em qualquer outra hipótese de concurso com filhos exclusivos, ou comuns e exclusivos, não haverá a reserva de 1/4 da herança ao cônjuge ou companheiro sobrevivente.
É de rigor, por conseguinte, a parcial reforma do acórdão recorrido, reconhecendo-se que a recorrida, Sra. Nara Alaides de Oliveira, concorrerá com os demais herdeiros apenas sobre os bens particulares (e não sobre a totalidade dos bens do de cujus), recebendo, cada qual, companheira e filhos, em relação aos referidos bens particulares, o mesmo quinhão.
Ante o exposto, voto no sentido de dar parcial provimento ao recurso especial.
É o voto. – – /
Dados do processo:
STJ – REsp nº 1.617.650 – Rio Grande do Sul – 3ª Turma – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – DJ 01.07.2019