Artigo: A problemática da averbação da CDA nos registros públicos de imóveis – Por Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues

*Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues

“A inscrição é ato que tem por condão legitimar a origem dos créditos em favor da Fazenda Pública, tornando-os aptos à cobrança pela via executiva judicial.”
(RODRIGUES, 2016, p. 297).

De fato, não há execução sem título executivo, o qual, no caso dos débitos não tributários, a exemplo das receitas patrimoniais devidas à União (taxa de ocupação, foro e laudêmio), é formado com a inscrição do respectivo débito na Dívida Ativa da União (DAU).

Abordemos como exemplo, para o enfrentamento da problemática proposta, exatamente as receitas patrimoniais devidas à União em decorrência da utilização do bem público.

A competência para inscrição na DAU é exclusiva da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

A PGFN inscreve na DAU a receita patrimonial “inadimplida” a partir de informações recebidas da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), órgão que administra os bens da União.

Cabe à PGFN apurar a liquidez e certeza dos débitos que lhe são submetidos e representar a União na cobrança e execução da dívida inscrita.

Sobre essa apuração, é “importante salientar que somente poderão ser inscritos os débitos em que a Fazenda verificar estarem isentos de qualquer vício que importe na incerteza de sua exigibilidade, pois a inscrição se constitui no ato de controle administrativo de legalidade, a ser levado a efeito por esse órgão competente” (RODRIGUES, 2016, p. 298).

A Certidão de Dívida Ativa (CDA) é documento formado com os elementos constantes do Termo de Inscrição de Dívida Ativa. Trata-se do próprio título executivo.

A inscrição na DAU, por si só, gera diversas consequências à pessoa física ou jurídica inscrita. Uma delas é a impossibilidade de obtenção da Certidão Conjunta Negativa de Débitos Relativos a Tributos Federais e à Dívida Ativa da União em seu nome, o que a impede de participar de licitações, além de embaraçar diversas espécies de negócios jurídicos. Outra consequência é a retenção, pela Receita Federal, de eventual Imposto de Renda a receber. O débito aumenta vertiginosamente com a adição de juros, multas e demais encargos. Mas esses são apenas alguns dos exemplos do que podemos chamar de “sanções” administrativas diretas e indiretas.

Além dessas “sanções”, a Fazenda Pública dispõe, desde a entrada em vigor da Lei 12.767/2012, de outro mecanismo para compelir o devedor a pagar os débitos inscritos em seu nome, que é a possibilidade de protestar extrajudicialmente o título (CDA).

Referida lei foi questionada no Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Constitucionalidade 5.135/DF, tendo sido fixada a seguinte tese: “O protesto das Certidões de Dívida Ativa constituí mecanismo constitucional e legítimo por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política”.

Registre-se que o julgamento da ADI não foi unânime, tendo sido vencidos os ministros Edson Fachin, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, e não estando presentes no julgamento os ministros Gilmar Mendes e Teori Zavascki.

Essa ação teve seu trânsito em julgado certificado em 17/2/2018.

Interessante observar que o ministro Roberto Barroso, que exerceu a relatoria do caso, em seu voto, ao rechaçar um dos fundamentos da autora da referida ADI, em relação à violação, ou não, do “princípio da proporcionalidade” da medida, assim pontuou: “Em primeiro lugar, ao contrário do que alega a CNI, entendo que o protesto é, em regra, mecanismo que causa menor sacrifício ao contribuinte do que os demais instrumentos de cobrança disponíveis, em especial a Execução Fiscal. Por meio do protesto, exclui-se o risco de penhora de bens, renda e faturamento e de expropriação do patrimônio do devedor, assim como se dispensa o pagamento de diversos valores, como custas, honorários sucumbenciais, registro da distribuição da execução fiscal e possibilita-se a redução do encargo legal” (grifamos).

Extrai-se do entendimento acima que a “penhora de bens” é mecanismo que causa maior sacrifício ao contribuinte.

O que se dizer então da chamada averbação “pré-executória”? Seria mecanismo menos gravoso ao contribuinte do que o protesto? Seria uma medida “proporcional”?

Note-se que o “frenesi” por retirar as questões do Judiciário, na carona do fenômeno da desjudicialização, a despeito de não se tratar de questões consensuais (das quais somos plenamente favoráveis), ocorre a ponto de, recentemente, ter sido autorizada a averbação da CDA em todo e qualquer órgão de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, o que inclui, por óbvio, os serviços registrais imobiliários, tornando esses bens “indisponíveis”. É o que se convencionou chamar de averbação “pré-executória”.

Veja o que diz o artigo 20-B da Lei 10.522/2002, introduzido pela Lei 13.606/2018, no seu parágrafo 3º, inciso II:

“Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados […]

§ 3º Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:

I – comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e

II – averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis” (grifamos).

O artigo 20-E da referida lei dispõe que caberá à PGFN regulamentar a medida por meio da edição de atos complementares.

Tomamos ciência da Portaria PGFN 33, de 8 de fevereiro de 2018, publicada no DOU de 9/2/2018, que regulamenta o artigo 20-B. Comentaremos essa portaria durante o presente ensaio.

A justificativa para permitir essa constrição de cunho “inquisitório”, a nosso ver, busca respaldo na mesma conferida ao protesto da CDA, que é a tentativa de desjudicializar as questões que envolvem a cobrança de créditos fiscais, conferindo à Fazenda Pública mecanismos mais “coercitivos”, por assim dizer, para a cobrança judicial administrativa.

É que estudo do CNJ (2017, p. 109) aponta que cerca de 40% das ações que tramitam no país são executivos fiscais, portanto, sendo essa categoria de ação uma das grandes responsáveis pelo assoberbamento da máquina judiciária.

Verdade é que não são apenas os executivos “fiscais” que emperram a máquina judiciária. A fase de execução do processo cível, que deveria ser célere, acaba sendo mais morosa do que o processo de conhecimento.

Nessa linha de pensamento, apresenta-se mais uma solução paliativa, a nosso ver, e, arriscamos dizer, contrária à estrada da desjudicialização.

Se a penhora de bens já é algo gravoso, mesmo quando determinada judicialmente, imagine na sua forma extrajudicial.

Poder-se-ia sustentar o seguinte: não se trata de averbar a “penhora”, mas, sim, a CDA, a fim de conferir-lhe publicidade e tornar indisponível o bem.

Ocorre que há, pelo menos, duas interpretações possíveis do novo texto da lei. Uma é que a averbação atingirá todo o patrimônio do devedor que estiver sujeito a arresto ou penhora. A outra é que será eleito um ou mais bens para garantia e futura satisfação do crédito fazendário.

Se for um ou mais bens para garantia, o ato é de constrição, assemelhando-se, em princípio, ao arresto. Se forem todos os bens, podemos afirmar que se assemelha à indisponibilidade de bens prevista no artigo 7º da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992).

A primeira vincula os bens à satisfação do crédito. A segunda, não, dado que seu efeito imediato é impedir que os bens do acusado da prática do crime sejam alienados, o que configura grave restrição ao direito de propriedade.

O fato de a averbação “pré-executória” não ser uma penhora, em strictu sensu, não afasta seu caráter constritório, afinal, não estamos falando de uma averbação premonitória (artigo 828 do novo CPC), que tem por finalidade, tão somente, dar publicidade à existência da ação, a fim de que eventual alienação a terceiro presuma-se ter sido feita em fraude à execução. A medida viola direito líquido e certo do contribuinte, pois atenta contra, pelo menos, um princípio fundamental da Carta Magna: o de que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV).

E o que significa “devido processo legal”? Segundo Nelson Nery Junior (2012, p. 228), “trata-se do postulado fundamental do direito constitucional (gênero), do qual derivam todos os outros princípios (espécies). Genericamente, a cláusula due process se manifesta pela proteção à vida-liberdade-propriedade em sentido amplo. O texto foi inspirado nas emendas 5ª e 14ª à CF americana, e não indica apenas tutela processual, mas sim geral, bipartindo-se o princípio em devido processo legal substancial e processual”.

No sentido “processual” do princípio é que a doutrina brasileira vem interpretando a cláusula due process, cujas manifestações visam garantir aos litigantes: “Acesso à justiça (direito de ação e defesa), igualdade de tratamento, publicidade dos atos processuais, regularidades do procedimento, contraditório e ampla defesa, realização de provas, julgamento por juiz imparcial (natural e competente), julgamento de acordo com provas obtidas licitamente, fundamentações das decisões judiciais etc.” (NERY JUNIOR, 2012, p. 228).

A Portaria PGFN 33/2018, que regulamentou o artigo 22-B da Lei 10.522/2002, reza que o contribuinte poderá, em até 10 dias do recebimento da notificação de pagamento do débito inscrito na DAU, “apresentar Pedido de Revisão de Dívida Inscrita (PRDI)” nas hipóteses taxativamente previstas, ou seja, antes que se proceda à averbação pré-executória, além de outras medidas relacionadas a sanções e à cobrança administrativa.

Ocorre que o julgamento desse pedido de revisão, invariavelmente, não observará as garantias da cláusula due process, como o julgamento por um juiz imparcial.

A citada portaria permite, ainda, que o contribuinte, depois de notificado, ofereça bens por iniciativa própria e apresente impugnação, neste caso se averbada a CDA no registro de bem ou direito que lhe pertencer.

Sobre um dos efeitos da averbação “pré-executória”, qual seja o da “indisponibilidade de bens”, é bom que se tenha em mente o Provimento CG 13/12 da CGJSP, que instituiu a “Central de Indisponibilidade de Bens”.

Veja o que diz o seu artigo 2º:

“A Central de Indisponibilidade de Bens será constituída por Sistema de Banco de Dados Eletrônico (DBMS) que será alimentado com as ordens de indisponibilidade decretadas pelo Poder Judiciário e por órgãos da Administração Púbica, desde que autorizados em lei”.

Observe-se a previsão expressa de a central receber ordens de indisponibilidade decretadas pela administração pública, desde que autorizadas em lei. A disposição encaixa-se perfeitamente no caso sub examine.

Os notários e registradores de imóveis são obrigados a consultar a central, antes da prática de qualquer ato notarial ou registral que tenha por objeto bens imóveis ou direitos a eles relativos (exceto testamento).

Note-se, agora, uma das constrições causadas pela medida, conforme dá conta o parágrafo 1º do artigo 12 do citado provimento:

“No caso de procuração com poderes para alienação ou oneração de bens em que o outorgante esteja com seus bens atingidos por indisponibilidade, essa circunstância deverá ser expressamente consignada no instrumento, com destaque gráfico e a observação de tratar-se de negócio jurídico cuja eficácia está subordinada ao prévio cancelamento da indisponibilidade noticiada” (grifamos).

Trata-se de restrição a um dos direitos de propriedade, que é o de livremente dispor do bem (vide também o artigo 14, parágrafo 1º, do Provimento CG 39/2014 do CNJ).

A Ordem dos Advogados do Brasil já se pronunciou no sentido de que ajuizará uma ADI perante o STF por entender que o novo procedimento viola “as mais elementares garantias constitucionais inerentes ao Estado de Direito”.

A bem da verdade, o problema não está no executivo fiscal, mas, sim, na formação do título executivo. Tomando como exemplo nosso exemplo (sim, a redundância foi proposital), observe-se como são formadas as CDAs no caso das receitas patrimoniais oriundas da utilização dos bens da União.

A SPU possui um cadastro deficiente de parte significativa dos imóveis que administra, seja por não tê-los demarcado e incorporado regularmente ao patrimônio da União[1], seja por não manter atualizado, como deveria, o cadastro de seus ocupantes, em nome de quem lança a cobrança de taxa de ocupação, e de seus foreiros, em nome de quem lança a cobrança do foro.

O controle administrativo de legalidade dos atos não é atribuição somente da PFN, também o é da SPU, que tem o dever de observar princípios como o da irretroatividade da lei, na aferição da hipótese de incidência da receita patrimonial.

Declarar de ofício a decadência de créditos originados em receitas patrimoniais é dever da União, todavia é raro ser declarada. O que muitas vezes se vê é o lançamento dessas receitas, que, desde a sua constituição, encontram-se eivadas por vício insanável.

Aí está um excelente mecanismo de desjudicialização que não é utilizado, pois, se declarada de ofício a decadência, não haveria a necessidade de promover um executivo fiscal cuja probabilidade de êxito é pequena.

A prescrição é outro fenômeno de extinção do crédito não tributário, que raramente é declarada de ofício, o que resulta na judicialização da cobrança, repita-se, com baixa probabilidade de êxito.

O ponto central da questão, a nosso ver, é que a averbação “pré-executória” não trafega na estrada da desjudicialização, tendo em vista sua conflituosa disposição com princípios fundamentais de nossa Carta Magna, daí porque, inexoravelmente, caminha para a judicialização.

E, tomando por esteio a averbação da CDA formada a partir da inscrição de débitos de receitas patrimoniais na DAU, a situação fica ainda mais delicada, em nossa concepção, por causa do deficiente controle administrativo de legalidade.


[1] Para mais considerações a respeito, recomendamos a leitura do artigo: Súmula do STJ está na contramão dos atuais conceitos de registro de propriedade


Referências bibliográficas
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
REVISTA JUSTIÇA EM NÚMEROS 2017: ANO-BASE 2016. Brasília: Conselho Nacional de Justiça. 2017 – Anual.
RODRIGUES, Rodrigo Marcos Antonio. Curso de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos. 2. ed. São Paulo: Pillares, 2016.

Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues é advogado, professor, pós-graduado em Direito Notarial e Registral Imobiliário, presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da Ordem dos Advogados de Santos (SP) e autor do livro Curso de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos.

Fonte: ConJur | 12/04/2018.

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CSM/SP: Registro de imóveis – Desapropriação parcial de área rural – Aquisição originária da propriedade – Rodovia em área rural – Cabimento do georreferenciamento em cumprimento à Lei de Registros Públicos (artigos 176, § 1º, 3 “a”, 176, §§ 3º e 5º, e 225, § 3º) e ao princípio da especialidade objetiva – Recurso não provido, com observação.

Apelação nº 1001928-88.2017.8.26.0481

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1001928-88.2017.8.26.0481
Comarca: PRESIDENTE EPITÁCIO

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação nº 1001928-88.2017.8.26.0481

Registro: 2018.0000234926

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1001928-88.2017.8.26.0481, da Comarca de Presidente Epitácio, em que são partes é apelante CONCESSIONARIA AUTO RAPOSO TAVARES S/A – CART, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DE PRESIDENTE EPITÁCIO.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, com observação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), ARTUR MARQUES (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), EVARISTO DOS SANTOS(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E FERNANDO TORRES GARCIA(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 28 de março de 2018.

PINHEIRO FRANCO

CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR

Apelação nº 1001928-88.2017.8.26.0481

Apelante: CONCESSIONARIA AUTO RAPOSO TAVARES S/A – CART

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos de Presidente Epitácio

VOTO N.º 37.318

Registro de imóveis – Desapropriação parcial de área rural – Aquisição originária da propriedade – Rodovia em área rural – Cabimento do georreferenciamento em cumprimento à Lei de Registros Públicos (artigos 176, § 1º, 3 “a”, 176, §§ 3º e 5º, e 225, § 3º) e ao princípio da especialidade objetiva – Recurso não provido, com observação.

Trata-se de recurso de apelação interposto pela Concessionária Auto Raposo Tavares S.A. contra a r. sentença de fls. 159/161, que julgou procedente a dúvida suscitada pelo Sr. Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Presidente Epitácio mantendo a recusa do ingresso de carta de adjudicação em razão da ausência de georreferenciamento.

Sustenta o apelante cuidar-se de desapropriação de imóvel rural que passou a ser um trecho de rodovia não cabendo a exigência de georreferenciamento e sim o registro da carta de adjudicação (fls. 173/180).

A D. Procuradoria Geral da Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 202/205).

É o relatório.

A natureza judicial do título apresentado não impede sua qualificação registral quanto aos aspectos extrínsecos ou aqueles que não foram objeto de exame pela Autoridade Jurisdicional.

O item 119, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça é expresso acerca do dever do Oficial do Registro de Imóveis a tanto, como se constata de sua redação:

119. Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaçaos requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados eminstrumento público ou particular, quer em atos judiciais.

Essa questão é pacífica nos precedentes administrativos deste órgão colegiado, entre muitos, confira-se trecho do voto do Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, Corregedor Geral da Justiça à época, na apelação n. 0001561-55.2015.8.26.0383, j. 20.07.17:

A origem judicial do título não afasta a necessidade de sua qualificação registral, com intuito de se obstar qualquer violação ao princípio da continuidade (Lei 6.015/73, art. 195).

Nesse sentido, douto parecer da lavra do então Juiz Assessor desta Corregedoria Geral de Justiça, Álvaro Luiz Valery Mirra, lançado nos autos do processo n.º 2009/85.842, que, fazendo referência a importante precedente deste Colendo Conselho Superior da Magistratura (Apelação Cível n.º 31.881-0/1), aduz o que segue:

“De início, cumpre anotar, a propósito da matéria, que tanto esta Corregedoria Geral da Justiça quanto o Colendo Conselho Superior da Magistratura têm entendido imprescindível a observância dos princípios e regras de direito registral para o ingresso no fólio real – seja pela via de registro, seja pela via de averbação – de penhoras, arrestos e seqüestros de bens imóveis, mesmo considerando a origem judicial de referidos atos, tendo em conta a orientação tranquila nesta esfera administrativa segundo a qual a natureza judicial do título levado a registro ou a averbação não o exime da atividade de qualificação registral realizada pelo oficial registrador, sob o estrito ângulo da regularidade formal (Ap. Cív. n. 31.881-0/1)”.

A aquisição da propriedade imóvel por meio de desapropriação encerra forma originária de aquisição da propriedade.

Nesse sentido, o voto do Desembargador José Renato Nalini, Corregedor Geral da Justiça ao momento do julgamento da apelação n. 0001026-61.2011.8.26.0062, em 17/01/2013:

A desapropriação, amigável ou judicial, concluída extrajudicialmente, na via administrativa, ou por meio de processo litigioso, com a intervenção do Poder Judiciário, revela-se, sempre, um modo originário de aquisição da propriedade: inexiste um nexo causal entre o passado, o estado jurídico anterior, e a situação atual.

A propriedade adquirida, com o aperfeiçoamento da desapropriação, liberta-se de seus vínculos anteriores, desatrela-se dos títulos dominiais pretéritos, dos quais não deriva e com os quais não mantém ligação, tanto que não poderá ser reivindicada por terceiros e pelo expropriado (artigo 35 do Decreto-lei n.° 3.365/1941), salvo no caso de retrocessão.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também tem essa compreensão:

PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO N. 3/STJ. DESAPROPRIAÇÃO. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DE PROPRIEDADE. EXIGIBILIDADE DE TRIBUTOS ANTERIORES AO ATO DESAPROPRIATÓRIO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO ENTE EXPROPRIANTE. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. No caso em tela o recorrente exige do ente expropriante, em execução fiscal, os tributos (IPTU e Taxa de Limpeza Pública de Coleta de Resíduos Sólidos) incidentes sobre o imóvel desapropriado, derivados de fatos geradores ocorridos anteriormente ao ato expropriatório. 2. Considerando o período de ocorrência do fato gerador de tais tributos, e, levando-se em consideração que a desapropriação é ato de aquisição originária de propriedade, não há a transferência de responsabilidade tributária prevista no artigo 130 do CTN ao ente expropriante. 3. Recurso especial não provido. (REsp 1668058/ES, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/06/2017, DJe 14/06/2017).

A natureza originária da aquisição pela desapropriação não descaracteriza a submissão dessa situação jurídica à hipótese de desmembramento de imóvel rural, porquanto a área desapropriada, da ordem de 9.923,41 m2, foi destacada do imóvel matriculado sob o n. 6.797, com área total de 150,85 hectares.

O artigo 176, parágrafo 3º, da lei n. 6.015/73, dispõe:

§ 3º. Nos casos de desmembramento, parcelamento ouremembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alíneaa do item 3 do inciso II do § 1º será obtida a partir de memorialdescritivo, assinado por profissional habilitado e com a devidaAnotação de Responsabilidade Técnica ART, contendo ascoordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais,geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisãoposicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custosfinanceiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória daárea não exceda a quatro módulos fiscais.

Na mesma linha, o artigo 225, parágrafo 3º, da lei n. 6.015/73, prescreve:

§ 3º. Nos autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, a localização, os limites e as confrontações serão obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.

A interpretação teleológica das referidas disposições normativas permite a compreensão de sua incidência no caso da desapropriação de parcela de imóvel rural, notadamente pela repercussão no imóvel objeto da desapropriação parcial no aspecto da especialidade objetiva.

Nessa linha, há precedentes deste Conselho Superior da Magistratura, como se observa de extrato do voto do Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, Corregedor Geral da Justiça à época, na apelação n. 1002005-13.2016.8.26.0100, j. 25.11.16:

Também tem razão o Oficial em relação à exigência de descrição georreferenciada do imóvel desapropriado e sua certificação pelo INCRA.

Conforme precedentes recentes citados pelo Oficial, este Conselho tem posição firme no sentido de que a exigência formulada encontra respaldo nos artigos 176, §§ 3º e 5º, e 225, § 3º, ambos da Lei nº 6.015/73; artigo 9º, § 1º, do Decreto nº 4.449/02; e artigo 2º do Decreto nº 5.570/05. A propósito:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – CARTA DE SENTENÇA EXTRAÍDA DE AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO – IMÓVEL LOCALIZADO EM ÁREA RURAL – NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO DO INCRA DE QUE A POLIGONAL OBJETO DO MEMORIAL DESCRITIVO NÃO SE SOBREPÕE A NENHUMA OUTRA CONSTANTE DE SEU CADASTRO GEORREFERENCIADO E QUE O MEMORIAL ATENDE ÀS EXIGÊNCIAS TÉCNICAS – EXIGÊNCIA CORRETA APRESENTADA PELO OFICIAL, EM OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA ESPECIALIDADE OBJETIVA – SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO” (Apelação nº 0001532-10.2014.8.26.0037, Rel. Des. Elliot Akel, j. em 16/10/2014).

A Medida Provisória n. 700/2015, mencionada pela apelante, sequer havia sido editada quando da apresentação do título. Ele foi apresentado em 17 de setembro de 2015, ao passo que a medida provisória é de 08 de dezembro de 2015 (ressalte-se, aliás, que essa medida provisória nem mesmo foi reeditada; já foi revogada). Vigorando, entre nós, o princípio do tempus regit actum, descabe analisar o argumento.

A localização do imóvel é em área rural, pois compreendia imóvel dessa natureza; tampouco há indicação de situar-se em área urbana, assim definida pelo município. O fato de se cuidar de rodovia que cruza área rural não a transforma em área urbana.

Noutra quadra, no precedente acima referido (na apelação n. 1002005-13.2016.8.26.0100), no qual a apelante também era a ora recorrente, constou no voto convergente do Desembargador Ricardo Dip, então Presidente da Seção de Direito Público:

As exigências concernentes ao cadastro do imóvel desapropriado junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –Incra (“CCIR”) e a seu georreferenciamento são de todo pertinentes, porque a especialidade objetiva do imóvel tem apurar-se, segundo preceitua o direito posto (vide art. 176, § 1º, II, 1, a, e §§ 3º-5º, e art. 225, § 3º, da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e art. 22 da Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966), ainda que, como sucede in casu, haja aquisição originária: afinal, da circunstância de que, na desapropriação judicial, não se leve em conta a existência de direito anterior, não se extrai que o objeto do direito deva isentar-se de individuação secundum legem.

Não é possível, na amplitude campal da realidade das coisas, admitir um direito sobre coisa indiferenciada, porque seria o mesmo que admitir um direito sem objeto.

Portanto, compete definir a exata localização do imóvel conforme as coordenadas de seus vértices, consoante previsto na Lei de Registros Públicos.

De outra parte, a sentença judicial em ação de desapropriação não esta isenta da incidência das demais determinações legais para o ingresso do título no registro imobiliário.

A problemática envolvida não trata do princípio da continuidade, mas sim da especialidade objetiva; conforme os dispositivos normativos cogentes acima mencionados.

Compete a realização do georreferenciamento para o ingresso do título judicial atinente à desapropriação parcial de imóvel para implantação de rodovia, conforme os precedentes deste Conselho Superior da Magistratura.

Em razão da transmissão da propriedade por meio de desapropriação, da interpretação teleológica efetuada, bem como o destaque de área menor antes incluída em extensa área, faço observação da necessidade do georreferenciamento apenas da área desapropriada sem necessidade de sua efetivação para fins de apuração do remanescente da matrícula da qual será destacada.

Por todo o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação, com observação.

PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 04.05.2018 – SP)

Fonte: INR Publicações.

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