Registro de Imóveis – Qualificação negativa de título judicial – Decisão que determinou a averbação da existência de ação pauliana – Doação de parte ideal em favor das filhas – Insurgência do credor – Princípio da concentração dos atos registrais na matrícula – Sujeição ao art. 54 da Lei nº 13.097/15 – Recurso provido para determinar a averbação


  
 

Número do processo: 206386

Ano do processo: 2015

Número do parecer: 69

Ano do parecer: 2016

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 2015/206386

(69/2016-E)

Registro de Imóveis – Qualificação negativa de título judicial – Decisão que determinou a averbação da existência de ação pauliana – Doação de parte ideal em favor das filhas – Insurgência do credor – Princípio da concentração dos atos registrais na matrícula – Sujeição ao art. 54 da Lei nº 13.097/15 – Recurso provido para determinar a averbação pretendida.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça

A advogada SILVIA MALTA MANDARINO interpôs recurso insurgindo-se contra a sentença proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente que, ao julgar procedente a dúvida suscitada pelo D. Oficial Registrador de Vinhedo, manteve a qualificação negativa, impedindo o registro da existência de ação real ou reipersecutória (art. 167, I, 21 da Lei n° 6.015/73), justificando a recusa na (a) falta da petição inicial protocolada nos autos n° 1077493-08.2015 (22ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo); (b) no princípio da continuidade, vez que o imóvel objeto da matrícula n° 9.025 não pertence ao requerido WILSON ROBERTO D’OLIVEIRA VIVONE; (c) na ausência de certidão citação dos requeridos e (d) na irregularidade do requerimento, sendo necessária a assinatura do requerente (firma reconhecida).

Sustenta, a recorrente, que seus clientes JORGE GUEDES DE SOUSA e Outro, na condição de credores de WILSON ROBERTO D’OLIVEIRA VIVONE[1], foram prejudicados com a doação realizada em favor das filhas ROBERTA VIVOVE RODOVALHO, MARIA VIVONE LIMA e RENATA KOPCZYNSKI VIVONE (R-3 – matrícula n° 9.025), porque o negócio jurídico – objeto da ação pauliana – foi celebrado para fraudar credores e inutilizar o prosseguimento da execução, tendo em vista o esvaziamento patrimonial gerado pela alienação, a título gratuito, de bem suscetível de penhora, por força da decisão que desconsiderou a personalidade jurídica da sociedade executada (fl. 206) e, assim, permitiu a responsabilização do sócio, ora doador.

O Ministério Público se manifestou pela procedência da dúvida (fls.77/78).

Impugnação às fls. 81/87.

A MM. Juíza Corregedora Permanente acolheu as ponderações do D. Oficial do Registro de Imóveis e manteve a recusa à realização do ato registral (fls. 247).

A interessada interpôs apelação, reiterando as razões anteriormente expostas, pugnando pela reforma da r. sentença (fls. 251/260).

A D. Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 274/276).

É o relatório.

Necessário lançar uma observação sobre a natureza do ato registral, apesar do conceito atribuído quando da qualificação negativa do título judicial. A questão tem relevância na fixação da competência do órgão que irá analisar o recurso. O juízo de legalidade dos atos sujeitos a registro é feito pelo juiz corregedor permanente após suscitação de dúvida pelo oficial registrador ou pelo interessado (dúvida inversa) e a pretensão recursal devolve ao Colendo Conselho Superior da Magistratura a discussão sobre a aptidão do título quando da interposição da apelação. Contudo, a qualificação legal realizada pelo agente delegado não vincula a atuação do juiz e pode ocorrer, pela própria complexidade do debate, uma falha na apreciação dos documentos recepcionados na Serventia, gerando uma distorção no processo de subsunção entre os fatos e a norma prevista abstratamente na legislação. Foi o que sucedeu na hipótese, pois o título emitido pelo D. Juízo da 22ª Vara Cível do Foro Central, prenotado sob o n° 30.383, retrata o cabimento da averbação, à margem da matrícula n° 9.025, da existência de ação pauliana e, embora tenha irradiado uma ponta de dúvida no Oficial Registrador, não impede o conhecimento do recurso administrativo pela Egrégia Corregedoria, com fundamento no princípio da fungibilidade.

A advogada compareceu perante a unidade extrajudicial para apresentar decisão judicial (fl. 07), objetivando obter a averbação sobre a existência de ação anulatória instaurada após fracassada tentativa de penhora na fase de cumprimento de sentença, apesar da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade executada (fl. 206). O credor manejou a fase executiva até esbarrar na doação de fração ideal realizada pelo sócio em favor das próprias filhas, despertando o interesse pelo reconhecimento, nos próprios autos, da fraude à execução, o que seria o bastante para permitir a constrição do bem pela ineficácia da operação em relação o exequente.

A problemática surge porque as partes não conseguiram demonstrar a fraude à execução (art. 593 do CPC) e a solução conferida pelo juiz da execução, de reservar o debate nas vias ordinárias, privou o credor da penhora da fração ideal do imóvel, assim como da faculdade de formalizar a respectiva averbação, nos termos do art. 659, §4° do CPC.

A fraude à execução, segundo a doutrina, constitui ato atentatório à dignidade justiça, com sensível repercussão na efetividade do processo civil. A fraude atrapalha a realização do direito material através da via instrumental e a sua ocorrência impede, dificulta ou inutiliza a pretensão executiva, o que é depreciativo à função jurisdicional.

A alienação gratuita da fração ideal de imóvel realizada no curso da ação de despejo, com risco de insolvência, pode ensejar, em tese, o reconhecimento da ilicitude (incidentalmente) e, com isso, permitir o prosseguimento da fase de execução em face do terceiro, desconsiderando-se a eficácia da aquisição pelos donatários de má-fé (filhas do sócio da sociedade executada). Aliás, o professor ARAKEN DE ASSIS[2] advertiu que: “a cognição judicial, no exame do elemento insolvência para fins de fraude contra o processo executivo, se torna sumária, portanto, e é realizada no próprio processo em que a denúncia do credor se materializa. Exigir que o credor prove a inexistência de bens penhoráveis constitui exagero flagrante, provocando as dificuldades inerentes à prova negativa, a despeito de lhe tocar o ônus da prova”.

O D. Juiz da execução entendeu que a peculiar situação do imóvel, por envolver doação realizada por todos os condôminos, em favor das filhas do sócio da executada UNI CONSULT SERVIÇOS S/C LTDA, deveria ser solucionada em ação própria[3] (pauliana), no campo da invalidade do negócio jurídico[4], com a participação de todos os interessados e com amplitude dos efeitos subjetivos da coisa julgada, ocasião em que eventual anulação, no todo ou em parte, poderia resultar no cancelamento do registro e no restabelecimento do cenário anterior.

As causas de anulabilidade estão previstas no artigo 171 do Código Civil[5] e são relacionadas com a incapacidade relativa, vícios de consentimento e sociais, entre eles a fraude contra credores (art. 158 do CC). Diferentemente dos casos de nulidade (ato nulo), os negócios jurídicos anuláveis estão sujeitos a prazos decadenciais, sob pena de convalidação, sendo admitido que o vício detectado seja suprido pelas partes para o fim de sanear o defeito, confirmando-se o negócio jurídico. No âmbito do processo civil, somente os sujeitos legitimados e destinatários da proteção jurídica estão autorizados a arguir os vícios e o juiz não pode reconhecê-los de ofício.

O art. 182 do Código Civil reproduziu o art. 158, primeira parte, do CC/1916, para anunciar que “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam”. A sentença declaratória de nulidade/anulabilidade opera retroativamente (ex tunc) para invalidar o negócio desde sua origem, retornando as partes ao statu quo ante.

Quem consultar o processo vai entender que a contradita do credor tem como alvo a doação, feita pelo sócio, da parte ideal que seria alcançada pelo juiz da execução, após a desconsideração da personalidade jurídica. Assim, o juiz da ação anulatória (pauliana) deverá fixar os limites da sentença, abordando a extensão do decreto invalidatório. Daí entende-se que, se cabível a separação, a invalidação parcial do negócio jurídico não prejudicará a parte válida (Art. 184 do CC). A chamada nulidade parcial, corolário do princípio da conservação dos negócios jurídicos, pressupõe a separabilidade da parte maculada pela invalidade, desde que o defeito não atinja parte substancial, caso em que haverá perda total da validade. Assim, o fenômeno da redução do negócio jurídico viabiliza a separação da parte defeituosa, reduzindo-se à parte válida, com substrato na preponderância da manifestação de vontade, uma vez que, ao contrário, o negócio não subsistirá se a redução importar na conclusão de que as partes não teriam contratado se pudessem antever a invalidação parcial.

Ressalte-se, ainda, que eventual anulação da doação, ainda que sobre a parte ideal doada por WILSON ROBERTO D’OLIVEIRA VIVONE, não impedirá a penhora da respectiva fração objeto da invalidação judicial, embora não haja espaço para a expropriação, em hasta pública, do bem indivisível (condomínio).

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firme sobre o tema, cabendo citar os seguintes precedentes:

“PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. PENHORA DE IMÓVEL. BEM INDIVISÍVEL. DIVERSOS CONDÔMINOS. HASTA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. CLÁUSULA DE USUFRUTO VITALÍCIO.

1. A controvérsia dos autos cinge-se à possibilidade de levar à hasta pública bem indivisível em condomínio e com cláusula de usufruto vitalício.

2. O Tribunal a quo assentou que “a despeito da possibilidade de, em tese, ocorrer a alienação de bem indivisível em condomínio, assegurando-se aos demais a reserva dos respectivos quinhões, razão assiste à decisão recorrida. O bem de matrícula n° 46963 (fl. 22) é de propriedade de dez pessoas em condomínio, entre elas o executado, além de possuir cláusula de usufruto vitalício. Já o bem de matrícula n° 12.859 possui cinco proprietários, incluindo a esposa do executado, e também possui cláusula de usufruto vitalício. Ademais, não é possível aferir a divisibilidade dos bens. Assim, nas condições em questão, fere juízo de proporcionalidade que se proceda a alienação total do bem para garantir a dívida”.

3. Em execução, a fração ideal de bem indivisível pertencente a terceiro não pode ser levada à hasta pública, de modo que se submete à constrição judicial apenas as frações ideais de propriedade dos respectivos executados.

4. Precedentes: REsp 1.196.284/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 26.8.2010, DJe 16.9.2010; REsp 695.240/PR, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 13.5.2008, DJe 21.5.2008.

Agravo regimental improvido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.° 22.984/PR, relator Ministro Humberto Martins, julgado 10.04.2012)”.

“PROCESSUAL CIVIL. PENHORA DE BEM IMÓVEL DE PROPRIEDADE DE VÁRIOS IRMÃOS. BEM GRAVADO COM ÔNUS REAL DE USUFRUTO. VIOLAÇÃO AO ART 535, II, DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. POSSIBILIDADE DE PENHORA DA FRAÇÃO IDEAL DE PROPRIEDADE DO EXECUTADO. PRECEDENTES.

1. O Tribunal de origem se manifestou de forma clara e fundamentada no sentido de obstar a penhora do imóvel nomeado pela exequente, haja vista que o bem está gravado com ônus real (usufruto) e possui diversos proprietários, fatos que dificultariam a execução e, ainda, não satisfariam o direito do credor. O cabimento dos embargos de declaração está limitado às hipóteses de omissão, contradição ou obscuridade do julgado, cabendo, ainda, quando for necessária a correção de erro material ou premissa fática equivocada sobre a qual se embase o julgamento. Tais hipóteses não ocorreram no caso dos autos, pelo que não há que se falar em violação ao art. 535, II, do CPC.

2. Em que pese a dificuldade na alienação do bem imóvel em questão, é certo que a execução é realizada em beneficio do credor, nos termos do art. 612 do CPC. A indivisibilidade do bem e o fato de o imóvel estar gravado com ônus real, in casu, usufruto, não lhe retiram, por si sós, a possibilidade de penhora, eis que os arts. 184 do CTN e 30 da Lei n. 6.830/80 trazem previsão expressa de que os bens gravados com ônus real também respondem pelo pagamento do crédito tributário ou dívida ativa da Fazenda Pública.

3. Eventual arrematante deverá respeitar o ônus real que recai sobre o imóvel. Tal ônus, por óbvio, pode dificultar a alienação do bem, mas não pode justificar a recusa judicial da penhora, sobretudo porque a execução é feita no interesse do credor. Em casos tais qual o dos autos, pode interessar aos coproprietários a arrematação da parcela da nua propriedade que não lhes pertence.

4. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a alienação de bem indivisível não recairá sobre sua totalidade, mas apenas sobre a fração ideal de propriedade do executado, o que não se confunde com a alienação de bem de propriedade indivisível dos cônjuges, caso em que a meação do cônjuge alheio à execução, nos termos do art. 655-B, do CPC, recairá sobre o produto da alienação do bem.

5. Recurso especial parcialmente provido para reconhecer a possibilidade de penhora sobre a fração ideal do imóvel de propriedade do executado. (Recurso Especial n.° 1.232.074/RS, relator Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 22.02.2011)”.

Cabe reforçar o objetivo da averbação notícia (existência ação judicial pendente), por traduzir uma posição construída para impedir, com base no princípio da publicidade[6], a alegação de boa fé pelo adquirente no caso de alienação contestada pelo credor, o que é possível de ocorrer no interstício entre o inadimplemento da obrigação e o manejo da ação judicial (conhecimento ou executiva). A jurisprudência[7] interpreta com severidade para que os credores não percam o foco e obtenham do Juízo a providência (certidão) para averbar a ocorrência no fólio real, medida salutar visando eliminar os nefastos perigos de uma aquisição fraudulenta.

O título judicial[8] recepcionado pela Serventia (fl. 07) submete-se à qualificação registral como qualquer outro, o que não significa dizer que o agente delegado está autorizado a descumprir ordens ou determinações emitidas pelo juiz no exercício da função jurisdicional. O juízo de legalidade[9] exercido pelos titulares das serventias de Registro de Imóveis encontra justificativa na eficácia do registro, mas é preciso cuidado para encontrar os limites da qualificação negativa, não sendo permitido ao registrador avançar sobre o exame do mérito de uma decisão impositiva.

Houve, no caso, uma falha na avaliação do título, no que tange ao direito aplicável e, embora o Juiz tenha mencionado expressamente o art. 167, I, item 21 da Lei n° 6.105/73, o Oficial apresentou as exigências sem verificar o que está escrito no art. 54, IV da Lei n° 13.097 de 19 de janeiro de 2015[10]. Não há dúvida de que a ação pauliana não se enquadra no conceito de ação real ou reipersecutória, mas a questão perdeu importância com o advento da legislação[11] em comento, vigente à época da apresentação do título. De acordo com a nova sistemática, todas as ações e execuções juridicamente relevantes e com força para influenciar na caracterização de eventual fraude poderão constar na matrícula, com o fim de concentrar as informações úteis, com os benefícios da publicidade.

A primeira exigência, objeto da nota de devolução (protocolo n° 30.383 – 07/08/2015), está relacionada com a precariedade dos elementos documentais quando da apresentação do título. A petição inicial, juntada nos autos juntamente com a impugnação (fls. 88/100), serve ao propósito de ajudar na compreensão dos fatos, permitindo ao oficial conhecer os fundamentos que substanciam a pretensão do credor, porém, de acordo com a lei específica (Lei n° 13.097/15), a documentação não poderia ter sido exigida com fundamento no art. 167, I, 21 da Lei n° 6.015/73.

Igualmente, a exigência sobre a efetiva citação dos requeridos, nos termos do art. 285 do CPC, não se sustenta, data venia. Na verdade, o inciso IV do art. 54 da Lei n° 13.097/15 condiciona a averbação ao ajuizamento da ação revocatória, bastando apenas a existência de decisão judicial. Não bastasse, ficou provado, inequivocadamente, que os autores encontraram severas dificuldades para cumprir os mandados de citação pessoal, o que justificou a comunicação através do método subsidiário (citação ficta). O episódio, para ficar em apenas um dos detalhes da ação pauliana, é suficiente para demonstrar a impossibilidade no atendimento da exigência.

Ainda, o advogado constituído por procuração com poderes especiais tem autorização para ajuizar ação anulatória e adotar todas as providências conexas, inclusive provocar a Corregedoria Permanente, justificando as razões da divergência com a recusa do Oficial, com o fim de buscar a averbação de medida capaz de evitar a transmissão do direito real a terceiros de boa-fé, garantindo-se a própria utilidade de uma eventual sentença de procedência. A existência do mandato ad judicia permite afastar a quarta exigência, referente ao requerimento assinado pelo requerente, com firma reconhecida.

A continuidade[12] é um princípio do direito registral e, como tal, deverá ser respeitado para combater a incoerência e a ruptura do encadeamento de atos, por meio de uma inscrição inadvertida sem nenhuma ligação com o atual titular do domínio. Todavia, em certas hipóteses, evidencia-se a total inocorrência desse risco e embora o princípio jurídico tenha sido positivado (art. 195 da Lei n° 6.015/73) para abarcar todos os casos de alienação ou oneração do direito, fica difícil sustentar a sua incidência para vetar uma averbação meramente informativa. Conforme já salientado, a apresentante pretende obter providência que irá, com fundamento na concentração dos atos na matrícula, divulgar para o mundo (erga omnes) a existência de ação que poderá resultar no cancelamento total ou parcial do registro (R-3), como se houvesse uma verdadeira propriedade putativa de titularidade das donatárias (art. 1.245, §2° e art. 1.247, § único, ambos do Código Civil).

A matrícula é o núcleo do registro imobiliário e nela consta o histórico das operações e informações relevantes formalizadas ao longo do tempo e, conforme bem explica ADEMAR FIORANELLI[13], “respeitado o número de ordem, o Registrador caracteriza o imóvel, reporta-se ao registro aquisitivo e qualifica o proprietário, como determina o art. 176 da Lei 6.015/1973. Ao pé desta, transportam-se eventuais ônus existentes (art. 230 da Lei 6.015/1973) e passam-se a lançar todos os atos posteriores, numerados sequencialmente, sejam transmissões e onerações, em forma de registro, ou alterações, em forma de averbação”. Por outro lado, os estudos sobre o princípio da concentração revelam que, uma vez adotado o sistema tabular, deve ele ser completo. A matrícula (fólio real), em substituição às antigas transcrições de cunho pessoal e cronológico, deve ser tão completa (todos os atos oponíveis a terceiros) para dispensar, sempre que possível, outras diligências, garantindo-se o seu caráter satisfativo, sem comprometer a segurança jurídica.

O debate retrata uma tendência sobre a importância e o alcance da boa-fé objetiva, sendo que alguns juízes sinalizam por prestigiar a posição de terceiros adquirentes, mesmo diante de um negócio jurídico nulo ou anulável. O Código Civil Italiano (art. 1.445) e Código Português (o art. 291), reconhecem os efeitos retroativos da anulação e sua força expansiva, mas salvaguardam expressamente os direitos dos terceiros de boa-fé, permitindo-se, em nome da socialização do direito, a convalidação do ato nulo. Daí a especial importância dos mecanismos inerentes ao direito registral que, com base na publicidade, funcionam como verdadeiros antídotos para neutralizar, de forma absoluta, qualquer alegação de boa-fé, alegada contrariamente ao assento.

Portanto, as peculiaridades do caso concreto justificam levantar todos os obstáculos impostos pelo D. Oficial Registrador, para viabilizar o ingresso do título (decisão judicial) e a respectiva averbação sobre a existência da ação pauliana, com fundamento no art. 54, IV da Lei n° 13.097/15.

Nesses termos, o parecer que se submete à elevada consideração de Vossa Excelência é pelo recebimento da apelação como recurso administrativo, na forma do art. 246 do Código Judiciário Estadual, e pelo provimento do recurso, determinando-se a averbação.

Sub censura.

São Paulo, 15 de março de 2016.

Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, recebo a apelação como recurso administrativo e dou provimento ao recurso. Publique-se. São Paulo, 18 de março de 2016. (a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral da Justiça. Advogada: SILVIA MALTA MANDARINO, OAB/SP 112.063 (em causa própria).

Diário da Justiça Eletrônico de 28.03.2016

Decisão reproduzida na página 38 do Classificador II – 2016

Notas:

[1] Autos nº 0011211-29.2011.8.26.0008, 2ª Vara Cível, Foro Regional VIII – Tatuapé (fls.39/41) e Apelação nº 0011211.29.2011, 31ª Câmara de Direito Privado (fls.183/191).

[2] Manual do Processo de Execução, Ed. RT, 6ª Ed., pg. 395.

[3] Súmula n° 195 do STJ: “Em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores”.

[4] ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO advertiu que “o aparentemente insolúvel problema das nulidades está colocado de pernas para o ar. É preciso, em primeiro lugar, estabelecer, com clareza, quando um negócio existe, quando uma vez existente, vale, e quando uma vez existente e válido, ele passa a produzir efeitos” (Negócio Jurídico, Existência, Validade e Eficácia, p. 33).

[5] Art. 171 do Código Civil: “Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I – por incapacidade relativa do agente; II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores”.

[6] Ao citar trecho de acórdão do Conselho Supremo da Corte de Apelação do Distrito Federal, WALDEMAR LOUREIRO registrou: “Os registros públicos são arquivos oficiais, destinados a salvaguardar a autenticidade de direitos, cujos títulos ou atos jurídicos de que provêm, exarados nos competentes livros a cargo de oficiais privativos, seus respectivos assentos, consideram-se instrumentos específicos de publicidade, por eles transmitidos a terceiros, em garantia dos direitos com relação a seus titulares e à validade de seus efeitos, relativamente a terceiros, têmprecisamente em vista – ‘prevenir fraudes que a má-fé de uns, protegida pela clandestinidade, poderá preparar em prejuízo da boa-fé de outros'”(Registro da Propriedade Imóvel, Volume I, Quinta Edição, Revista Forense, Rio de Janeiro, 1957, p.56).

[7] Súmula 375 do STJ: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

[8] Decisão (ofício) proferida em 03/08/2015 pelo Juízo da 22ª Vara Cível, Foro Central, Comarca de São Paulo.

[9] “O conservador não deve exceder funções do seu ofício e invadir a esfera jurídica dos tribunais, devendo no exercício da sua função qualificadora respeitar uma linha própria de actuação, que está claramente definida segundo as regras e os princípios do sistema registral consagrado na lei” (ISABEL FERREIRA QUELHAS GERALDES, Impugnação das Decisões do Conservador nos Registros, Almedina, Coimbra, 2002, p. 47).

[10] Art. 54 da Lei n° 13.097/15: “Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil. Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

[11] “Em decorrência do princípio da inscrição, prevalece no registro o aforismo tempus regit actum, ou seja, quando da análise de um título deve-se aplicar as exigências legais contemporâneas ao registro, e não aquelas que vigoravam quando da lavratura do título apresentado a registro: “Todos os títulos (judiciais ou extrajudiciais) submetem-se à qualificação registrária com aplicação de princípios e normais formais da legislação específica, vigentes à época e no momento do seu ingresso no registro” (CSMSP Apelação n° 035623-0/4, 24/02/1997). (ALYNE YUMI KONNO Registro de Imóveis, Teoria e Prática, 2ª Edição, Memória Jurídica, 2010, pg. 44)

[12] “Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no ele de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subsequente e ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóveis inspira confiança ao público” (AFRÂNIO DE CARVALHO, Registro de Imóveis, Forense, Rio de Janeiro, 1976, 1ª Edição, p. 285)..

[13] Direito Notarial e Registral Avançado, Matrícula no Registro de Imóveis – Questões Práticas, Editoria RT, 2014, p. 295.

Fonte: INR Publicações.

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