Artigo – O pacto pós-nupcial no direito brasileiro – Por Bernardo Freitas Graciano e Letícia Franco Maculan Assumpção

*Bernardo Freitas Graciano e Letícia Franco Maculan Assumpção

O pacto antenupcial, ou contrato antenupcial, é um negócio jurídico bilateral de direito de família, sob a condição suspensiva da celebração do casamento, destinado a estabelecer regime de bens. O contrato antenupcial, também denominado pré-nupcial, existe há séculos. Pesquisadores do Departamento de Arqueologia da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, encontraram na Mesopotâmia, atual território do Iraque, uma tábua do século 4 a.C. com um detalhado acordo de casamento.

Nos termos do parágrafo único do artigo 1.640 do Código Civil brasileiro, o pacto antenupcial tem que ser feito por escritura pública, sendo sua lavratura, assim, de atribuição exclusiva do notário, conforme artigo 6º da Lei 8.935/94. É indispensável o pacto quando os noivos querem adotar o regime da comunhão universal, da participação final nos bens materiais, da separação convencional ou de qualquer outro regime, posto que a doutrina e a jurisprudência admitem a criação de regimes diversos daqueles previstos no Código Civil.

Muito já se escreveu sobre o pacto antenupcial, mas existe pacto pós-nupcial? O pacto pós-nupcial é um acordo que rege o novo regime de bens vigente no casamento já celebrado, que no Brasil poderá ser feito após autorização judicial específica para alteração do regime. Na lei brasileira não se encontra menção a tal ato jurídico. No entanto, a jurisprudência vem determinando sua lavratura quando há alteração do regime de bens no curso do casamento.

Nos Estados Unidos da América, já são comuns os postnups, que vêm sendo usados para reduzir o número de divórcios. Estatísticas da American Academy of Matrimonial Lawyers revelam que, em 1995, quando os pactos pós-nupciais começaram a ganhar popularidade, cada escritório de advocacia médio realizava aproximadamente cerca de dois contratos desses por ano. Mais recentemente, a média subiu para oito casos por ano.

No Brasil, essa tendência ao pacto pós-nupcial tem chamado a atenção. O Código de Processo Civil (CPC) alterou o padrão da imutabilidade do regime de bens no casamento, quebrando um paradigma que sempre vigorou no direito brasileiro. A possibilidade de alteração do regime de bens após o casamento trouxe autonomia aos indivíduos no âmbito das relações pessoais e patrimoniais, sendo relevante destacar os reflexos que a alteração produz no âmbito da relação jurídica do casal e de cada um dos cônjuges com terceiros.

O pacto pós-nupcial, com a alteração do regime de bens, estabelece parâmetros que permitem que o casal promova, depois do casamento, um novo arranjo patrimonial. As modificações que vêm ocorrendo no âmbito da família não permitem mais que as decisões sejam rígidas, porque as pessoas e as circunstâncias vão se modificando ao longo do tempo e, muitas das vezes, alterar o regime de bens é uma necessidade de determinados casais, inclusive para manterem os aspectos pessoais da relação.

No direito brasileiro, antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, a alteração de regime de bens na constância do casamento era vedada, mas, desde janeiro de 2003, quando entrou em vigor o Código Civil de 2002, pode haver essa mudança, mediante autorização judicial, em processo no qual devem figurar como partes ambos os cônjuges, que apresentarão pedido motivado e demonstrarão que a alteração não causará prejuízo a terceiros.

Qual a razão para a lavratura de pacto pós-nupcial se já é obrigatória decisão judicial autorizando a mudança do regime? Há vários motivos para se buscar um pacto pós-nupcial, devendo ser considerado que a longevidade da população faz com que as pessoas queiram adequar um casamento já celebrado há muitos anos ao momento em que estão vivendo, preservando o casamento e evitando conflitos, e assim protegendo essa instituição tão importante, que é a família.

Não deveria a própria decisão definir como seria o novo regime vigente a partir de então? Há acórdãos que dispensam a necessidade de lavratura de pacto, posto que a própria decisão judicial pode fixar os parâmetros do novo regime de bens.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em uma ação recente, definiu que o pacto pós-nupcial, em nossa legislação, depende de aprovação do Poder Judiciário para que seja válido. Entretanto, o que tem ocorrido na maioria dos casos é a mera autorização judicial para alteração, deixando para que as próprias partes definam o novo regime que entendem melhor, por meio de escritura pública. Também aqui se vê a tendência à desjudicialização, que mais recentemente vem sendo denominada extrajudicialização. Desse modo, o Judiciário vem atribuindo a notários e registradores soluções jurídicas a problemas dos cidadãos quando não há conflito.

Também poderia o pacto pós-nupcial corrigir um erro material existente no registro? Além da utilização nos casos de alteração no regime de bens, importante ressaltar a possibilidade de uso dos pactos pós-nupciais para casos de retificação de registro civil, em que houve erro material no registro específico. A Lei 12.100/09 veio ampliar o rol de erros passíveis de correção pela via administrativa: qualquer erro que não exija qualquer indagação para a constatação imediata da necessidade de sua correção passou a ser objeto da retificação administrativa.

Fato é que, apesar de não existir previsão legal do referido ato no direito brasileiro, o pacto pós-nupcial é uma realidade no Brasil e no mundo. O rumo do direito brasileiro tem sido no sentido de privilegiar a vontade e a segurança jurídica. Para isso, devem atuar em conjunto a população, o Poder Judiciário, os advogados, e os notários e registradores.

Fonte: CNB/CF – Jornal Estado de Minas | 06/02/2017.

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CSM/SP: Registro de Imóveis – Doação de imóvel do Município para a União – Necessidade de Escritura Pública – Inaplicabilidade do art. 74, do Decreto-Lei n. 9.760/46 – Necessidade, ainda, de pagamento dos emolumentos – Precedentes da Corregedoria Geral da Justiça – Recurso desprovido

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação nº 0020409-22.2014.8.26.0320

Registro: 2016.0000867032

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 0020409-22.2014.8.26.0320, da Comarca de Limeira, em que são partes é apelante UNIÃO, é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE LIMEIRA.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão:“Negaram provimento ao recurso. v.u..”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO, LUIZ ANTONIO DE GODOY, RICARDO DIP E SALLES ABREU.

São Paulo, 10 de novembro de 2016.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 0020409-22.2014.8.26.0320

Apelante: União do Estado de São Paulo

Apelado: 2º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Limeira

VOTO Nº 29.567

Registro de Imóveis – Doação de imóvel do Município para a União – Necessidade de Escritura Pública – Inaplicabilidade do art. 74, do Decreto-Lei n. 9.760/46 – Necessidade, ainda, de pagamento dos emolumentos – Precedentes da Corregedoria Geral da Justiça – Recurso desprovido.

Trata-se de apelação interposta em face de sentença que julgou procedente dúvida, impedindo o registro de certidão de contrato de doação, com encargo, feita pelo Município de Limeira para a União.

A recusa do registro deveu-se a duas exigências: necessidade de escritura pública e de recolhimento dos emolumentos.

Em seu recurso, a apelante alega, preliminarmente, a incompetência da Justiça Estadual, dado o interesse da União. No mérito, diz que o art. 74, do Decreto-Lei n. 9.760/46, permite a dispensa da escritura para a aquisição de imóveis pela União, que, por sua vez, é isenta do recolhimento de emolumentos.

A D. Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

Não há de se falar em incompetência para o julgamento da dúvida ou do recurso de apelação. A natureza administrativa do procedimento de dúvida afasta a aplicação do art. 109, I, da Constituição Federal, que, ao utilizar o termo “causas”, refere-se aos processos de caráter jurisdicional.

No mérito, ambas as exigências estão corretas.

Dispõe o art. 74, do Decreto-Lei 9.760/46:

Art. 74. Os termos, ajustes ou contratos relativos a imóveis da União, serão lavrados na repartição local ao S. P. U. e terão, para qualquer efeito, força de escritura pública, sendo isentos de publicação, para fins de seu registro pelo Tribunal de Contas.

Como se vê da leitura do dispositivo, ele trata, especificamente, de imóveis da União. Quer dizer: imóveis de propriedade da União. No caso presente, no entanto, não se trata de imóvel da União de sua propriedade -, mas, sim, de imóvel do Município de Limeira, doado à União.

A regra do art. 108 do Código Civil só admite exceções nos casos expressamente previstos em lei especial. E não se pode interpretar extensivamente uma regra excepcional, como quer fazer a União.

A escritura pública, portanto, era mesmo exigível.

Também o são os emolumentos. A Corregedoria Geral da Justiça tem entendimento firmado sobre o tema, conforme se colhe do parecer exarado no processo n. 24.770/2014, na gestão do Excelentíssimo Desembargador Corregedor Geral da Justiça, Hamilton Elliot Akel:

“A questão não é nova e a Corregedoria Geral da Justiça tem entendimento firmado sobre o tema. Dessa forma, permito-me repetir os termos do parecer proferido no processo CG 52.164/2004, que, por sua vez, seguiu a esteira do processo CG 382/2004:

‘Em que pesem os argumentos expendidos pela Procuradoria da Fazenda Nacional, não se verifica, no caso, razão jurídica para reconsideração da decisão proferida por esta Corregedoria Geral da Justiça no Processo CG nº 382/2004 ou para revisão do posicionamento aqui seguido na matéria.

Com efeito, nos termos do art. 236, § 2º, da Constituição de 1988, compete à lei federal estabelecer normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. As normas gerais em questão foram estabelecidas pela Lei nº 10.169/2000, segundo a qual ‘Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei’.

Assim, dispôs o legislador federal, no exercício da sua competência legislativa para edição de normas gerais, competir aos Estados e ao Distrito Federal, a disciplina concernente ao valor dos emolumentos.

No Estado de São Paulo, tal disciplina normativa sobreveio com a edição da Lei Estadual nº 11.331/2002, que estabeleceu, no art. 2º, serem contribuintes dos emolumentos as pessoas físicas ou jurídicas utilizadoras dos serviços ou da prática dos atos notariais e de registro, abrangendo, indiscriminadamente, pessoas jurídicas de direito público e privado.

Com relação à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e respectivas autarquias, trouxe a lei estadual regra específica, no art. 8º, caput, concernente à isenção do pagamento de parcelas dos emolumentos, destinadas ao Estado, à Carteira de Previdência das Serventias Não Oficializadas da Justiça do Estado, ao custeio dos atos gratuitos de registro civil e ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, mantendo, porém, a obrigação de tais entes pagarem a parcela de interesse das serventias extrajudiciais.

Registre-se que esse é o conjunto de normas atualmente em vigor, não se aplicando à matéria o Decreto-lei federal nº 1.537/1977.

A propósito, cumpre reafirmar, na esteira da decisão proferida por esta Corregedoria Geral da Justiça, com base no parecer da Meritíssima Juíza Auxiliar, Dra. Fátima Vilas Boas Cruz, ora em questão, que a remuneração dos serviços notariais e de registro tem natureza tributária, configurando taxa remuneratória de serviço público, de competência estadual. Bem por isso, somente o ente político competente para a imposição do tributo – no caso, o Estado de São Paulo – tem competência para estabelecer isenções, circunstância que afasta a incidência do art. 1º do aludido Decreto-lei federal nº 1.537/1977.

Merece transcrição, no ponto, o seguinte trecho do referido parecer da Meritíssima Juíza Auxiliar desta Corregedoria:

‘O artigo 1º do Decreto-lei nº 1.537/77 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, uma vez que afronta diretamente o princípio federativo, ao instituir isenção sobre tributo estadual.

A União somente pode estabelecer regras gerais sobre os emolumentos devidos a título de prestação de serviço público, o que foi feito pela Lei nº 10.169/00, mas jamais está autorizada a decretar isenções sobre tributo estadual.

Nesse sentido:

‘À União, ao Estado-membro e ao Distrito Federal é conferida competência para legislar concorrentemente sobre custas dos serviços forenses, restringindo-se a competência da União, no âmbito dessa legislação concorrente, ao estabelecimento de normas gerais, certo que, inexistindo tais normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades’ (Adin 1624/MG, 08/05/03).

A lei estadual de nº 11.331/02 estabeleceu isenção à União apenas quanto ao pagamento das parcelas dos emolumentos destinados ao Estado, à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado, ao custeio dos atos gratuitos de registro civil e ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, mas não a isentou quanto ao pagamento da remuneração dos serviços das serventias extrajudiciais prestados.

Como foi decidido na Adin nº 2.301-2, RS, citando a lição de Roque Antonio Carraza: ‘as leis isentivas não devem se ocupar de hipóteses estranhas à regra matriz do tributo, somente podendo alcançar fatos que, em princípio, estão dentro do campo tributário da pessoa política que as edita. Só se pode isentar o que se pode tributar. Quando não há incidência possível (porque a Constituição não a admite), não há espaço para a isenção.”

Corretas as duas exigências, pelo meu voto, nega-se provimento à apelação.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 06.02.2017 – SP)

Fonte: INR Publicações – DJe/SP | 06/02/2017.

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CSM/SP: Registro Civil de Pessoas Jurídicas – Constituição de filial – Expansão das atividades da recorrente para nova localidade – Necessidade de nova inscrição dos atos constitutivos, em atenção à circunstância territorial dos Oficiais de Registro – Pessoa jurídica que, ao lado de serviços religiosos, desenvolve, sem finalidade lucro, outras atividades, algumas delas de natureza econômica – Interessada que não se dedica exclusivamente ao culto religioso e à liturgia – Exclusão de sua qualificação jurídica como organização religiosa – Conformação que se ajusta à figura da associação – Estatuto lacunoso quanto ao prazo de antecedência mínima para fins de convocação de assembleia geral – Ofensa às regras dos arts. 54, V, e 60 do CC – Juízo negativo de qualificação registral confirmado – Procedência da dúvida – Recurso desprovido.

ACÓRDÃOS

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação nº 1023847-89.2014.8.26.0562

Registro: 2016.0000913474

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1023847-89.2014.8.26.0562, da Comarca de Santos, em que são partes é apelante IGREJA APOSTÓLICA FONTE DA VIDA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURIDICA DE SANTOS.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão:“Negaram provimento ao recurso de apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO, LUIZ ANTONIO DE GODOY, RICARDO DIP E SALLES ABREU.

São Paulo, 10 de novembro de 2016.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1023847-89.2014.8.26.0562

Apelante: IGREJA APOSTÓLICA FONTE DA VIDA

Apelado: Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Juridica de Santos

VOTO Nº 29.576

Registro Civil de Pessoas Jurídicas – Constituição de filial – Expansão das atividades da recorrente para nova localidade – Necessidade de nova inscrição dos atos constitutivos, em atenção à circunstância territorial dos Oficiais de Registro – Pessoa jurídica que, ao lado de serviços religiosos, desenvolve, sem finalidade lucro, outras atividades, algumas delas de natureza econômica – Interessada que não se dedica exclusivamente ao culto religioso e à liturgia – Exclusão de sua qualificação jurídica como organização religiosa – Conformação que se ajusta à figura da associação – Estatuto lacunoso quanto ao prazo de antecedência mínima para fins de convocação de assembleia geral – Ofensa às regras dos arts. 54, V, e 60 do CC – Juízo negativo de qualificação registral confirmado – Procedência da dúvida – Recurso desprovido.

Inconformada com a r. sentença que julgou a dúvida procedente [1], a recorrente, interessada, interpôs apelação, invocando a liberdade religiosa, o princípio da legalidade e precedentes do E. STF, com vistas à obtenção de ordem de inscrição de seus atos constitutivos [2], recusada, porém, pelo Oficial de Registro, que, ao afastar sua qualidade de organização religiosa, compreendendo-a como uma associação, exigiu ajustes no seu estatuto social, que deveria dispor a respeito do prazo de antecedência mínima para convocação de assembleia geral, considerando as regras positivadas nos arts. 54, V, e 60 do CC, a serem interpretadas em conjunto [3].

Uma vez recebido o recurso em seu duplo efeito [4], e após parecer da Procuradoria Geral da Justiça pelo desprovimento da apelação [5], os autos, por força do v. acórdão proferido pela E. 3.ª Câmara de Direito Privado deste Tribunal, que então se orientou pela questão preliminar levantada pelo Ministério Público, foram redistribuídos para este C. CSM [6].

É o relatório.

A interessada, ora recorrente, apresentando-se como organização religiosa, busca o registro de seus atos constitutivos, então inscritos originariamente no 2.º Tabelionato de Protesto e Registro de Pessoas Jurídicas, Títulos e Documentos de Goiânia[7], tendo em vista a expansão de suas atividades, mediante abertura de filial na cidade de Santos, portanto, em circunscrição territorial diversa da do Registro Civil de Pessoas Jurídicas de sua sede.

Nada obstante necessária e justificável a providência perseguida em consideração às exigências de publicidade, mas porque também encontra fundamento na norma do art. 1.000, caput, do CC [8], a ser aplicada por analogia , impõe ratificar a desqualificação registral.

As organizações religiosas, de acordo com o inc. IV do art. 44 do CC, introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela Lei n.º 10.825, de 22 de dezembro de 2003, são, é certo, pessoas jurídicas de direito privado.

Em harmonia com as normas extraídas dos arts. 5.º, VI, e 19, I, da Carta de 1988 [9], o § 1.º do art. 44 do CC, estabelece:

Art. 44. (…)

§ 1º. São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, quando comentam, no que ora interessa, as modificações resultantes da Lei n.º 10.825/2003, assinalam:

Com a alteração, as igrejas deixaram de ser simples entidades de classe de futebol ou outras organizações não religiosas e passaram a figurar como pessoas jurídicas de direito privado. A medida protege a autonomia das organizações religiosas, pois garante a liberdade de criação, organização, estruturação interna e funcionamento, vedada a ingerência do poder público, como destaca o parágrafo primeiro. [10] (grifei)

Segundo lição de Francisco Amaral, as organizações religiosas abrangem “as igrejas, as ordens monásticas, as congregações religiosas, as irmandades, os centros dos variados cultos etc.” [11] Ao delas tratar, Paulo Lôbo anota, com argúcia, suas características peculiares e regência própria:

As organizações religiosas são pessoas jurídicas, quando regularmente registradas.A lei confere inteira liberdade de constituição e organização, significando que não necessitam ter a forma de associação civil, nem de associados. Basta o ato de fundação ou de declaração de sua existência, com ou sem bens materiais, pois a comunidade religiosa caracterizase pelo fluxo constante de fiéis, que nela ingressam ou se retiram livremente, sem qualquer ato formal de associação ou retirada. Por sua natureza, a organização religiosa não pode ter finalidade econômica, nem ter seus haveres sob domínio, posse ou controle real de pessoas que a integrem. …

A CF, art. 5º, VI, assegura a liberdade de exercício de cultos religiosos e garante, na forma da lei, “a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Vê-se que a liberdade de organização religiosa está limitada às finalidades de culto e liturgia. Somente para esses fins pode ser considerada organização religiosa e assim registrada. Se a comunidade religiosa desenvolve outras atividades, de caráter econômico, como instituições educacionais ou empresariais, estas não se consideram incluídas no conceito de “organizações religiosas” para os fins da Constituição e do CC, pois não destinadas diretamente para culto ou liturgia. Essas outras atividades deverão ser organizadas sob outras formas de personalidade jurídica (…), ainda que seus resultados econômicos sejam voltados para dar sustentação a projetos desenvolvidos pela respectiva comunidade religiosa. [12] (grifei)

Dentro desse contexto, convém apurar, no caso, com vistas à incidência (ou não) da regra do § 1.º do art. 44 do CC e, especialmente, à tutela da liberdade e autonomia consagradas nessa norma protetiva, se a recorrente, para os fins legais, marcadamente para efeito de inscrição de seus atos constitutivos no registro civil de pessoas jurídicas, qualifica-se como organização religiosa.

A propósito, com amparo nas considerações acima desenvolvidas, a E. CGJ, no parecer n.º 26/13-E, aprovado pelo Des. José Renato Nalini, em 21 de janeiro de 2013, nos autos do processo n.º 6.477/2012, sublinhou que a autonomia e a liberdade reconhecidas às organizações religiosas não são infensas ao controle de legalidade de seu registro; não desautorizam, por conseguinte, sindicância direcionada à fiscalização do respeito ao prescrito pela ordem jurídica.

Socorreu-se, inclusive, na ocasião, do enunciado n.º 143, aprovado na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, vazado nos termos que seguem:

143 Art. 44: A liberdade de funcionamento das organizações religiosas não afasta o controle de legalidade e legitimidade constitucional de seu registro, nem a possibilidade de reexame, pelo Judiciário, da compatibilidade de seus atos com a lei e com seus estatutos. (grifei)

Nessa linha, impõe reconhecer a descaracterização da recorrente como organização religiosa, em atenção ao conteúdo do estatuto levado a registro, ao objeto social nele especificado, ao teor de seu art. 3.º e, principalmente, das alíneas d e e e dos §§ 1.º e 2.º de seu art. 4.º [13]. Antes, de fato, ao também desenvolver atividades econômicas, ao dirigir-se a práticas educacionais e culturais, então sem finalidade de lucro, qualifica-se como associação.

Ao voltar-se, igualmente ainda que a pretexto de fomentar suas atividades religiosas, ao estabelecimento de escolas e faculdades não confessionais, à promoção de cursos profissionalizantes e outras iniciativas direcionadas ao incremento de políticas sociais básicas de saúde, recreação, esporte, cultura e lazer, a recorrente desnaturou-se como organização religiosa; distanciou-se da melhor compreensão a ser conferida a essa espécie de pessoa jurídica de direito privado.

A recorrente assumiu a condição de associação, ao entregar-se à prestação de serviços, ao desenvolvimento de atividades econômicas (malgrado sem finalidade de lucro, sem fins econômicos) estranhas às religiosas, nada obstante visando ao alcance de seus fins ideais, estatutários, precipuamente (mas não exclusivamente) religiosos, consoante seu estatuto social.

Ora, não se dedica apenas ao culto, à liturgia, e, assim, não se beneficia da liberdade e informalidade positivadas no § 1.º do art. 44 do CC, em suma, da desregulamentação advinda da Lei n.º 10.825/2003; não se liberta, enfim, das regras próprias das associações, das exigências que lhes são típicas, impostas pela legislação civil. E para essa conclusão, desimportante a denominação atribuída à recorrente pelo seus atos constitutivos.

Esse entendimento, é oportuno frisar, foi prestigiado recentemente pela E. CGJ deste Tribunal, por ocasião da aprovação do parecer n.º 15/14-E, nos autos do processo n.º 147.741/2013, pelo Des. Hamilton Elliot Akel, em 30.1.2014.

Com auxílio do escólio de Pontes de Miranda, lá se destacou: as pessoas jurídicas que, ao lado das atividades religiosas, dedicam-se, sem fins econômicos, à prestação de serviços educacionais, culturais, recreativos, esportivos, entre outros, não se encaixam, para os fins do § 1.º do art. 44 do CC, no conceito de organizações religiosas, submetendo-se, por conseguinte, ao regime jurídico das associações.

Não interfere, nesse entendimento, a compreensão larga do E. STF sobre a imunidade tributária dos templos de qualquerculto, tratada no art. 150, VI, b, da CF, no sentido de contemplar não somente os prédios onde desenvolvidas as atividades religiosas (igreja, convento, claustros, sinagoga, mesquita etc) e suas dependências anexas (casas paroquiais, residências de pastor, casas de rabinos, área destinada ao estacionamento de veículos dos fiéis etc), mas também o patrimônio, a renda e os serviços que guardam relação com as finalidades essenciais e o funcionamento dos cultos religiosos [14].

A interpretação da Corte Suprema sobre a amplitude da limitação constitucional ao poder estatal de tributar não repercute na identificação, na conceituação da pessoa jurídica como organização religiosa ou associação. A imunidade tributária, por outro lado, não exige a qualificação da pessoa jurídica como organização religiosa.

O patrimônio, as rendas e os serviços relacionados com atividades religiosas, necessários ao seu desenvolvimento, ainda que assumido por uma associação (assim considerada porque, sem fins econômicos, sem finalidade lucrativa, dedica-se também a atividades estranhas aos serviços religiosos, destes, então, desatreladas), serão, do mesmo modo, imunes à incidência de impostos.

Vale dizer: a imunidade tributária aqui discutida, garantia constitucional em benefício da liberdade religiosa, ao proibir o exercício da competência tributária no âmbito material autorizado pela CF, definindo, em resumo, hipóteses de não tributação sobre situações previamente indicadas pela Carta Maior, pode favorecer tanto uma organização religiosa como uma associação que, entre outras atividades sem fins econômicos, também se entrega ao culto e à liturgia religiosos.

Em outras palavras: não é privativa de organizações religiosas, a descartar qualquer associação entre a compreensão da Corte Suprema, interpretando de forma extensiva, ampla, a regra de imunidade tributária, e a conceituação daquelas. Aliás, a condição de organização religiosa sequer é suficiente à aplicação da regra imunizante, tanto que, consoante o E. STF, admitida a cobrança de IPTU incidente sobre bem imóvel pertencente a instituição eclesiástica, caso não relacionado com finalidade essencial aos serviços religiosos [15].

Em contrapartida, as rendas auferidas por associação que tem, entre outros, fins religiosos, mediante remunerada prestação de serviços, locações de bens ou, por exemplo, aplicações financeiras, em atividades lícitas, estranhas, entretanto, aos serviços religiosos, mas preordenadas ao seu funcionamento e desenvolvimento, serão imunes a impostos, isto é, a regra imunizante favorecerá aquela pessoa jurídica, se não configurada ofensa ao princípio da livre concorrência, embora seu objeto social vá além do estreito âmbito conceitual das organizações religiosas. [16]

Assim sendo, reconhecida a condição de associação da apelante, justifica-se a confirmação do juízo negativo de qualificação registral. A omissão do estatuto social quanto ao prazo de antecedência mínima para convocação de assembleia geral[17] obsta, de fato, a inscrição requerida, por força do princípio da legalidade.

A lacuna constatada contraria a norma imperativa, democratizante e afinada com o princípio da transparência, extraída do art. 54, V, do CC, a ser compreendida em sintonia com a plasmada no art. 60, também do CC.

A primeira dessas regras dispõe que o estatuto das associações, sob pena de nulidade, conterá “o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos”, enquanto a outra prevê que “a convocação dos órgãos deliberativos far-se-á na forma do estatuto, garantido a 1/5 (um quinto) dos associados o direito de promovê-la”, tudo, in concreto, a prestigiar a questionada desqualificação registral, ratificada pelo MM Juiz Corregedor Permanente.

Nesse sentido se posicionou a E. CGJ desta Corte, no parecer n.º 125/11-E, aprovado, em 31.3.2011, pelo Des. Maurício Vidigal, nos autos do processo n.º 130.064/2010, onde restou assentado o caráter cogente da norma do art. 60, destinada a “eliminar eventual arbítrio dos dirigentes da associação a respeito da forma de convocação, impondo que sejam observadas as regras estatutárias previamente estabelecidas.”

Isto posto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso de apelação.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

1 Fls. 676-677 e 686.

2 Fls. 688-699.

3 Fls. 1-5.

4 Fls. 704, item 1.

5 Fls. 710-714 e 730.

6 Fls. 720-721 e 726.

7 Fls. 18-20.

8 Art. 1.000.A sociedade simples que instituir sucursal, filial ou agência na circunscrição de outro Registro Civil das Pessoas Jurídicas, neste deverá também inscrevê-la, com prova da inscrição originária.

9 Art. 5.º. (…): VI é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Art. 19.É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (…).

10 Código Civil interpretado e conforme a Constituição da República: parte geral e obrigações. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 118. v. I.

11 Direito Civil: introdução. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 295

12 Direito Civil: parte geral. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 186-187.

13 Fls. 49-51 e 185-187.

14 RE n.º 325.822-2/SP, rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 18.2.2002; RE n.º 578.562-9/BA, rel. Min. Eros Grau, j. 21.5.2008; Ag. Reg. no AI n.º 690.712-8/RJ, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23.6.2009.

15 Ag. Reg. no RE n.º 604.390/SP, rel. Min. Dias Toffoli, j. 7.2.2012.

16 Sobre o tema, cf. Roque Antonio Carrazza, in Curso de Direito Constitucional Tributário, 29.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 861-866.

17 Fls. 59-61 e 195-197. (DJe de 31.01.2017 – SP)

Fonte: INR Publicações – DJe/SP | 06/02/2017.

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