Artigo: Separação de fato e a perda da qualidade de herdeiro (parte 1) – Por José Fernando Simão


*José Fernando Simão

A questão da qualidade sucessória do cônjuge tem sido objeto de grandes controvérsias em sede doutrinária. Isso porque a redação do artigo 1.830 do Código Civil não é imune a críticas:

“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.

A utilização de requisitos como a separação de fato e a culpa geram grandes embates jurídicos e são de todo criticáveis.

Recentemente, após o 1º Encontro Estadual de Juízes da Família e Sucessões do Estado de São Paulo[1], foram publicados seus diversos enunciados, entre os quais os de número 31 e 32. Ambos cuidam de interpretar o artigo 1830 do Código Civil.

“32. O direito sucessório do cônjuge sobrevivente, separado de fato até dois anos, previsto no art. 1.830 do Código Civil, cessa se, antes desse prazo de dois anos, o de cujus havia constituído união estável.

33. A partir da Emenda Constitucional 66/2010, que passou a admitir divórcio sem prazo mínimo de casamento e sem discussão de culpa, tornou-se inconstitucional a previsão do art. 1.830 do Código Civil, parte final, no sentido de que o direito sucessório do cônjuge sobrevivente poderia se estender além de dois anos da separação de fato se provado que a convivência se tornara impossível sem culpa dele. Em consequência, decorridos dois anos de separação de fato, extingue-se esse direito, sem possibilidade de prorrogação”.

A partir da indagação de meus interessados e sempre inteligentes alunos de graduação e da leitura dos enunciados, resolvi escrever as presentes linhas.

1. Nota histórica

Com relação à situação sucessória do cônjuge, previa o Código Civil brasileiro de 1916 de maneira singela que:

“Art. 1.611 – A falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal”.

Na redação original de 1916, utilizava-se a expressão “não estavam desquitados”. No projeto de Beviláqua, o termo era “não divorciado”, e no projeto da Câmara dos Deputados, o termo era “se com ele coabitar”.

Nota-se que “divorciado”, segundo o instituto da época, significaria dissolução da sociedade conjugal. Desquite era o que punha fim à sociedade conjugal. Já o termo coabitar era mais amplo: bastaria a separação de fato do casal.

A opção do Código Civil de 1916, desde sua origem, era apenas retirar a qualidade de herdeiro se houvesse o fim da sociedade conjugal. Não se optou pela simples separação de fato como causa da perda da qualidade de herdeiro, razão pela qual utilizava-se “desquite” e depois separação judicial.

A opção de Beviláqua é elogiada por João Luiz Alves em aberta crítica à escolha das Ordenações: “Melhor satisfaz aos princípios jurídicos porque a exigência para excluir da sucessão deve ser a separação judicial de corpos e de bens entre os cônjuges por ocasião da morte do cônjuge sucedendo e não a do simples fato material da não coabitação que a Ordenação definia como fato de não viverem os cônjuges em casa teúda e manteúda como marido e mulher”[2].

A escolha tem lógica à luz de um sistema que opta por segurança jurídica. A separação de fato, a não coabitação, a não convivência more uxorio, exige prova fática, pode ser motivo de controvérsia. Já o desquite ou a separação judicial se comprovam por sentença. Evitam-se controvérsias. Rompe-se com o sistema das Ordenações, portanto.

Em suma pela regra do Código Civil de 1916, a perda da qualidade de herdeiro ocorria com o desquite ou a separação judicial (que punham fim à sociedade conjugal), bem como com o divórcio (extinção da sociedade e do vínculo conjugal).

2. O Código Civil de 2002

O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.830, dispõe:

“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.

A regra trazida em 2002 resgata a tradição das Ordenações que havia sido banida pelo Código Civil de 1916. A opção do legislador foi por excluir a qualidade de herdeiro do cônjuge nas seguintes hipóteses: i) se o cônjuge estava divorciado, pois nessa hipótese é ex-cônjuge (por isso o artigo 1.830 não fez essa menção); ii) se estava separado judicialmente (ou desquitados na terminologia original do CC/16); e iii) se não estavam separados de fato há mais de dois anos (ou sem a coabitação, sem viver na mesma casa, nos termos de Teixeira de Freitas, ou em casa teúda e manteúda, como previam as Ordenações).

Curiosamente, a separação de fato por menos de dois anos não retira a qualidade de herdeiro. A razão de ser desse prazo será logo mais explicada. Entretanto, o Código Civil de 2002 prossegue ao determinar que, mesmo com a separação de fato há mais de dois anos, o cônjuge mantém a qualidade de herdeiro se a convivência se “tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.

Em suma, não só o Código Civil de 2002 abandona o modelo de segurança jurídica adotado pelo Código Civil de 2002, como reintroduz no sistema a culpa mortuária presente, segundo a doutrina, na interpretação das Ordenações Filipinas.

As críticas à introdução (ou reintrodução) da culpa em matéria sucessória são diversas e contundentes. Uma, apenas, merece nota: a questão de sua prova. A prova da culpa mortuária é totalmente absurda se se imaginar que o viúvo ou a viúva litigará com os herdeiros em desigualdade de condições, pois os últimos não têm o conhecimento dos fatos que levaram à separação de fato. Imputar culpa à pessoa que não pode se defender, porque morreu, é indesejável e não se justifica em um sistema cuja base é a responsabilidade, e não mais a culpa.

Contudo, em 2010, com a Emenda Constitucional 66, o sistema sofre um forte abalo, conforme explicaremos em nossa próxima coluna.

***

Dedico este texto aos meus alunos de graduação do 4º ano da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), que me deram a honra de ensinar e aprender!


[1] 10 de novembro de 2017.
[2] Código Civil anotado, v. 3, p. 36.

*José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.

Fonte: ConJur | 26/11/2017.

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ESCRITURA PÚBLICA: O CAMINHO MAIS BARATO PARA A MORADIA POPULAR NO BRASIL


Em 26 unidades da Federação, documentos notariais são mais baratos do que valor cobrado pela Caixa Econômica Federal para o programa “Minha Casa, Minha Vida”. Instrumento público também vence comparação com taxas bancárias e de imobiliárias e incorporadoras

A compra de imóveis para a população de baixa renda atendida pelo Programa “Minha Casa, Minha Vida” do Governo Federal por meio de escritura pública seria mais barata do que a utilização do contrato particular em 26 dos 27 Estados brasileiros. Além disso, a utilização do documento público é mais econômica em comparação às taxas cobradas por imobiliárias e incorporadoras em todo o Brasil e, em outras 24 unidades da Federação, mais vantajosa para o cidadão quando comparada aos valores cobrados pelos bancos.

Este é o resultado de levantamento inédito realizado pela Revista Cartórios com Você que comparou as taxas cobradas em três modalidades de instrumentos particulares quando comparados à escritura pública, elaborada em Tabelionato de Notas, cuja Lei Federal 10.406/2002 dispôs como “essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no País”.

No primeiro dos três estudos, a reportagem comparou a taxa cobrada pela Caixa Econômica Federal (CEF) para a aquisição do imóvel – chamada de taxa de análise jurídica – com as tabelas de emolumentos dos Tabelionatos de Notas, considerando-se o teto do programa para cada um dos Estados brasileiros. No caso das imobiliárias e incorporadoras e dos três maiores bancos do País, a comparação foi traçada com imóveis de 500 mil e 1 milhão de reais.

A atividade notarial no Brasil é quase unânime em destacar que o instrumento público é menos oneroso, mais seguro e confiável do  que o instrumento particular. No entanto, muitas são as pessoas que, por falta de informação ou por imposição dos bancos e incorporadoras, ainda preferem recorrer ao contrato particular na hora da compra e venda de um bem imóvel.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios feita em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) existem mais de 50 milhões de imóveis próprios no Brasil. Muitos deles estão localizados na periferia das cidades, onde o valor das propriedades pode valer abaixo de 30 salários mínimos, ou seja, menos de 30 mil reais. Nesse caso, o cidadão não é obrigado a fazer uma escritura pública, estando desprotegido em relação aos altos custos cobrados pelos bancos, construtoras e imobiliárias, na chamada taxa de análise jurídica.

“A tarifa de análise jurídica consiste em analisar documentos e certidões do imóvel e do vendedor, garantindo maior segurança à operação e ao adquirente. Essa análise permite detectar a existência de débitos fiscais em processo de execução, protestos ou ações cíveis que possam comprometer a propriedade do imóvel”, informa Renata de Almeida Pedro, pesquisadora do centro de competência econômico e jurídico da Proteste Associação de Consumidores, destacando que a taxa se refere exatamente ao trabalho preventivo e de viabilização do negócio jurídico executado por um Tabelião de Notas.

O estudo feito pela reportagem mostra que até mesmo estados com maior poder aquisitivo e valores mais elevados, como São Paulo, Rio de Janeiro e o Distrito Federal, possuem escrituras mais baratas do que a taxa de análise jurídica cobrada pela Caixa Econômica Federal, de 1,5% do valor do financiamento para imóveis com teto de R$ 225 mil do “Minha Casa, Minha Vida”. Nesses casos, a taxa cobrada pelos bancos gira em torno de R$ 3.375,00, enquanto no DF, por exemplo, a escritura custa exatos R$ 607,15; em São Paulo R$ 1.595,43; e no Rio de Janeiro R$ 798,18.

A escritura mais barata se encontra no Paraná, que cobra apenas R$ 452,45. No Rio Grande do Sul, o instrumento público sai por R$ 512,65. Para o presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Rio Grande do Sul (CNB/RS), Danilo Alceu Kunzler, os custos relacionados à escritura pública e ao instrumento particular sempre serão um dilema na área notarial.

“A criação do instrumento particular como alternativa à escritura pública, tinha por escopo diminuir o custo ao mutuário. Mas, o que se viu ao longo dos anos é que a situação é justamente o inverso, pois as taxas bancárias para análise e confecção dos contratos são imensamente maiores que os emolumentos de uma escritura pública. Se tais atos fossem feitos por escritura pública, certamente haveria diminuição no custo do financiamento, pois a análise jurídica seria feita pelo próprio notário, profissional do Direito com competência legal”, afirma Kunzler.

Para imóveis destinados ao programa de moradias do Governo, a Lei Federal nº 12.424, de 16 de junho de 2011, prevê uma redução no custo das escrituras públicas. Segundo o Art.43 da Lei, “emolumentos referentes a escritura pública, quando esta for exigida, ao registro da alienação de imóvel e de correspondentes garantias reais e aos demais atos relativos ao imóvel residencial adquirido ou financiado no âmbito do PMCMV serão reduzidos em 50% (cinquenta por cento) para os imóveis residenciais dos demais empreendimentos do PMCMV”.

“A tarifa de análise jurídica tem como finalidade a verificação pelo banco acerca da regularidade financeira e processual das partes envolvidas (comprador e vendedor). Por meio dessa análise, o banco consegue verificar quais os riscos do negócio ser objeto de uma discussão judicial, bem como os riscos que apresenta em termos de retorno do capital emprestado”, diz Vinicius Henrique de Almeida Costa, advogado e presidente da Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH).

“Para o banco é importante que o negócio seja bem feito, pois não pode correr o risco de emprestar um valor a alguém e no futuro não ter como recuperá-lo, seja pela execução do contrato mandando o bem a leilão, seja pela devolução do valor em espécie em caso de ser declarado algum tipo de fraude”, completa.

Motivo que, segundo o desembargador Luiz Antonio de Godoy, presidente da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), seria mais do que suficiente para que os próprios bancos exigissem a celebração do negócio por escritura pública. “Acredito que a celebração de contratos por escritura pública, por reduzir a probabilidade de fraudes, indiretamente contribuiria para a redução do número de ações judiciais movidas em face de instituições financeiras”, diz o desembargador.

Em nota, o Ministério das Cidades se esquivou da diferença de valores, e disse que “a análise jurídica efetuada pela Caixa tem finalidade distinta da escritura pública, pois nos casos de imóveis financiados pelo FGTS, é necessária a análise de crédito do proponente anterior à celebração do contrato”.

No entanto, a taxa de análise jurídica é apenas uma das tarifas cobradas pelos bancos na hora de fazer um financiamento imobiliário. Uma pesquisa da Proteste analisou também a tarifa de serviços administrativos, que segundo a Resolução nº 3.410 está limitada a R$ 25,00 mês, valor cobrado pela maioria dos bancos. Parece um valor irrisório ao mês se comparado com o valor a pagar da parcela do financiamento, porém ao fazer a conta final, é possível auferir o peso desta taxa. Um financiamento de 360 meses, por exemplo, geraria um custo de R$ 9 mil somente com esta de tarifa.

Clique aqui para ler a reportagem na íntegra.

Fonte: CNB/SP – Cartórios com Você | 12/12/2017.

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