2ª VRP|SP: Consulta – Tabelionato de Notas – Lavratura de inventário notarial em existindo testamento válido – Herdeiros maiores e capazes – Ordenamento jurídico – Necessidade de processamento em unidade judicial – Em resposta a consulta formulada, é no sentido da impossibilidade da realização de inventário extrajudicial em existindo testamento válido.

Processo 0006385-67-2014 Pedido de Providências 7º Tabelionato de Notas da Capital – VISTOS. Trata-se de expediente instaurado a partir de consulta realizada pelo Sr. 7º Tabelião de Notas da Comarca da Capital acerca da possibilidade de proceder ao inventário extrajudicial nas hipóteses em que existe testamento e todos os herdeiros são maiores e capazes consoante decisões prolatadas pelas 7a e 10a Varas da Família e das Sucessões do Foro Central da Comarca da Capital. A representante do Ministério Público e o Colégio Notarial do Brasil Seção São Paulo apresentaram entendimentos acerca da possibilidade da realização de inventário extrajudicial, este último inclusive com apoio em entendimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família (a fls. 09/12 e 14/29). É o breve relatório. DECIDO. A situação em exame refere-se à possibilidade da realização de inventário (em verdade arrolamento) extrajudicial na hipótese da existência de testamento válido após sua abertura ou apresentação, arquivamento, registro e cumprimento em processo jurisdicional (CPC, art. 1.125 e ss.). O Ministério Público,o Colégio Notarial do Brasil Seção de São Paulo, o Instituto Brasileiro de Direito de Família, Juízos da Vara da Família e das Sucessões do Foro Central da Comarca de São Paulo, e mesmo precedente administrativo desta 2ª Vara de Registros Públicos do Foro Central da Comarca de São Paulo (processo n. 0072828-34.2013.8.26.0100, decisão proferida em 14.02.2014) alicerçados em interpretação teleológica do disposto no art. 982 do Código de Processo Civil tem entendimento firme acerca da possibilidade do inventário extrajudicial na sucessão testamentaria diante no caso de concordância dos herdeiros e legatários capazes. São entendimentos respeitáveis voltados à eficiente prestação do imprescindível serviço público destinado à atribuição do patrimônio do falecido aos herdeiros e legatários. Ideologicamente não poderíamos deixar de ser favoráveis à essa construção na crença da necessidade da renovação do Direito no sentido de facilitar sua aplicação e produção de efeitos na realidade social, econômica e jurídica. Não obstante, é necessário adequar a compreensão ao ordenamento jurídico conforme nossos estudos e ditames da ciência jurídica, pena da ausência de legitimidade de sua concreção no meio social. Não estamos aqui a defender um retorno ao positivismo e tampouco uma interpretação limitada em conformidade à célebre assertiva de Montesquieu o juiz é a boca que pronuncia as sentenças da lei. Impende considerar o contexto social na aplicação do Direito, assim, acompanhamos o pensamento de António Pedro Barbas Homem, conforme segue: A época contemporânea produziu um direito impecável na sua apresentação formal, mas despojado de alma. O estilo seco e sem adjectivos e a linguagem fria e impessoal das leis denuncia uma ciência do direito que procura a perfeição dogmática, mas tantas vezes esquecendo que o direito existe para disciplinar a economia e a sociedade de modo justo, organizando direitos e interesses e não para responder a problemas teóricos (O justo e o injusto. Lisboa: AAFDL, 2005, p. 44). Também interessante é lição de Eduardo Vera-Cruz Pinto ao tratar da diversidade entre lei e Direito nos seguintes termos: Não se pode dar o nome de Direito a qualquer normação da sociedade através da lei do Estado. Mesmo em democracia política e em Estado regido pela Constituição, os discursos políticos das maiorias que se constituem circunstancialmente nos parlamentos, enunciados sob a forma de normas legais publicadas no Diário da República, não são por si só, regras de Direito. O Direito inicia o seu percurso histórico em Roma: através de modos específicos (jurídicos) de criar regras de Direito assentes no labor criativo de pessoas com auctoritas, saber assente na experiência e socialmente reconhecido, que eram adoptadas pela comunidade; regras que eram praticadas em ambiente de separação e equilíbrio de poderes, efectivada pelas magistraturas, e aplicadas por um processo que envolvia o pretor; o iudex e o advocatus visando a justiça do caso concreto (Curso livre de ética e filosofia do direito. Cascais: Principia, 2010, p. 185/186).Conforme Gustavo Zagrebelsky (Il diritto mite. Torino: Eunadi, 1992, p. 181), o juiz deve considerar a lei e a realidade na aplicação do Direito, a consideração única do caso conduziria a uma casuística incompatível com o a existência do Direito como ordenamento, de outra parte, a consideração exclusiva do ordenamento levaria a uma ciência teorética inútil às finalidade do Direito. Diante disso, a construção e interpretação dos fundamentos da presente decisão administrativa passará pelo equilíbrio e comunicação do Direito com suas finalidades, todavia, sempre preso ao dado legislativo como emanação das opções estatais pelo fio condutor da soberania estatal. O art. 982, caput, do Código de Processo Civil estabelece: Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário (grifos nossos). De outra parte, os itens 117, alínea “j”, 129 e 129.1 do Capítulo XIV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça têm a seguinte redação: 117. Na lavratura da escritura deverão ser apresentados os seguintes documentos: j) certidão comprobatória da inexistência de testamento (Registro Central de Testamentos). 129. É possível a lavratura de escritura de inventário e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento. 129.1. Nessas hipóteses, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a certidão do testamento e, constatada a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada e o inventário far-se-á judicialmente. Diante disso, as NSCGJ são claras ao permitir a lavratura de inventário extrajudicial diante de dois requisitos: (i) testamento revogado, caduco ou com invalidade reconhecida por decisão judicial com trânsito em julgado e, (ii) ausência de conteúdo não patrimonial nas disposições testamentárias (CC, art. 1.857, p. 2º). Nessa perspectiva a situação ora pretendida é expressamente proibida pela redação atual das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça ante a existência de testamento válido conforme decisão judicial proferida em procedimento de jurisdição voluntária. Não obstante, a compreensão elaborada não tratou da prescrição administrativa da E. Corregedoria Geral da Justiça e sim das leis incidentes, sabidamente o fundamento último daquela. Mesmo assim, modestamente, no momento, pensamos não ser possível a lavratura de inventario extrajudicial diante da presença de testamento válido. Há diversidade entre a sucessão legítima e testamentária no campo da estrutura e função de cada qual, para tanto, conforme Norberto Bobbio (Da estrutura à função. Barueri: Manole, 2007, p. 53), devemos indagar não apenas a estrutura (“como o direito é feito”) mas também a função (“para que o direito serve”) e, nesse pensamento, vamos concluir pela diversidade estrutural e funcional das espécies de sucessão. Somente na sucessão testamentária existe um negócio jurídico a ser cumprido, o que, por si só, implica na diversidade dos procedimentos previstos em lei para atribuição dos bens do falecido. Paulo Nader comenta essa distinção da seguinte forma: (…) Quem não faz testamento revela a sua concordância tácita com as medidas da lei. Dispor em testamento significa adotar fórmulas sucessórias distintas das previstas no ordenamento. De nenhum sentido ou eficácia o testamento que se limita a induzir à partilha de modo coincidente com o plano da lei. Justifica-se, na medida em que desvia o destino de seu patrimônio, ou de parte dele, do rumo fixado em lei. Se irmãos são os herdeiros mais próximos, pode o hereditando excluí-los da sucessão, beneficiando parentes mais distantes ou estranhos. Se todos são filhos, poderá beneficiar a um ou vários deles, destinando-lhes a sua quota disponível, ou seja, metade de seu patrimônio (Curso de direito civil. v. 6. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 206). Na sucessão testamentária há necessidade de se assegurar a execução da vontade do falecido testador e a proteção de interesses de familiares próximos, daí seu processamento sob a presidência de Juiz de Direito e, respeitosamente, em nosso pensamento, sem a possibilidade normativa do processamento em atividade extrajudicial delegada. As questões de conteúdo não patrimonial, a fiscalização à efetivação da vontade do testador, a eventual figura do testamenteiro e presença de institutos a exemplo da redução das disposições testamentárias e da deserdação nos conduzem a conclusão da inadequação jurídica, senão impossibilidade, do processamento em atividade de serviço extrajudicial delegado. Além disso, a interpretação do testamento, o que não ocorre no procedimento de jurisdição voluntária de apresentação ou abertura de testamento, compete ao juiz. Conforme Maria Berenice Dias A função interpretativa cabe ao juiz, que precisa cercar-se de elementos de convicção, buscando conhecer o perfil do testador no momento em que elaborou o testamento. Tem que procurar conhecer o que quis o testador (Manual das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 428). Enfim, o ordenamento jurídico aproxima, determina e impõe o processamento da sucessão testamentária em unidade judicial como se depreende dos regramentos atualmente incidentes e dos institutos que cercam a sucessão testamentária; daí a razão da parte inicial do art. 982 caput, do Código de Processo Civil iniciar excepcionado expressamente a possibilidade de inventario extrajudicial no caso da existência de testamento independentemente da existência de capacidade e concordância de todos interessados na sucessão; porquanto há necessidade de se aferir e cumprir (conforme os limites impostos à autonomia privada na espécie) a vontade do testador o que não pode ser afastado mesmo concordes os herdeiros e legatários. A interpretação pretendida, com o devido respeito, envolve tantas exceções que em nosso sentir não permite uma compreensão científica em conformidade com os mandamentos legais incidentes pelo fio condutor da Constituição da República. Noutra quadra, a presente decisão administrativa não trata de qualquer juízo e nem poderia, de decisões e interpretações de natureza jurisdicional, nosso papel é limitado ao cumprimento das determinações judiciais sem qualquer consideração. Nada obstante, sem ingressar no exame das particularidades da formação da coisa julgada em processos de jurisdição voluntária, o certo é a não inclusão dos Srs. Tabeliães da Comarca da Capital e desta Corregedoria Permanente nos limites subjetivos da coisa julgada atinente a processo de jurisdição voluntária de abertura, registro e cumprimento de testamento. A esta altura podemos afirmar nosso pensamento no sentido da impossibilidade da realização de inventário extrajudicial no caso da existência de testamento válido. Apesar de cientes da responsabilidade e da repercussão de nossa decisão enquanto precedente administrativo emanado de Autoridade Administrativa, também sabemos que a ciência só evolui pela crítica e pela tentativa de solução de problemas concretos e que as teorias, a exemplo da ora desenvolvida, estão sempre abertas à crítica. Karl Popper (O mito do contexto. Lisboa: Edições 70, p. 256) comenta esse aspecto nos seguintes termos: O que chamamos de objetividade científica nada mais é do que o facto de que nenhuma teoria científica é aceite como um dogma, e que todas as teorias são provisórias e sempre passíveis de críticas severas de uma discussão crítica racional que visa eliminar erros. Quanto à racionalidade da ciência, ela consiste simplesmente na racionalidade da discussão crítica. Nestes termos, a ampla discussão do ora decidido em conformidade à pluralidade de valores e princípios incidentes e mesmo o encontro de soluções díspares só nos aproxima no sentido da evolução da aplicação concreta que prevalecerá, donde se reconhece a legitimidade recursal de quaisquer Titulares de Delegação com atribuição bastante para a presidência de inventário extrajudicial para além dos diretamente envolvidos neste processo administrativo ante sua natureza consultiva, permitindo a exposição de todos os pensamentos e seu exame em conformidade a garantia constitucional do devido processo legal. Por fim, esta Corregedoria Permanente por decorrência do Poder Hierárquico está submetida à E. Corregedoria Geral da Justiça, assim, independentemente de eventuais recursos administrativos, remeta-se cópia desta decisão àquela para conhecimento e eventuais providências tidas por pertinentes. Ante o exposto, na esfera unicamente administrativa, respondemos a consulta no sentido da impossibilidade da realização de inventário extrajudicial em existindo testamento válido a par da capacidade de todos e concordância. Ciência ao Ministério Público. P.R.I (D.J.E. de 11.04.2014 – SP)

Fonte: DJE/SP | 11/04/2014.

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Desembargador Francisco Eduardo Loureiro analisa o cumprimento de testamento pelo tabelião de notas em Ciclo de Estudos de Direito Notarial

A segunda palestra do Ciclo de Estudos de Direito Notarial de 2014, ocorrida no dia 18 de março, foi proferida pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), Francisco Eduardo Loureiro. Os notários prestigiaram a exposição do tema “O cumprimento do testamento pelo Tabelião de Notas”, analisado em profundidade pelo convidado do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB/SP).

O desembargador abriu o evento dizendo que a lavratura de um inventário extrajudicial pode ser realizada somente em casos de sucessão legítima. No entanto, o meio primário de herdar é através da sucessão testamentária.

Para explicar tal afirmação, ele ressaltou a diferença entre a sucessão legítima e a testamentária. “Na legítima não há testamento. Já na testamentária, o autor da herança orienta qual é o destino que ele quer dar aos seus bens. A morte causa, pela própria natureza, uma descontinuidade das relações jurídicas e o papel do Direito Sucessório é dar continuidade ao que foi interrompido. A intenção é fazer com que os bens não fiquem sem titular um segundo sequer”.

Essas duas modalidades de sucessão tutelam interesses completamente diferentes. “Na sucessão testamentária, o interesse principal é prestigiar o autor da herança permitindo que ele possa dispor de seus bens para além da sua morte. Na sucessão legítima, ocorre o inverso. O que importa é a proteção dos interesses dos herdeiros. A lei pretende proteger membros de um certo grupo familiar”.

A partir disso, Loureiro analisou a sentença normativa da 2ª Vara de Registros Públicos. Esta, por sua vez, confirmou a decisão judicial da 7ª Vara de Família e Sucessões, na qual o magistrado autorizou que um inventário fosse realizado extrajudicialmente mesmo com a existência do testamento válido. “Havendo testamento em que os herdeiros delegatários são maiores e capazes, supostamente, não há conflito de interesses. No entanto, pode haver um conflito de interesses entre a vontade do autor da herança e aquilo que desejam, de comum acordo, todos os herdeiros delegatários”, afirma. Este conflito de interesses do falecido com os herdeiros é relevante para a lei. Por isso, a idéia do legislador foi deixar a sucessão testamentária no Poder Judiciário.

O desembargador também ponderou o segundo argumento que foi colocado na sentença, mais especificamente sobre  o procedimento de abertura e de registro dos testamentos. “Onde está esse procedimento de abertura e de registro do testamento? Nos artigos 1125 e 1126 do Código do Processo Civil (CPC). Quando o juiz determina a abertura do documento cerrado e o registro de qualquer testamento, já que o testamento particular tem que ser confirmado para depois ser registrado, o juiz não lê as cláusulas. Nesse primeiro momento, ele é proibido de ler qualquer cláusula testamentária”, explica.

Ao longo da palestra, o convidado esclareceu ainda as razões teóricas da vedação legal e as razões que levaram às decisões judiciais e administrativas em sentido oposto. Sobre o assunto, alerta: “a antinomia entre o que diz a lei e as decisões cria clima de insegurança ao notariado”.

Após realizar densa análise sobre o tema, Francisco Eduardo Loureiro opinou sobre o futuro do notariado. “A tendência é a prestação de serviço para a população de modo que as pessoas procurem o tabelionato de modo facultativo. A serventia de notas tem que assumir um novo papel: deve ser o médico jurídico de uma comunidade, com uma equipe pequena de pessoas altamente qualificados, que entenda e que digam o que as pessoas devem fazer”, finaliza.

Fonte: CNB/SP | 19/03/2014.

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TJ/PE: Testamento genético

* JONES FIGUEIRÊDO ALVES

A vontade expressa em testamento quanto ao destino de sêmens e óvulos congelados, a constituir o material genético objeto de doação no efeito de uma futura inseminação artificial pela donatária, tem sido definida como um novo instrumento jurídico para o surgimento dos "filhos de herança", programados "post mortem" para pessoas determinadas.

É o denominado "testamento genético", quando os futuros pai ou mãe, doadores de sêmens ou óvulos, deixam instruções inscritas no sentido de o material genético congelado ser utilizado para a concepção e nascimento de seus filhos, após suas mortes, com escolha pessoal de quem os utilize. Escolha feita pelo próprio testador ou pessoa por ele indicada. Em resumo: o material genético passa a se constituir um bem de inventário, destinando-se servir à procriação do(a) falecido(a).

Uma advogada israelense, Irit Rosenblum, foi quem teve a ideia do instrumento legal, elaborando documentos de ultima vontade onde se permitisse aos herdeiros a disposição do material genético, com o uso que lhe fosse determinado pelo testador ou conforme suas diretivas.

Depois disso, ela obteve de um tribunal de Israel a determinação no sentido de o banco de sêmen do Tel Hashomer Hospital, localizado em área de Tel Hashomer de Ramat Gan (o maior do país e de todo o Oriente Médio), proceder a entrega de material genético ali depositado por Baruch Pozniansky, após sua morte. Os pais do jovem falecido queriam um neto e com o material genético então disponível escolher a futura mãe dele.

Muitos bancos de sêmen ou de óvulos congelados conservam o material genético, depositado pelos seus titulares, sem quaisquer instruções sobre o destino a lhe ser dado, quando por óbito daqueles depositantes. Uma descontinuidade atroz que impede uma destinação certa.  O congelamento de esperma ou a chamada criopreservação seminal (com armazenagem a uma temperatura de 196º C negativos) constitui um dos procedimentos biomédicos ao projeto parental; seja no interesse próprio (ou de casal), em bancos de sêmen homólogos; seja em doação, em bancos heterólogos, para as clínicas de reprodução assistida. 

As hipóteses frequentes que indicam o congelamento são: a) a pré-vasectomia, quando por ato de esterilização voluntária; b) o tratamento anticâncer, quando por ato de quimioterapia/radioterapia; c) a baixa qualidade seminal comprometendo a produção de esperma, quando recomendável a preservação de amostras. O tempo de congelamento é indeterminado, havendo casos de recepção exitosa do sêmen congelado, após longo tempo de armazenagem.

No ponto, registra-se o caso de Stela Biblis, na Carolina do Norte (2008) concebida por meio de sêmen congelado há vinte e dois anos, quando seu pai, com leucemia na adolescência e antes do tratamento radioterápico que o tornaria infértil, diligenciou preservar o liquido seminal.
Pois bem. O precedente judicial israelense (2011) admitindo que a liberação de material genético, guardado em bancos de criopreservação, pudesse ser definida por vontade de seu titular, através dos "testamentos genéticos", ensejou novas demandas judiciais. As cortes de Israel aprovaram, em seguida, a execução de outros treze testamentos.

Agora, a advogada Irit Rosenblum é a diretora da Ong "Nova Família", em Israel, uma organização humanitária que dispõe, pela primeira vez no mundo, de acervo de mais de mil "testamentos genéticos", com doações programadas de sêmens e óvulos congelados. Cerca de cem dos testamentos estão em execução, diante do evento morte dos testadores.

Convém anotar que ditos testamentos tem sido, equivocadamente, referidos como "testamentos biológicos", quando é certo que não devem ser confundidos com os chamados "testamentos vitais" ("living will" ou "testament de vie"), também conhecidos como instrumentos de "diretivas antecipadas de vontade" (DAVs), cujas declarações de vontade e instruções devem ser aplicadas sobre uma condição terminal do testador  ou em casos de impossibilidade dele dispor sobre sua vontade, no que diz respeito à dignificação do seu estado de paciente e/ou de sua morte, à recusa ou suspensão de tratamentos paliativos, (ortotanásia), etc. No Brasil, a Resolução nº 1.995/2012, de 30.08.2012, do Conselho Federal de Medicina veio permitir o registro do "testamento vital", dito "testamento biológico", junto à ficha médica ou prontuário do paciente, vinculando o médico à vontade do paciente.

No atinente aos "testamentos genéticos", inexiste previsão na legislação brasileira, dispondo, entretanto, a Resolução nº 1.957, de 06.01.2011, do Conselho Federal de Medicina, que "não constitui ilícito ético a reprodução assistida "post mortem", desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente" (Anexo único, VIII). Este normativo ético é premissa de base suficiente a sugerir a prática mais elaborada de testamentos da espécie.

Lado outro, importa particularizar questão referente aos embriões saudáveis e excedentes das técnicas de fertilização "in vitro", não utilizados nos ciclos de reprodução assistida, e que se encontram crioconservados para eventuais implantações futuras. A atual Resolução nº 2.013/2013, do Conselho Federal de Medicina, que atualizou as regras da reprodução assistida, diferentemente da resolução anterior (nº 1.358/1992) que proibia o descarte de embriões excedentários congelados, vem agora permiti-lo, mediante consentimento dos genitores.

Caso, porém, é pensar, sobre a incidência dos "testamentos genéticos", no tocante à destinação útil dos embriões, mediante a anuência do co-genitor,  se vivo estiver,  consabido que os embriões congelados, submetidos a longo processo de tempo indeterminado de hibernação, são factíveis de implantação posterior. Aliás, caso único na ciência, o da pequena Ryleigh Shepherd, nascida em Midland, Inglaterra (11/2010) após o embrião haver sido crioconservado, durante onze anos. O ser concepto, filha diferida, ganhou vida como irmã das gêmeas Bethany e Megan, nascidas onze anos antes.

No ponto, o nosso Código Ciivil já prevê a paternidade diferida (art. 1.597, inciso IV) e a lei portuguesa (nº Lei 32, de 26.06.2006) admite lícita a transferência "post mortem" de embrião, diante de projeto parental definido por escrito antes da morte do pai (art. 22, 3).

Conclusão inarredável se impõe: diante da vida humana, na sua forma mais incipiente (sêmens, óvulos, embriões) o direito, por certo, deverá intervir de forma mais eficiente e urgente. Os novos "testamentos genéticos", constituem, nessa seara, um projeto parental que celebra a dignidade da vida.

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* O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

Fonte: TJ/PE | 13/03/2014.

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