TJSP: RESPONSABILIDADE CIVIL – Danos ocasionados por Tabelião – Falsificação de guia de recolhimento do ITBI – Pagamento em duplicidade pelo autor – Danos morais – Abalo que superou o mero dissabor – Quantia fixada adequadamente, com base nas circunstâncias do caso concreto

EMENTA

RESPONSABILIDADE CIVIL – Danos ocasionados por Tabelião – Falsificação de guia de recolhimento do ITBI – Pagamento em duplicidade pelo autor – Preliminar de ilegitimidade passiva afastada – Posição já consolidada no E. STF acerca da função eminentemente pública dos serviços notariais, a caracterizar a natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, albergados consequentemente pela norma constitucional – Responsabilidade objetiva do Estado de São Paulo – Aplicação do disposto no art. 37, §6º, da CF – Elementos de prova constantes dos autos que permitem concluir pela existência do ilícito, qual seja, a falsidade da guia de recolhimento do ITBI, assinada pelo Tabelião Substituto – Danos materiais evidenciados – Danos morais – Abalo que superou o mero dissabor – Quantia fixada adequadamente, com base nas circunstâncias do caso concreto – Observações quanto aos critérios de aplicação dos juros de mora e atualização monetária, com o advento da Lei nº 11.960/2009 – Recursos desprovidos, com observações. (TJSP – Apelação Cível nº 0004821-19.2006.8.26.0299 – Barueri – 11ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Oscild de Lima Júnior – DJ 05.06.2013)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 0004821-19.2006.8.26.0299, da Comarca de Barueri, em que são apelantes FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO e LUIS ANTONIO PEREIRA RAMOS (TABELIAO DE REGISTRO DE JANDIRA), é apelado JOÃO BATISTA RIGONI.

ACORDAM, em 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento aos recursos, com observação. V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores AROLDO VIOTTI (Presidente) e RICARDO DIP.

São Paulo, 14 de maio de 2013.

OSCILD DE LIMA JÚNIOR – Relator.

RELATÓRIO

Trata-se de ação de indenização por danos materiais e morais ajuizada por João Batista Rigoni contra o Cartório de Registro Civil e Tabelionato de Jandira, posteriormente alterado o polo passivo para Fazenda do Estado de São Paulo e Luis Antônio Pereira Ramos, alegando que em 19/02/2002, pelo valor de R$ 20.000,00, adquiriu da Conspar Empreendimentos e Participações Ltda. um imóvel constituído de terreno urbano, situado na Estrada Velha de Itapevi, e que o referido negócio foi prenotado na matrícula do imóvel pelo Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Barueri. Para a realização dos serviços de lavratura da escritura, certidões necessárias, pagamento do ITBI, registro no Cartório de Registro de Imóveis e os respectivos honorários, pagou ao réu a importância de R$ 2.134,00. O réu realizou os serviços contratados e forneceu ao autor o comprovante do pagamento do ITBI, no valor de R$ 1.000,00. Ocorre que em 24/10/2006 o autor foi surpreendido pela notificação 06/2006 da Prefeitura do Município de Barueri, solicitando o seu comparecimento na Secretaria de Finanças para realizar o pagamento do ITBI referente à compra do imóvel, sob pena de inscrição do débito na dívida ativa municipal. Foi informado pela Municipalidade que a guia que o réu lhe fornecera era falsa, e que o tributo não havia sido recolhido pelo Cartório de Registro Civil e Tabelionato de Jandira. Não restou outra alternativa ao autor, que recolheu novamente o tributo para não ver o seu nome inscrito na dívida ativa municipal, com o pagamento do valor de R$ 2.295,13, já acrescido de multa, juros e correção monetária, tendo em vista o atraso no recolhimento. Requer, assim, seja o réu condenado a reparar os danos materiais, no valor acima apontado, bem como indenização por danos morais, em valor correspondente a décuplo do prejuízo, tudo devidamente corrigido monetariamente e acrescido dos respectivos juros.

A r. sentença de fls. 102/108 julgou procedente o pedido, para condenar os réus ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 20.000,00, acrescidos de correção monetária, calculada a partir da data daquela data e juros legais, a contar da data da expedição da primeira guia do ITBI, de 0,5% ao mês até a entrada do Novo Código Civil, a partir de quando serão devidos no percentual de 1% ao mês, bem como ao pagamento de R$ 2.295,13, acrescido de juros de mora e correção monetária, ambos calculados da data da expedição da guia de ITBI de fls. 13, de conformidade com as Súmulas 43 e 54 do STJ. Em razão da sucumbência, condenou os réus no pagamento das custas, das despesas processuais e dos honorários advocatícios, estes fixados em 10% do valor da condenação corrigido.

A Fazenda do Estado de São Paulo interpôs recurso de apelação a fls. 127/147, alegando, preliminarmente, ilegitimidade passiva, tendo em vista o disposto no art. 22 da Lei nº 8.935/94 e no art. 236, §1º, da CF. No mérito, pugna pela inviabilidade da indenização por danos morais, ou a sua redução para, no máximo, R$ 3.000,00, considerando as especificidades do caso. Por fim, requer sejam observadas as regras de juros e correção previstas na Lei nº 9.494/97.

Luis Antônio Pereira Ramos interpôs recurso de apelação a fls. 148/151, deduzindo que não pode ser responsabilizado por obrigações concernentes ao escrivão do Cartório, pois teria provado que não era o escrivão responsável pelo Cartório na data da lavratura da escritura pública, levada a efeito em 19/02/2002. Além disso, a Lei nº 8.835/94 é clara ao estabelecer que o tabelião é o responsável pelos atos próprios e da serventia do Cartório, sendo ele mero funcionário do Tabelionato não é o tabelião ou escrivão responsável pelos atos notariais realizados no Cartório.

Os recursos foram respondidos a fls.159/164.

É o relatório.

VOTO

Não vinga a preliminar de ilegitimidade passiva da Fazenda do Estado de São Paulo, inexistindo, na espécie, qualquer ofensa ou contrariedade aos arts. 22 da Lei nº 8.935/94 e 236, §1º, da CF.

Na verdade, a regra estabelecida no art. 22 não exclui a previsão contida no texto constitucional (arts. 236, §1º e art. 37, §6º).

No escólio de José Roberto dos Santos Bedaque, “se o autor indicar para figurar como réu no processo pessoa diversa daquela que, segundo a descrição fática por ele mesmo feita, participa da relação substancial, estará configurada a ilegitimidade passiva”[1]

Diante do regime de responsabilidade objetiva insculpido no art. 37, §6º, da CF, reputo que a Fazenda do Estado de São Paulo é sim parte legítima para responder pelos danos causados pelos agentes notariais aos particulares, não se tratando, na espécie, de responsabilidade subsidiária, quando já esgotadas as forças patrimoniais do delegatário.

Nessa seara, o Egrégio Supremo Tribunal Federal já solidou o entendimento que “a função eminentemente pública dos serviços notariais configura a natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais”, caracterizando a responsabilidade extracontratual do Estado (Segunda Turma, Ag. Reg. no RE 551.156-1/SC, j. 10/03/2009, rel. Min. Ellen Gracie).

E mais:

CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. TABELIÃO. TITULARES DE OFÍCIO DE JUSTIÇA: RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. CF, art. 36, §6º. I- Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercícios de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (C.F, art. 37, §6º). II- Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido.

(…)

Posto isso, decido.

Destaco do parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra do ilustre Subprocurador-Geral Flávio Giron:

'(…)

Deve-se ressaltar, entretanto, que a atividade desempenhada pela tabeliã, munida de fé-pública, destinase a estabelecer a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos, sujeitando-se a ostensiva fiscalização pelo Juízo responsável, configurandose, em decorrência, como uma função pública.

Assim, apesar de exercida em caráter privado, por delegação do Poder Público, como acentuou o Ministro Celso de Mello (Recurso Extraordinário nº 178.236-6, DJ 11-4-97), “não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades”, consoante o regime de direito público a que estão adstritas.

Neste sentido, reiterada é a jurisprudência dessa Excelsa Corte, que considera os serventuários, titulares de cartórios e registros extrajudiciais, funcionários públicos em sentido amplo, como se depreende do excerto abaixo transcrito:

'SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. A atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estabilidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público. A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada 'em caráter privado, por delegação do poder público' (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa. As serventias extrajudiciais, instituídas para o desempenho de funções técnico-administrativas destinadas 'a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos' (Lei nº 8.935/94, art. 1º), constituem órgãos públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores públicos (ADIMC = 1378, DJ 30/05/97)'.

Deste modo não há que se olvidar da responsabilidade objetiva do Estado do Paraná, constatada a natureza pública da função exercida pela tabeliã, típica servidora pública, albergada consequentemente pela norma constitucional do artigo 37, §6º, que lhe assegura responder regressivamente pelo dano causado a terceiro.

Ademais, a contagem colimada pela norma constitucional supramencionada é assegurar ao particular o restabelecimento de seu direito, que o agente público venha a lesionar, nessa qualidade, devendo o Estado, deste modo, comprovar a culpa ou dolo da vítima do evento danoso, como enuncia, aliás, a teoria da responsabilidade objetiva da Administração, que reconhecendo a supremacia do ente estatal, compensa o particular exigindo-lhe apenas a demonstração do nexo causal entre o fato lesivo e o dano, obrigando o Estado a evidenciar a sua culpabilidade.

Assim, apresenta-se descabida a tese da subsidiariedade da responsabilidade, agitada no extraordinário face a denunciação de lide e condenação do agente estatal pelo v. acórdão recorrido, pois, aceita-la, eximindo o Estado de sua responsabilidade, seria onerar o particular, vítima do dano(STF, Segunda Turma, Ag. Reg. no RE 209.354-8/PR, j. 02/03/1999, rel. Min. Carlos Velloso).

Deste modo, afasto a objeção.

No mérito propriamente dito, os recursos devem ser desprovidos, com observações no tocante aos critérios de fixação dos juros moratórios e atualização monetária.

Com efeito, dispõem os arts. 186 e 927 do CC de 2002:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Dispõe, ainda, o art. 37, § 6º, da CF, a respeito da responsabilidade objetiva do Estado, enunciando que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Para que se configure a responsabilidade do Estado, faz-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: conduta, dano e nexo causal.

Referido dispositivo legal não adotou o princípio do risco integral, e sim a teoria do risco administrativo, pela qual o lesado não precisa demonstrar a culpa da Administração para obter indenização em face de ato danoso causado por seus agentes, responsabilidade estatal que pode ser proporcional ou integralmente afastada com a comprovação, pelo Poder Público, de que o dano resultou de conduta total ou parcialmente imputável ao lesado.

Cabe a responsabilização do Estado não só pela ação, mas pela omissão de seus agentes. Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, “a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos (Direito Administrativo, Atlas, 17ª Ed., 2004, p. 548).

Neste sentido, o julgamento da Apelação Cível n° 853.575-5/7-00, Rel. Burza Neto, j. 21/01/2009, nos seguintes termos:

“O Estado é responsável civilmente quando este ente se omitir diante do dever legal de obstar a ocorrência do dano, ou seja, sempre quando o comportamento do órgão estatal ficar abaixo do padrão normal que se costuma exigir.

Assim, pode-se afirmar que a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre decorrente de ato ilícito, porque havia um dever de agir imposto pela norma.

A responsabilidade do Estado por conduta omissiva indaga qual dos fatos foi decisivo para configurar o evento danoso, ou seja, qual fato gerou decisivamente o dano e quem estava obrigado a evitá-lo.

Desta forma, o Estado responderá não pelo fato que diretamente gerou o dano, outrossim, por não ter ele praticado conduta suficientemente adequada para evitar o dano ou mitigar seu resultado, quando o fato for notório ou perfeitamente previsível.”

Nos casos de omissão estatal, contudo, muitos defendem que devem ser aplicadas as regras da responsabilidade civil subjetiva (Teoria da 'Falta' ou Culpa do Serviço). Aliás, nessa hipótese, conforme Maria Sylvia Zanella di Pietro, “entende-se que a responsabilidade não é objetiva, porque decorrente do mau funcionamento do serviço público; a omissão na prestação do serviço tem levado à aplicação da teoria da culpa do serviço público (faute du service); é a culpa anônima, não individualizada; o dano não decorreu de atuação de agente público, mas de omissão do poder público (cf. acórdãos in RTJ 70/704, RDA 38/328, RTJ 47/378)[2]”.

Entretanto, a teoria do risco administrativo, como ensina Hely Lopes Meirelles, “embora dispense a prova da culpa da Administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização. Isto porque o risco administrativo não se confunde com o risco integral. O risco administrativo não significa que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa apenas e tão-somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização” (Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Malheiros, 29ª ed., 2004, pág. 627).

Destaque-se a afirmação de Yussef Said Cahali[3] ao expor que segue “…a jurisprudência no sentido de não levar a extremos uma concepção de risco integral e absoluto da atividade da Administração por todos esses eventos (que também são da Natureza), procurando estabelecer não sem dificuldade até que ponto se pode determinar a existência da falha do serviço, posta como causa para o reconhecimento da responsabilidade indenizatória”.

Nesse sentido v. aresto desta E. Corte, na Apelação Cível nº 38.458-5/0, rel. Des. Toledo Silva, j. 19.05.1999, com a seguinte passagem:

“No ordenamento jurídico constitucional brasileiro prevalece a teoria do risco administrativo, pelo qual a vítima, para a obtenção do ressarcimento do dano, está dispensada de provar a culpa da Administração ou de seus agentes, bastando provar o dano e o nexo causal. À Administração, para livrar-se da obrigação de ressarcir, é facultado provar que o dano aconteceu por culpa da vítima, competindo-lhe o ônus da prova.”

A discussão em torno do dever estatal de pagamento de indenização, decorrente de sua responsabilidade pelo risco administrativo, parte da premissa de que o dano, efetivamente, ocorreu e de que esse dano guarda relação de causalidade com a atuação ou a falha na atuação estatal.

Pois bem.

Diferentemente do que alegam os réus em suas razões recursais, os elementos coligidos aos autos permitem concluir que os fatos ocorreram na forma relatada na petição inicial.

Com efeito, restou devidamente comprovado que o autor procedeu ao pagamento do ITBI em duplicidade na primeira oportunidade, quando da lavratura da escritura do imóvel, forneceu a quantia de R$ 2.134,00, sendo que R$ 1.000,00 seriam referentes ao pagamento do ITBI, de acordo com o comprovante fornecido e assinado pelo réu Luis Antônio Pereira Ramos, guia nº 1004196, em nome da Prefeitura do Município de Barueri (fls.13); já na segunda oportunidade, diante da falsidade da guia de recolhimento assinada pelo réu Luis Antônio Pereira Ramos (falsidade esta, aliás, que sequer foi impugnada), teve o autor que proceder ao pagamento de R$ 2.295,13 ao Município de Barueri (fls. 15/17), sob pena de ter o seu nome inscrito na dívida ativa municipal.

Ademais, evidenciado está que o réu Luis Antônio, na qualidade de Tabelião Substituto, foi quem lavrou e subscreveu com fé pública, no dia 19 de fevereiro de 2002, a Escritura de Venda e Compra do imóvel do autor (fls. 07/09), e deu recibo ao autor, em nome do “Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas de Jandira, Comarca de Barueri, Estado de São Paulo”, de que recebeu a quantia de R$ 2.134,00 para o pagamento da aludida escritura, certidões, ITBI, registro e honorários.

Portanto, caracterizado o ilícito com a fraude, ou seja, com a falsidade da guia de recolhimento do ITBI pelo Tabelião Substituto, ocasionando danos ao autor, estes devem ser reparados, tanto na esfera material quanto moral, na forma já especificada na r. sentença.

Aliás, importante ponderar, nesse aspecto, que os réus não trouxeram qualquer prova para rechaçar a tese aventada pelo autor, ou mesmo evidências de que a fraude não teria sido cometida, ou que deveria ser atribuída a uma terceira pessoa. O réu Luis Antônio se limitou a sustentar que não possuía atribuição para a prática dos atos, não podendo responder por eles, porém é de absoluta clareza que, à época dos fatos, praticou os fatos como Tabelião Substituto, agindo, se não de forma dolosa, no mínimo com culpa para a obtenção do resultado danoso.

Vale dizer, os danos materiais comportam a quantia de R$ 2,295,13, referente ao pagamento feito pelo autor, a título de ITBI, à Municipalidade, após a ocorrência da fraude na guia de recolhimento pelo Tabelião Substituto.

Por sua vez, comunga-se do entendimento do juízo a quo no sentido de que o dano moral foi provocado pela situação vivenciada, pelo desconforto e indignação a que se pode atribuir ao homem médio, cumpridor de suas obrigações, ao se deparar com situação similar, vítima de fraude por parte de Tabelião e na iminência de ter um débito incluído na dívida ativa municipal, não obstante já ter pago quantia substancial para a regularização de seu imóvel por aquele que é dotado, ressalte-se, de fé pública.

Os fatos ocorridos ocasionaram ao autor sofrimento e profundo abalo psicológico, que superam e muito – o mero aborrecimento ou dissabor.

A respeito da prova do dano moral, preleciona Rui Stoco:

… porque o gravame no plano moral não tem expressão matemática, nem se materializa no mundo físico e, portanto, não se indeniza, mas apenas se compensa, é que não se pode falar em prova de um dano que, a rigor, não existe no plano material.

Mas não basta a afirmação da vítima de ter sido atingida moralmente, seja no plano objetivo como no subjetivo, ou seja, em sua honra, imagem, bom nome, intimidade, tradição, personalidade, sentimento interno, humilhação, emoção, angústia, dor, pânico, medo e outros.

Impõe-se que se possa extrair do fato efetivamente ocorrido o seu resultado, com a ocorrência de um dos fenômenos acima exemplificados (Tratado de Responsabilidade Civil, 7ª edição, 2007).

Realmente, em trabalho sobre a responsabilidade civil o Professor André Tunc, da Universidade de Paris, salientou como o juiz tem deveres redobrados para com a sociedade quando é chamado a julgar casos em que a matéria envolve a responsabilidade civil. É preciso “arregaçar as mangas da camisa”, contribuindo para a proteção da sociedade contra atos que possam torná-la indefesa ou desprotegida. Este é um dos objetivos das responsabilidades penal e civil. E, quanto a esta última, deve ele se preocupar, principalmente, com a indenização que a vítima tem direito.[4] Como lecionou Aguiar Dias, “o problema se prende intimamente ao da causa. Para apreciar a contraprestação, rejeita-se o valor irrisório. Não contém exigir equivalência, palavra que se presta a equívocos. O que se procura é o mínimo de proteção capaz de tornar a injustiça por demais violenta”.[5]

"Na concepção moderna da teoria da reparação de danos morais prevalece, de início, a orientação de que a responsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação. Com isso, verificado o evento danoso, surge, ipso facto, a necessidade de reparação, uma vez presentes os pressupostos de direito. Dessa ponderação, emergem duas conseqüências práticas de extraordinária repercussão em favor do lesado; uma, é a dispensa da análise da subjetividade do agente; outra, a desnecessidade de prova do prejuízo em concreto. Nesse sentido, ocorrido o fato gerador e identificadas às situações dos envolvidos, segue-se à constatação do alcance do dano produzido, caracterizando-se o de cunho moral pela simples violação da esfera jurídica, afetiva e moral, do lesado. Ora, essa verificação é suscetível de fazer-se diante da própria realidade fática, pois, como respeita à essencialidade humana, constitui fenômeno perceptível por qualquer homem normal…".

Com efeito: "É que as lesões morais derivam imediata e diretamente do fato lesivo, muitas vezes deixando marcas indeléveis na mente e no físico da vítima, mas outras sob impressões internas, imperceptíveis às demais pessoas, mesmo íntimas. São de resto, as de maior amargor e de mais desagradáveis efeitos para o lesado, que assim pode, a qualquer tempo, reagir juridicamente".

"Essas observações coadunam-se, aliás, com anatureza dos direitos lesados, eis que, como acentuamos, compõem-se o âmago da personalidade humana, sendo identificáveis por qualquer pessoa de senso comum. Uma vez atingidos, produzem os reflexos danosos próprios, de sorte que basta, em concreto, a demonstração do nexo etiológico entre a lesão e o evento” (Carlos Alberto Bittar, in "Reparação Civil por Danos Morais", Ed. RT, 1993, pp. 202/203).

Lembrava ainda Alberto Trabucchi: "O ressarcimento dos danos morais não atende à restitutio in integrum do dano causado; tende mais a uma genérica função satisfativa, com a qual se procura um bem que compense, em certo modo, o sofrimento ou a humilhação sofrida. Se substitui o conceito de equivalência (próprio do ressarcimento), pelo de reparação, que se obtém atenuando de maneira indireta a conseqüência dos sofrimentos daquele que padeceu uma lesão” (Instituciones de Derecho Civil, v. 1/228, Editorial Revista de Derecho Privado, Madri, 1967 (RT 584/229).

No que concerne à fixação do “quantum debeatur” para a reparação dos danos morais, como é cediço, não existem critérios fornecidos pela lei.

Nessa senda, a jurisprudência aponta alguns indicativos que podem servir de parâmetros na fixação do valor de indenização. Em geral recomenda-se evitar o enriquecimento sem causa do beneficiário e, ao mesmo tempo, repreender o agressor de modo perceptível no seu patrimônio. A ideia que se aceita hodiernamente é de se afastar o estímulo ao ilícito.

Esclarecedor sobre o tema é o precedente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “o arbitramento da condenação a título de dano moral deve operar-se com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao porte empresarial das partes, suas atividades comerciais, e, ainda, ao valor do negócio, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida, notadamente à situação econômica atual, e às peculiaridades de cada caso” (STJ, REsp n. 173.366-SP, 4ª Turma, j. 03-12-1998, rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA).

Diante disso, atento aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e adequação, tendo em conta as circunstâncias que envolveram o fato, as condições pessoais e econômicofinanceiras dos envolvidos, assim como o grau da ofensa moral e a preocupação de não permitir que se transforme em fonte de renda indevida do ofendido, bem como não passe despercebido pela parte ofensora, consistindo, destarte, no necessário efeito pedagógico de evitar futuros e análogos fatos, reputo que o valor fixado pelo juízo de primeiro grau, no importe de R$ 20.000,00, a título de danos morais, se afigura razoável.

Por derradeiro, uma única observação deve ser levada a efeito na r. sentença, destacando-se que, com o advento da Lei nº 11.960, de 29 de junho de 2009, estabeleceu-se novo critério de cálculo dos juros moratórios e da atualização monetária, modificando o texto do art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, que passou a viger com a seguinte redação:

Art. 5º. O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, de 10 de setembro de 1997, introduzido pelo art. 4º da Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, passa a vigorar com a seguinte redação:

'Art. 1º-F. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança.’

Necessário esclarecer, dessa forma, que os juros e atualização monetária incidentes sobre as parcelas em atraso deverão observar o disposto na novel norma, no período posterior a sua vigência, entendimento este adotado a partir da publicação do acórdão proferido pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça nos Embargos de Divergência em Recurso Especial de nº 1.207.197-RS (2011/0028141-3), de relatoria do Ministro Castro Meira, publicado em 02 de agosto de 2011, cuja ementa segue abaixo transcrita:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. JUROS MORATÓRIOS. DIREITO INTERTEMPORAL. PRINCÍPIO DO TEMPUS REGIT ACTUM. ARTIGO 1º-F, DA LEI Nº 9.494/97. MP 2.180-35/2001. LEI Nº 11.960/09. APLICAÇÃO AOS PROCESSOS EM CURSO. 1. A maioria da Corte conheceu dos embargos, ao fundamento de que divergência situa-se na aplicação da lei nova que modifica a taxa de juros de mora, aos processos em curso. Vencido o Relator. 2. As normas que dispõem sobre os juros moratórios possuem natureza eminentemente processual, aplicando-se aos processos em andamento, à luz do princípio tempus regit actum. Precedentes. 3. O art. 1º-F, da Lei nº 9.494/97, modificado pela Medida Provisória 2.180-35 e, posteriormente, pelo artigo 5º da Lei nº 11.960/09, tem natureza instrumental, devendo ser aplicado aos processos em tramitação. Precedentes. 4. Embargos de divergência providos.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento aos recursos, com a observação de que os juros moratórios serão de 1% ao mês e a atualização monetária deverá se dar pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça de São Paulo, até o advento da Lei nº 11.960/09, momento a partir do qual deverão observar o disposto na novel norma.

OSCILD DE LIMA JÚNIOR Relator.


Notas:

[1] Efetividade do Processo e Técnica Processual, 3ª ed., 2010, São Paulo, Malheiros, p. 287.

[2] Direito Administrativo, 20ª ed., 2007, São Paulo, Ed. Atlas, p. 602/603.

[3] Responsabilidade Civil do Estado, 2.ª edição, Malheiros, p. 465.

[4] La Responsabilité Civile, Paris, 1981, pp. 108 e 109; in apelação nº 358.886-4, 7º Câmara, j. 10.02.1987, rel. Juiz Luiz de Azevedo, RT 623/101.

[5] Cláusula de Não Indenizar, Forense, 4º, 1980, pp. 129/130.

Fonte: Boletim Eletrônico INR nº 5877. Publicação em 10/06/2013.


TJSP: Ação de indenização. Danos materiais e morais. Ação proposta em face do Estado, do tabelião de notas e do registrador de imóveis. Obrigação solidária da Fazenda do Estado. Art. 37, §6,º da CRFB. Responsabilidade objetiva do Estado. Culpa do Tabelião de Notas. Ausência de dolo ou culpa do oficial do registro de imóveis.

Fonte: Boletim Eletrônico INR nº. 5751
 (Grupo SERAC)

EMENTA

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – Ajuizamento em face da Fazenda do Estado, de tabelião e de registrador em razão da alienação de imóveis de propriedade do autor por terceiros mediante fraude, com o uso de documentos falsos – Procedência da ação decretada em primeiro grau – Obrigação solidária da Fazenda do Estado pela reparação de eventuais danos que notários e registradores, considerados servidores públicos por equiparação, causarem a terceiros, no exercício da atividade que lhes foi delegada, por aplicação da norma inserida no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal Aludidos agentes públicos, no entanto, que somente podem responder em face da culpa aquiliana, não lhes podendo ser atribuída a responsabilidade objetiva, que é inaplicável aos demais servidores, sob pena de afronta ao princípio da isonomia – Oficial de registro acionado que, por sua vez, não praticou conduta omissiva ou comissiva apta a produzir as lesões aduzidas na exordial, arredando a pretensão indenizatória deduzida em relação a ele – Lavratura da escritura, porém, que se deu sem a necessária diligência na identificação dos vendedores, que se utilizaram de documentos falsos com vícios facilmente identificáveis, evidenciando o proceder culposo do responsável pelo ato e a consequente responsabilidade do Notário e da Fazenda do Estado pelo evento danoso, incidindo na espécie as disposições contidas nos artigos 37, § 6º, da CF e 22 da Lei Federal nº 8.935/94 – Demonstração do dano material atinente às despesas que o ora promovente realizou com a contratação de advogado, para reaver seus imóveis, que não encontra respaldo no instrumento colacionado, haja vista não se encontrar subscrito pelos contratantes – Ocorrência dos gastos, entretanto, que é evidente, diante da necessidade de ajuizamento de ação judicial, devendo, então, a remuneração adequada àquele patrono, objeto do respectivo ressarcimento nestes autos, ser objeto de liquidação por arbitramento Pretensão reparatória, contudo, que não pode ultrapassar a esfera patrimonial – Fato lesivo identificado nos autos que não é apto a produzir abalo relevante à honra objetiva e carece de potencialidade para afetar direitos da personalidade do autor, não ensejando indenização por dano moral – Apelo do corréu Plínio provido, improvido o do autor e providos em parte o reexame necessário e os recursos dos demais acionados. (TJSP – Apelação Cível nº 0618604-20.2008.8.26.0053 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti – DJ 24.09.2013)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação / Reexame Necessário nº 0618604–20.2008.8.26.0053, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes/apelados FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO, FERNANDO SOLON BORGES e PLINIO ANTONIO CHAGAS e Apelante JUÍZO EXOFFÍCIO, é apelado/apelante PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LOBO.

ACORDAM, em 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento ao apelo do autor, deram provimento ao apelo do corréu Plínio Antonio Chagas, deram provimento parcial ao reexame necessário e aos apelos da Fazenda do Estado e do correu Fernando Sólon Borges, nos termos que constarão do acórdão. V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores CARVALHO VIANA (Presidente) e RUBENS RIHL.

São Paulo, 12 de setembro de 2012.

PAULO DIMAS MASCARETTI – Relator.

RELATÓRIO

Cuida–se de ação processada sob o rito ordinário movida por Paulo Roberto de Oliveira Lobo em face de Fernando Sólon Borges, Plínio Antônio Chagas e da Fazenda do Estado de São Paulo, objetivando a condenação destes ao pagamento de indenização por danos materiais e morais, nos moldes da petição inicial.

Sustentou o autor, em síntese, que: é empresário que atua no ramo imobiliário, executando incorporações, edificações de prédios etc., e casado com Maria Antônia Ribeiro Lourenço, pelo regime de separação total de bens, desde 3 de agosto de 1995; em 15 de abril de 1997, realizou negócio jurídico com Úrsula Elisa Blumer para aquisição do imóvel localizado na Rua Lydia Damus Maksoud, lote 11, da quadra “b”; em 28 de maio de 1997, adquiriu dos espólios de Jairo Monteiro e Tarsila Friederichs Monteiro, os lotes 12 e 14, da quadra “b”, daquela mesma rua; levou a respectiva escritura a registro perante o 11º Cartório de Registro de Imóveis desta Capital, o que somente veio a ocorrer em 4 de julho de 1997, após a retificação e ratificação do documento para que fossem sanados erros formais nele identificados; em 4 de outubro de 1999, adquiriu de Ernesto Gioia e de sua mulher Yaci Aparecida Icassati Gioia e de Liliana Gioia Moral o lote 13 daquela mesma sequência de terrenos, cuja escritura foi igualmente levada a registro no 11º Cartório de Registro de Imóveis desta Capital e, da mesma forma, objeto de retificação para correção de vícios formais; em agosto de 2007, concluiu negociação para venda do lote 14, da quadra “b”, mas veio a ser informado pela intermediadora responsável que a certidão imobiliária havia apontado Flávio Silveiro Siqueira como proprietário do bem, desde 22 de março de 2007; tomou então conhecimento de que fora lavrada escritura pública perante o 3º Tabelião de Notas e Protestos da Comarca de São Caetano do Sul, transferindo a propriedade daquele imóvel; naquela oportunidade, o Tabelião e ora corréu Fernando Sólon Borges informou que o escrevente responsável pela lavratura da aludida escritura teria sido demitido por justa causa, em razão de várias faltas funcionais que cometera, sendo apontado como o responsável pela lavratura das escrituras de outros três imóveis de sua propriedade que também teriam sido adquiridos por Flávio Silveiro Siqueira; obteve, então, cópias reprográficas das citadas escrituras, pelas quais foi obrigado a desembolsar o importe de R$ 137,68 (cento e trinta e sete reais e sessenta e oito centavos), noticiando o ocorrido à autoridade policial, que instaurou o respectivo inquérito; outrossim, no âmbito civil, ajuizou ação cautelar de arresto de bens, na qual foi deferido o bloqueio das matrículas dos imóveis indevidamente transferidos, recolhendo a título de custas judiciais naquela ação cautelar, e posteriormente na principal, a importância de aproximadamente R$ 24.000,00 (vinte e quatro mil reais); aludidos negócios jurídicos foram anulados por sentença proferida nos autos do processo nº 583.02.2007.152380–5, da 6ª Vara Cível do Foro Regional de Santo Amaro e, em 23 de abril de 2008, expediu–se mandado ao 11º Cartório de Registro de Imóveis da Capital para cancelamento dos respectivos registros, o qual foi regularmente cumprido pelo Oficial, mediante o recolhimento da quantia de R$ 173,24 (cento e setenta e três reais e vinte e quatro centavos); no entanto, fica claro que, para reaver sua propriedade, teve que arcar com vultosa quantia e ficou com sua imagem desgastada perante terceiros, encontrando–se aflito com eventuais inconsistências perante a Receita Federal; além disso, agora pesam máculas sobre os imóveis ilegalmente transacionados, depreciando–os, não se podendo olvidar, ainda, as noites de sono mal dormidas em razão do infortúnio; por outro lado, ao examinar as escrituras indevidamente lavradas, constata–se que o 3º Tabelião de Notas de São Caetano do Sul e o Oficial do 11º Cartório de Registro de Imóveis desta Capital não observaram o mínimo das formalidades legais para suas lavraturas e registros, cometendo erros grosseiros no exercício de suas funções públicas; esses corréus agiram de forma negligente, imprudente e imperita, ficando responsáveis pela reparação de todos os prejuízos que sofreu, na forma do que estabelece o artigo 28 da Lei de Registros Públicos, evidenciado na espécie o nexo de causalidade entre aquelas condutas e os danos verificados; outrossim, na medida em que o artigo 236 da Constituição Federal estabelece que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, também a Fazenda do Estado deve responder pelas consequências dos atos ilegalmente praticados pelos agentes públicos, por aplicação da regra contida no artigo 37, § 6º, da Carta Magna, sendo todos os demandados solidária e objetivamente responsáveis pela reparação das lesões patrimoniais e extrapatrimoniais que lhe causaram. Daí o ajuizamento da presente ação, objetivando a condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos materiais, equivalente a R$ 110.310,92 (cento e dez mil, trezentos e dez reais e noventa e dois centavos), e também por danos morais, estimados em R$ 90.000,00 (noventa mil reais).

A r. sentença de fls. 534/538, prolatada pelo douto juiz Marcos Pimentel Tamassia, julgou parcialmente procedente o pedido, para o fim de “condenar os réus a pagar, solidariamente, ao autor, a quantia de R$ 110.310,92, com atualização desde a data do ajuizamento da ação e juros de 1% ao ano desde a citação”, repartidas as custas entre a parte autora e a parte ré, na proporção de 50%, arcando cada litigante com a verba honorária advocatícia de seu respectivo patrono.

Os embargos declaratórios opostos ao julgado de primeiro grau pelo corréu Plínio Antonio Chagas foram rejeitados (v. fls. 554/558; 592).

Ordenada a remessa dos autos à Superior Instância para o reexame necessário, no prazo legal, todas as partes apelaram.

Aduziu a Fazenda do Estado, em síntese, que: não foi comprovada a responsabilidade do tabelião em relação à falsidade praticada, pois os documentos apresentavam–se formalmente em ordem e não cabe ao serventuário adentrar o mérito do negócio jurídico; assim, nenhuma relação direta existe entre o fato e os percalços do negócio imobiliário, estando ausente o liame exigido pelo artigo 37, § 6º, da Constituição Federal; de qualquer modo, incabível sua condenação no pagamento da quantia de R$ 110.000,00 (cento e dez mil reais) a título de honorários advocatícios, uma vez que não há qualquer indício da efetiva realização desta despesa; não basta a mera apresentação do contrato particular, no caso nem sequer assinado, sendo imprescindível uma demonstração mínima de que o valor nele contido teria sido realmente desembolsado; admitir–se a pretensão na forma posta na exordial seria laborar em direta afronta ao disposto nos artigos 402 e 403 do Código Civil, que exigem a prova dos prejuízos efetivos, por efeito direto do fato; essa verba foi expressamente impugnada na defesa, cabendo ao autor revelar a sua autenticidade, mas quedou–se inerte, deixando de se desincumbir do ônus da prova. Daí postular a reforma do decisum.

O autor, por seu turno, alegou, em essência, que: basta uma simples análise dos documentos produzidos pelos acionados para se verificar os erros grosseiros que cometeram, marginalizando os princípios da continuidade, especialidade e da legalidade; não se pode concluir terem os agentes públicos acionados agido com dolo no desempenho de seus misteres, mas o fizeram com negligência, imprudência e imperícia no exercício de atividade relacionada à prestação de serviço público, causando–lhe danos materiais e morais, pelos quais devem responder, na forma do artigo 28 da Lei de Registros Públicos; ademais, os prejuízos ocasionados a terceiros pelos prestadores de serviços públicos, dentre os quais estão os Cartórios de Notas e os Oficiais de Registros Públicos, atrai a responsabilidade civil objetiva do Estado, também denominada como risco administrativo, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal; além disso, demonstrou nos autos que foi atingido em sua alma por aqueles atos, razão pela qual os requeridos devem ser solidariamente condenados ao pagamento da indenização pelos danos morais que lhe causaram, no importe de R$ 90.000,00 (noventa mil reais).

O corréu Fernando Sólon Borges igualmente recorreu, sustentando, em resumo, que: o julgador a quo norteou–se no princípio de que o ônus da prova incumbe a quem alega, nos termos do artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil, afastando o pedido relativo à indenização por danos morais; no entanto, concedeu ao apelado a reparação pelos prejuízos patrimoniais calcado em mera suposição, sem qualquer respaldo nas provas dos autos; não há documento apto a comprovar as despesas alegadas em relação ao pagamento de honorários advocatícios no valor de R$ 110.000,00 (cento e dez mil reais), carecendo o contrato apresentado de elementos que o corroborassem; ao admitir essa pretensão nestes termos, a sentença afrontou claramente o disposto nos artigos 402 e 403 do Código Civil, que exige a demonstração dos prejuízos efetivos, por efeito direto do ato ilícito.

Plínio Antonio Chagas, a seu turno, afirmou, em suma, que: não foi demonstrado nos autos o nexo de causalidade entre os danos invocados na petição inicial e conduta que lhe pudesse ser atribuída; a decisão de primeiro grau viola o artigo 215 do Código Civil em sua leitura conjugada com o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, pois toda a descrição dos fatos tidos como violadores do direito do promovente referem–se a atos notariais, não estando presente o binômio ação/omissão, essencial à caracterização do dever indenizatório; não é do registrador de imóveis o dever de conferir os documentos das partes, haja vista que referida norma legal estabelece que a escritura faz prova plena do que nela se contém; as escrituras levadas a registro continham os requisitos previstos nos incisos do artigo 215, § 1º, do Código Civil, que são estranhos ao registrador; o documento apresentava–se formalmente perfeito, com todos os elementos cabentes ao notário nela rigorosamente inseridos, sem possibilidade de oposição pelo titular do ofício registral; aliás, não se inclui no rol de obrigações do registrador de imóveis o dever de checar os documentos exibidos na escritura pública para identificação de seus signatários, merecendo a assinatura do 3º Tabelião de Notas de São Caetano do Sul integral credibilidade, como se constata da leitura das Leis Federais nºs 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), 8.935/94 (Lei dos Notários e dos Registradores), 7.433/85, e respectivo Decreto nº 93.240/86, bem assim dos artigos 215 do Código Civil de 2002 e 366 do Código de Processo Civil; além disso, na espécie, sua responsabilidade é subjetiva, ao passo que a do Estado é objetiva, não sendo possível figurar como coobrigado solidário da Fazenda e do Tabelião de Notas, quando a solidariedade não se presume, mas resulta da lei ou da vontade das partes, como manda a regra do artigo 265 do Código Civil; na verdade, os litisconsortes passivos têm sua intervenção definida no próprio artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, sendo a responsabilidade do agente sempre pessoal e a do Estado sempre objetiva, o que demandaria o pronto afastamento dos oficiais de registro e notarial da relação processual; tal questão tem repercussão geral, cabendo seu prequestionamento desde logo; por outro lado, o contrato juntado aos autos carece de requisito essencial, visto que despido de assinatura, não se prestando a comprovar a realização de despesas com honorários advocatícios, a teor dos artigos 368 a 371 do Código de Processo Civil e 212 a 221 do Código Civil.

Contrarrazões a fls. 601/613 e 634/647.

É o relatório.

VOTO

No julgamento do agravo de instrumento tirado dos autos da presente ação contra a decisão que julgara extinto o feito em relação à Fazenda do Estado, pelo reconhecimento da ilegitimidade passiva ad causam, esta Câmara decidiu, precisamente, que:

“É de considerar que a Fazenda do Estado pode ser responsabilizada civilmente pelos atos praticados por notários, oficiais de registro e seus prepostos que, nessa condição, causem prejuízos a terceiros.

Em relação aos serviços notariais, estabelece o artigo 236 da Constituição Federal, em seus parágrafos 1º e 3º, que:

‘Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

( )

§ 3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso púbico de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses’.

Por sua vez, os artigos 37 e 38 da Lei n° 8.935/94, que regulamenta o aludido artigo 236 da Carta Magna, dispõem, in verbis:

'Art. 37. A fiscalização judiciária dos atos notariais e de registro, mencionados nos arts. 6º a 13, será exercida pelo juízo competente, assim definido na órbita estadual e do Distrito Federal, sempre que necessário, ou mediante representação de qualquer interessado, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos.

(…)

Art. 38. O juízo competente zelará para que os serviços notariais e de registro sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desses serviços, observados, também, critérios populacionais e socioeconômicos, publicados regularmente pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística’.

Verifica–se, daí, que o Estado tem o dever de fiscalizar os serviços notariais, de forma a garantir a qualidade do serviço público disponibilizado e a segurança de seus usuários, respondendo, em princípio, pela má prestação desse serviço.

Ademais, os notários e registradores realizam a atividade em nome próprio, em caráter privado, mas por delegação do Poder Público, qualificando–se, portanto, como agentes públicos delegados.

Forçoso reconhecer, destarte, que, pelo menos em tese, pode ser empenhada a responsabilidade da Administração pelos atos dos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais que no exercício destas funções causem danos a terceiros, o que, à evidência, justifica a intromissão da Fazenda Estadual no polo passivo da demanda em causa.

Neste sentido, aliás, firmou–se a jurisprudência do Pretório Excelso, consoante se verifica dos seguintes precedentes, dentre outros:

‘Constitucional. Servidor Público. Titulares de Ofício de Justiça: Responsabilidade Civil. Responsabilidade do Estado. CF, art. 37, § 6º. I Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercício de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (C.F., art. 37, § 6º). II Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido’ (v. AgR no RE nº 209354–PR, 2ª Turma, relator Ministro Carlos Velloso, j. 02/03/1999);

'Responsabilidade Objetiva Estado Reconhecimento de Firma Cartório Oficializado. Responde o Estado pelos danos causados em razão de reconhecimento de firma considerada assinatura falsa. Em se tratando de atividade cartorária exercida à luz do artigo 236 da Constituição Federal, a responsabilidade objetiva é do notário, no que assume posição semelhante à das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos § 6º do artigo 37 também da Carta da República' (v. RE nº 201595, 2ª Turma, relator Ministro Marco Aurélio, j. 28/11/2000);

'Constitucional e Administrativo. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário. Responsabilidade Extracontratual do Estado. Tabelião. Agente Público. Art. 37, § 6º, da CF/88. 1. A função eminentemente pública dos serviços notariais configura a natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais. RE 209.354/PR. 2. Responsabilidade extracontratual do Estado caracterizada. 3. Reexame de fatos e provas para eventual desconstituição do acórdão recorrido. Incidência da Súmula STF 279. 4. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. 5. Agravo regimental improvido' (v. AgR no RE nº 551156/SC, 2ª Turma, relator Ministra Ellen Gracie, j. 10/03/2009).

Na mesma linha de entendimento, diversos julgados desta Corte Paulista assentam, na justa medida, que:

'Ação de Reparação de Danos materiais e morais ajuizada face ao indevido registro de título judicial efetuado pelo Cartório de Registro de Imóveis Responsabilidade solidária do Estado A prática de atos notariais é de responsabilidade do Estado Comando normativo constitucional do art. 236 Negado provimento aos recursos voluntário e oficial e não conhecimento do agravo retido interposto pela Fazenda Estadual' (v. Apelação Cível nº 420.905.5/1–00, 9ª Câmara de Direito Público, relator Desembargador Oswaldo Luiz Palu, j. 24/03/2010);

'Ação de indenização por perdas e danos movida contra Estado, em virtude de ato ilícito cometido por agente notarial, que deixou de recolher ITBI, custas e emolumentos devidos por lavratura de escritura de venda e compra, embora recebesse da parte o valor respectivo. Sentença que reconhece ilegitimação passiva da Fazenda do Estado. Acolhimento do recurso dos autores. Estado que responde, na forma do art. 37, parág. 6º, da CF, pelos atos dos agentes incumbidos de serviço público delegado, como tabeliães. Precedentes. Recurso provido para afastar a carência e julgar a ação procedente' (v. Apelação Cível nº 994.03.071657–6, 11ª Câmara de Direito Público, relator Desembargador Aroldo Viotti, j. 18/01/2010);

'Responsabilidade Civil. Tabelionato. Art. 236 da CF, LF nº 8.935/94. Falso reconhecimento de firma. Indenização. Legitimidade passiva. Tabelionato. Responsabilidade. O Estado responde pelos danos causados pelos tabeliães e registradores, ante a natureza pública das funções a eles delegadas. Jurisprudência tranqüila' (v. Apelação Cível nº 805.578.5/4–00, 10ª Câmara de Direito Público, relator Desembargador Torres de Carvalho, j. 21/12/2009);

'Ação Indenizatória Venda fraudulenta de imóvel sobre o qual foi construído um edifício Negligência do serviço registral Serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação legal do Poder Público (art. 236 da CF), desempenham atividade munida de fé pública, o que configura sua função pública para o desempenho de funções técnicoadministrativas destinadas a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos, e constituem órgãos públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores públicos O princípio da responsabilidade objetiva do Estado, previsto no art. 37, §6°, da CF, aplica–se aos titulares de serventias de notas e registros, que são servidores públicos em sentido amplo, pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercício de tais funções Recurso parcialmente provido somente para reduzir a verba honorária arbitrada' (v. Apelação Cível nº 898.671.5/4–00, 11ª Câmara de Direito Público, relator Desembargador Francisco Vicente Rossi, j. 10/08/2009);

'Ilegitimidade ad causam Fazenda do Estado Não ocorrência Ato de cartorário Função delegada Responsabilidade solidária e objetiva Manutenção do ente estatal no pólo passivo da demanda Recursos não providos' (v. Apelação Cível nº 159.914–5–00, 1ª Câmara de Direito Público, relator Desembargador Roberto Bedaque, j. 25/06/2002)” (v. Agravo de Instrumento nº 0063223–78.2010.8.26.0000, j. 12/05/2010).

Assentou–se, nesse passo, a obrigação solidária da Fazenda do Estado pela reparação de eventuais danos que notários e registradores, no exercício da atividade que lhes foi delegada, causarem a terceiros, por aplicação da norma inserida no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, que consagra a responsabilidade objetiva da Administração Pública.

Na lição de Hely Lopes Meirelles:

o exame desse dispositivo revela que o constituinte estabeleceu para todas as entidades estatais e seus desmembramentos administrativos a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros por seus servidores, independentemente da prova de culpa no cometimento da lesão. Firmou, assim, o princípio objetivo da responsabilidade sem culpa pela atuação lesiva dos agentes públicos e seus delegados (v. “Direito Administrativo Brasileiro”, 22ª edição, p. 566).

Restou ainda definida naquele aresto a possibilidade de eventual exercício de direito de regresso do ente público em face do agente delegado e deste contra o empregado do cartório, desde que evidenciado terem, cada qual, concorrido decisivamente para a ocorrência do evento danoso, agindo com dolo ou culpa.

E, realmente, a propósito, anota Rui Stoco, precisamente, que:

… os serventuários, ou seja, titulares das serventias extrajudiciais, são considerados servidores públicos por equiparação, de modo que, tal como os escrivães, respondem pelos atos seus e dos funcionários da serventia que causem danos a terceiros.

(…)

O Estado responde pelos atos desses serventuários (ou praticados por seus empregados credenciados), porque assumem a condição de agentes públicos, com direito de regresso contra o causador do dano.

Essa responsabilidade do Estado é objetiva, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88, mas não exclui a responsabilidade solidária do serventuário, se tiver agido com dolo ou culpa.

Este, por sua vez, terá direito de regresso contra o empregado do cartório que tenha sido o causador direto do dano” (v. “Tratado de Responsabilidade Civil: Doutrina e Jurisprudência”, 8ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 1176/1178).

E nem se há alegar que seria igualmente objetiva a responsabilidade dos serventuários pela reparação do dano provocado a terceiros, em razão de atuação dolosa ou culposa sua ou de funcionário do cartório.

Invocando novamente a lição de Rui Stoco:

Não há dissensões, dúvidas ou controvérsias na doutrina e na jurisprudência de que a responsabilidade do Estado é objetiva, com direito de regresso contra o preposto, desde que este tenha agido com dolo ou culpa.

Desse modo, se todos os servidores públicos ou agentes públicos típicos, por equiparação, ou particulares exercendo atividade pública delegada pelo Estado só respondem em face da culpa aquiliana, como seria possível impor a responsabilidade objetiva a apenas um segmento da atividade administrativa do Estado, ou seja, os notários e registradores?

Se tal ocorresse, ressuma evidente, palmar e indiscutível a inadmissível discriminação da lei infraconstitucional, com ofensa ao princípio da isonomia.

(…)

Portanto, se o princípio da isonomia for uma proposição garantidora da igualdade universal positiva, com força de igualar os iguais em direitos, estendendo–os aos que foram injustamente discriminados, então a solução não comporta temperamentos; não há como fazer incidir a regra infraconstitucional discriminatória contida no art. 22 da Lei 8.935/94, que deve ser pura e simplesmente desprezada.

Para nós, contudo, a redação desse artigo não conflita com o § 6º do art. 37 da CF/88, na medida em que de sua exegese não se infere a adoção do princípio da responsabilidade objetiva dos notários e registradores.

(…)

Do que se conclui que o citado art. 22 da lei em comento se harmoniza com a Carta Magna que a precede e, portanto, como não poderia deixar de ser, acolheu, à sua imagem, a teoria da responsabilidade subjetiva ou com culpa dos agentes da Administração Pública quando, nessa qualidade, causarem danos a terceiros” (v. obra citada, pp. 685/686).

Importa, então, aqui, apenas verificar a presença dos requisitos da ação/omissão, dano e nexo causal nos quais se assentam a responsabilidade civil, e, uma vez reconhecida a existência desse pressuposto indenizatório, delimitar a extensão das condutas de cada um dos agentes públicos envolvidos.

Pois bem.

Emerge dos autos que: em agosto de 2007, o promovente pretendeu alienar terreno de sua propriedade, localizado na Rua Lydia Damus Maksoud, lote 14, da quadra “b”, do Jardim Ampliação, Subdistrito de Santo Amaro, nesta Capital, mas acabou por constatar que referido imóvel encontrava–se em nome de Flávio Silveiro Siqueira, desde 22 de março daquele ano, por escritura pública lavrada perante o 3º Tabelião de Notas e Protestos da Comarca de São Caetano do Sul; naquela oportunidade, foi ainda informado pelo Notário, o ora corréu Fernando Sólon Borges, que outros três imóveis de sua propriedade haviam sido igualmente adquiridos pela mesma pessoa, por meio de escrituras lavradas naquela serventia e pelo mesmo funcionário, posteriormente demitido por justa causa em razão de irregularidades cometidas no exercício de seu mister; viu–se, então, obrigado a buscar perante o Judiciário a anulação dos aludidos negócios jurídicos e o cancelamento dos respectivos registros, desembolsando para tanto consideráveis quantias.

É fato incontroverso nos autos a aquisição de imóveis de propriedade do autor por terceiros mediante fraude, impondo–lhe evidentes prejuízos com as providências necessárias para reavê–los.

Cumpre registrar, de início, que não se demonstrou nos autos conduta omissiva ou comissiva do acionado oficial de registro que de algum modo tivesse concorrido para a ocorrência da lesão aduzida pelo promovente como fundamento da ação em tela.

O registro de imóveis tem por fim caracterizar a propriedade “erga omnes”, firmando–lhe a continuidade, uma vez verificado que o título reveste–se das formalidades legais internas e externas.

E estes requisitos estavam presentes na hipótese dos autos, autorizando mesmo que se levasse a registro as escrituras apresentadas, não se divisando qualquer vício na atuação do registrador ora acionado.

Como bem realçado pelo corréu Plínio Antonio Chagas em sua contestação:

Percorrida a Lei dos Registros Públicos (nº 6.015/1973) e lida a Lei nº 8.935/1994 (dita dos Notários e dos Registradores) se verifica que no rol das obrigações do registrador de imóveis não se inclui o dever de checar, um a um, os documentos exibidos na escritura pública para identificação de seus signatários.

Mais do que isso: não é seu o dever de conferir qualquer documento das partes. A escritura, diz bem o art. 215 do Código Civil, faz prova plena do que nela se contém, ajustada ao exame extrínseco cabente ao delegado de imóveis. Diz o texto legal: 'A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena'.

As escrituras em causa, lavradas em nota de tabelião, faziam, quando apresentadas a registro, prova plena do negócio jurídico aos quais se reportavam (venda e compra de bens imóveis), vale dizer, estavam dotadas de fé pública que o contestante não podia por em dúvida.

(…)

A regra do art. 2.039 do Código Civil de 2002, a dizer que 'o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido' configura outro indicativo legal a mostrar a correção formal das escrituras públicas apresentadas a registro.

Isso porque, ao se reportar ao regime estabelecido no Código Civil de 1916, tem aplicação a regra do art. 235, I, segundo a qual o marido não pode, sem consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens, alienar imóveis.

(…)

Vistas as regras dos arts. 235, 259 e 276 da codificação de 1916, que permanecem vinculantes ao matrimônio do Autor, constata–se que a liberdade do cônjuge para livremente alienar bens é limitada aos móveis, não aos imóveis.

Eis mais uma razão para inexistir qualquer ilicitude no comparecimento da mulher do Autor, nas escrituras, como outorgante vendedora dos imóveis” (v. fls. 168/173).

Nesse passo, não se divisa na atuação do oficial de registro demandado as ilegalidades sustentadas na petição inicial da ação, as quais, ainda que reconhecidas, não poderiam produzir os reflexos patrimoniais negativos invocados pelo autor, arredando a pertinência da pretensão indenizatória deduzida em relação a este corréu.

De outra banda, os elementos de convicção coligidos permitem, no entanto, entrever a existência do nexo de causalidade entre a alardeada lesão e a má prestação do serviço público, o que autoriza a responsabilização solidária da Fazenda do Estado e do agente público delegado causador direto do dano, perseguida na demanda em causa.

Com efeito, a teor do que impõe a Lei Federal nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, incumbe aos notários “intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo”, competindo–lhes, com exclusividade, “lavrar escrituras e procurações públicas”, facultada a realização de “todas as gestões e diligências necessárias ou convenientes ao preparo dos atos notariais, requerendo o que couber, sem ônus maiores que os emolumentos devidos pelo ato” (v. arts. 6º e 7º).

No particular, o próprio corréu Fernando Solon Borges afirma que, “para a elaboração das escrituras, o escrevente se cercou de todos os cuidados necessários, quais sejam: a) a presença das partes Comprador e Vendedores; b) a apresentação dos documentos originais de identificação das partes (cédula de identidade) do Comprador e Vendedores; c) o preenchimento e assinatura das fichas de identificação notarial por parte do Comprador e Vendedores; d) a apresentação da matrícula dos imóveis descritos e caracterizados para obtenção dos dados, a fim de comprovar o fim específico objeto da lavratura da escritura” (v. fls. 256/257).

Todavia, tais providências, conquanto obrigatórias, não foram realizadas a contento por ocasião da lavratura das ilegítimas escrituras perante o 3º Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos da Comarca de São Caetano do Sul, haja vista que os documentos de identificação apresentados pelos pretensos vendedores naquela oportunidade continham vícios constatáveis ictu oculi pelo agente do serviço notarial, impedindo a formalização do ato sem que fossem elucidadas aquelas inconsistências.

Ora, verifica–se que a Carteira de Identidade em nome de Paulo Roberto de Oliveira Lobo, apresentada ao tabelião de notas para identificação do vendedor, como condição à lavratura da escritura, aponta como documento de origem “CC LV. A25/FLS. 114V/N. 1265” (v. fl. 110); tal indicação era manifestamente inverossímil, uma vez que o livro “A” é reservado às inscrições de nascimentos, sendo destinado o livro “B” aos registros de casamentos, na forma estabelecida no artigo 33 da Lei Federal nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973; à evidência, ao escrevente versado nas atividades notariais, não era dado desconhecer ou desconsiderar esta falta, dando prosseguimento ao ato.

Além disso, nova omissão restou caracterizada na realização dos atos notariais em questão, pois também a cédula de identidade apresentada em nome de Maria Antônia Ribeiro Lourenço Lobo continha erro que poderia ser facilmente identificado pelo responsável pela lavratura da escritura; referido documento indicava número incorreto do CPF da titular (v. fl. 116), o que não foi observado pelo funcionário do 3º Tabelião de Notas, conquanto tivesse outros elementos em mãos que permitiam verificar o erro, tanto que lavrou as escrituras fazendo referência à numeração correta daquele cadastro federal (v. fls. 71/82).

Forçoso reconhecer, destarte, que a falta de diligência do escrevente na realização do ato concorreu decisivamente para a ocorrência dos danos alardeados pelo autor na petição inicial da ação, visto que permitiu que se concretizasse a ilegal alienação dos imóveis do autor por terceiros, evidenciando, então, a falha na prestação do serviço público, realçada pela conduta culposa do aludido agente do tabelionato.

Logo, positivou–se nos autos fato lesivo de agente delegado da Administração, o que empenha o dever de indenizar do Estado, por aplicação da regra contida no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, em solidariedade com o agente público delegado, diante da falta cometida pelo escrevente, por cujos atos é civilmente responsável, na forma do artigo 22 da Lei Federal nº 8.935/94, assegurado, em ambos os casos, o direito de regresso, como anotado precedentemente.

No que tange à quantia devida para reparação do dano material, não houve qualquer insurgência dos acionados quanto às verbas apontadas a título de despesas com emolumentos, no valor de R$ 310,92 (trezentos e dez reais e noventa e dois centavos), restando apenas a questão relativa ao ressarcimento dos honorários advocatícios contratados de R$ 110.000,00 (cento e dez mil reais).

A ocorrência dessa lesão patrimonial é evidente e decorre da própria necessidade que teve o promovente de socorrer–se do Judiciário para reaver suas propriedades, suportando notórias despesas com a contratação de profissional do Direito para lograr seu intento.

É certo que o instrumento acostado a fls. 122/124, que supostamente serviria à demonstração do dispêndio realizado pelo autor para pagamento de advogados, não foi subscrito pelos contratantes, e tampouco houve comprovação cabal do desembolso do valor nele indicado; no entanto, tal fato não tem o condão de afastar o ressarcimento postulado na exordial em relação a esta despesa que suportou o autor como decorrência da falha na prestação de serviço público por parte do Estado; aludido “Instrumento Particular de Contrato de Prestação de Serviços Advocatícios” não pode realmente servir como fonte de demonstração dos gastos ali declinados, mas faz prova da contratação do profissional, cuja remuneração adequada, a ser objeto de ressarcimento nestes autos, deverá, então, ser oportunamente apurada em liquidação por arbitramento, na forma prevista nos artigos 475–C e 475–D, ambos do Código de Processo Civil.

Todavia, não se mostra realmente possível ultrapassar a esfera material na reparação devida.

O alegado prejuízo moral não era mesmo de ser reconhecido.

Bem de ver que o fato lesivo identificado nos autos não é apto a produzir abalo relevante à honra objetiva e carece de potencialidade para afetar direitos da personalidade do autor, não se divisando, nas circunstâncias, a superação do limite imposto pelo proveito social das indenizações.

Normalmente, o conteúdo do dano moral é a dor, a emoção, a vergonha ou outra sensação dolorosa vivenciada pela pessoa.

No caso vertente, a mera impossibilidade de concluir a alienação de seu imóvel, ante a fraude posteriormente revelada, não importa aflição tal que autorize a reparação pleiteada; ao contrário, aos olhos do homem comum o autor figurou apenas como vítima e prejudicado, jamais teve sua imagem maculada perante terceiros.

E, no tocante às demais aflições e atribulações que foi obrigado a enfrentar para reaver suas propriedades, com as inquietações daí decorrentes, não se pode alçá–las ao patamar de dano extrapatrimonial passível de reparação.

Já teve a oportunidade de decidir esta Corte que “a indenização por dano moral não cabe, se verificado que os autores não sofreram dor significativa a justificá–la, bastando a de ordem material, evitando que se tire lucro indevido do infortúnio” (v. JTJ–Lex 149/171).

E também no mesmo sentido manifestouse o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, ao assentar que “o mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem a ela se dirige” (v. RSTJ 150/382).

Não se reconhece, assim, a presença de elementos que dessem ensejo à reparação moral pretendida.

Importa, aqui, verificar que o dano experimentado pelo acionante restringiu–se às quantias monetárias despendidas, sem produzir lesão de outra sorte; portanto, o ressarcimento deve realmente ficar limitado aos prejuízos financeiros anotados.

Ante o exposto:

– nega–se provimento ao apelo do autor;

– dá–se provimento ao apelo do correu Plínio Antonio Chagas para julgar improcedente o pedido inicial em relação a ele, com fundamento no artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil, carreando ao autor o pagamento das custas e despesas processuais, em reembolso, além de verba honorária advocatícia, devida ao patrono deste acionado, fixada em R$ 3.000,00 (três mil reais), atualizada a contar desta data;

– dá–se provimento em parte ao reexame necessário e aos apelos da Fazenda do Estado e do corréu Fernando Sólon Borges, apenas para definir a apuração do valor devido para reparação dos danos materiais, a título de despesas suportadas pelo autor com o pagamento de verba honorária advocatícia, mediante a realização de liquidação por arbitramento. No particular, ficam mantidas as verbas sucumbenciais estabelecidas em primeiro grau.

PAULO DIMAS MASCARETTI Relator.