Multiparentalidade preserva interesse do menor

No caso, filha menor de idade pediu que o pai registral fosse desconsiderado pai biológico e, em contrapartida, que o suposto pai biológico fosse declarado como tal. A menor, de 10 anos de idade, sempre foi cuidada e educada por seus pais registrais, ambos analfabetos e empregados, durante muitos anos, da fazenda do suposto pai biológico, que tendo conhecimento da paternidade, ameaçava demitir todos da família da menina se o fato fosse revelado. O exame em DNA comprovou que o ex-patrão é o pai biológico da menor. 

A juíza Ana Maria Gonçalves Louzada, presidente do IBDFAM/DF, com base na tese da multiparentalidade, decidiu que deve ser reconhecida tanto a paternidade socioafetiva como a biológica, com todos os seus efeitos legais, devendo constar no registro de nascimento da menor de idade a dupla paternidade e estabeleceu a guarda em favor da mãe e do pai afetivo, com a convivência livre a favor do pai biológico. A magistrada fixou alimentos devidos pelo pai biológico no valor de cinco salários mínimos mensais. A decisão é do dia 6 de junho. Na ação foi ressaltado que a demanda é de interesse econômico e refuta a existência de vínculo de afeto com o pai biológico.

Paternidade socioafetiva – O pai registral afirmou, nos autos, nutrir sentimentos de pai em relação à menina, e que a ama como aos demais filhos que possui com a companheira, com quem mantém união estável há 17 anos. Ele também alegou que a registrou por pensar ser sua filha biológica, apesar de já ser vasectomizado quando a esposa ficou grávida. Ficou demonstrado que o homem a registrou pelo afeto que nutria pela infante, uma vez que já devia prever que não era sua filha biológica. 

A menina também demonstrou que reconhece como pai o homem que cuidou dela desde o nascimento, quando questionada sobre com quem morava, a menor respondeu que morava com a mãe, os irmãos e o pai. “A afetividade mantida entre os dois, apesar de não possuírem o mesmo DNA, faz com que deva ser mantida a paternidade até então estabelecida”, afirmou a magistrada.

Durante o processo, o pai biológico se mostrou avesso a esta paternidade, afirmando, inclusive, que não nutre qualquer sentimento pela infante, que possui outra família e que pretende seguir sua vida como antigamente. Fato este que, segundo a decisão, não concede o direito de ver afastada a declaração de paternidade.

Filiação e parentalidade – De acordo com Ana Louzada, o direito ao reconhecimento da multiparentalidade está embasado nos direitos da personalidade e, em atenção ao princípio da proteção integral da criança e do adolescente, “sempre sublinhado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a multiparentalidade se desenha com cores que anunciam um novo caminho social”, disse.

Diferentemente de tempos sombrios, lembrou a presidente do IBDFAM/DF, hoje é possível o reconhecimento da parentalidade sem que haja vínculo biológico. Isto porque, antes da Constituição Federal de 1988, havia no Brasil diversidade de tratamento para os filhos havidos ou não do casamento. Até então prevalecia unicamente o aspecto da consanguinidade, que era o fator determinante na configuração da parentalidade. Contudo, observou a juíza, com o avanço da sociedade e da jurisprudência hoje já é possível desvincular a filiação afetiva da ascendência genética.

“A filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada judicialmente. Isso porque a maternidade (ou paternidade, como no presente caso concreto) que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação”, ressaltou a juíza Ana Louzada.

Direitos da multiparentalidade – A magistrada analisou que quando o filho é adotado no Brasil, perde os vínculos com a família biológica (salvo os impedimentos matrimoniais), não herda e tampouco pode pedir pensionamento alimentar. No entanto, isto não acontece em outros países como na Argentina, onde existe um tipo de adoção, chamada adoção simples, que não exclui o filho adotivo dos direitos supracitados. Para ela, o acolhimento da tese da multiparentalidade é o que vem subsidiar o melhor interesse da criança, uma vez que poderá ser mantida e cuidada por várias pessoas. 

“De se ver que a multiparentalidade, se afigura modelada a este caso concreto. Temos flagrante paternidade socioafetiva estabelecida entre o pai registral e a infante, bem como a evidenciada paternidade biológica, que poderá agasalhar o melhor interesse da autora, na medida em que poderá proporcionar a ela bons colégios, faculdade, saúde, lazer, e, quem sabe, uma outra família que poderá amá-la”, assegurou a presidente do IBDFAM/DF, Ana Louzada.

A juíza refletiu que o pai biológico exibe confortável situação financeira e possui alto padrão de vida, e que “deixar de estender à infante as benesses que esta paternidade pode lhe oferecer, é não atentar para o melhor interesse da criança, Princípio Constitucional e basilar do Estatuto da Criança e do Adolescente! Imprescindível que o Direito acolha a realidade de cada pessoa, a vida como verdadeiramente se apresenta para cada um”, garantiu.

Fonte: IBDFAM | 11/06/2014.

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O reconhecimento voluntário de filho socioafetivo – Por: MARCELO SALAROLI DE OLIVEIRA

* MARCELO SALAROLI DE OLIVEIRA

Não são raros os casos de pais que desejam assumir a paternidade de crianças com as quais não tem vínculo biológico. Diariamente dirigem-se ao balcão do registro civil brasileiro inúmeros pais, bem intencionados, manifestando o desejo de assumir a paternidade da criança que tem por filho, mesmo ciente de que não é o pai biológico da criança, mas que já vivem juntos, como se pai e filho fossem, até está casado com a mãe da criança, com quem, inclusive, tem outros filhos. Indagado acerca do pai biológico da criança, verifica-se que efetivamente não consta paternidade registrada.

O primeiro instituto jurídico que vem à mente para a solução desse caso concreto é a adoção, no entanto, a evolução da ciência jurídica demonstra que o reconhecimento de filho também pode ser usado como instrumento para se formalizar a filiação nesses casos, independentemente de vínculo biológico, mas fundado no vínculo social, afetivo, familiar, público, contínuo e duradouro.

Esse é o reconhecimento voluntário de filho socioafetivo, realizado diretamente em cartório, com inúmeras vantagens para o menor, para os pais e para a sociedade.

O dispositivo legal que dá suporte ao reconhecimento de filho é o artigo 1.607 e seguintes do Código Civil (CC), os quais, em nenhum momento, sequer de passagem, sugerem que a previsão legal se aplica apenas aos filhos biológicos. Não há, mas ainda que houvesse lei nesse sentido, discriminando a origem da filiação para o reconhecimento de filho, ela seria de constitucionalidade duvidosa, já que o artigo 227, § 6º da Constituição Federal veda, categoricamente, designações discriminatórias relativa a filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações.

Estabelecida pelo CC a possibilidade de reconhecimento de filho, genericamente, sem impor requisitos atinentes a espécie ou natureza da filiação, a discussão então é deslocada para o plano conceitual, para se definir quem ostenta essa qualidade de filho, para que então possa ser objeto do reconhecimento. Do ponto de vista lógico, fazendo uma comparação esdrúxula, mas elucidativa, o CC tampouco veda o reconhecimento de um animal de estimação como filho, estaria então permitido esse reconhecimento? Ou ainda, seria possível um suposto pai reconhecer como filho uma pessoa de mesma idade que a sua?

As respostas seguramente são negativas, mas o que importa atentar é que o fundamento dessas negativas se dá no plano conceitual, não no plano legal. Ou seja, é necessário perquirir quem ostenta essa qualidade de filho, para que então possa ser reconhecido. Esse é um trabalho jurídico, exercido pelo intérprete, para buscar o conceito de filho no ordenamento jurídico, o qual está indissociavelmente ligado a um contexto valorativo e social.

O próprio CC admite que o parentesco, onde se inclui a filiação, tenha fundamento em elementos sociais. Em seu artigo 1.593, estabelece que o “parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Ou seja, é notória a desnecessidade de vínculo consanguíneo (ou genético, ou biológico), para que exista a relação de parentesco, já que é expressamente permitida outra origem.

O STJ, que tem por missão constitucional uniformizar, em âmbito nacional, a interpretação da lei federal, é uma fonte segura para o que se entende por filiação e, nessa corte, está pacificado que a socioafetividade é uma forma de estabelecer a filiação, protegida pelo direito (REsp       709.608/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA,  julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009 e REsp 1000356/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/05/2010, DJe 07/06/2010)

Tão clara está a socioafetividade como fonte da filiação, que não se vislumbram justos nem razoáveis motivos para permitir que a filiação biológica tenha um procedimento célere e módico para ganhar a proteção jurídica nos registros públicos e a filiação socioafetiva não o tenha.

Poderia se argumentar que o serviço de registro civil não tem elementos para aferir, no caso concreto, se existe a relação de socioafetividade, no entanto, não se exige qualquer comprovação para a filiação biológica, logo o mesmo tratamento deverá ter a filiação socioafetiva.

A valiosa assistência do Poder Judiciário no processo de adoção é desnecessária quando estamos diante de um caso concreto de paternidade socioafetiva, por três principais motivos: 1) a lei está atenta para a adoção bilateral, mas na hipótese em comento seria uma adoção unilateral, ou seja, será estabelecida apenas a filiação paterna, com o prévio consentimento da mãe; 2) não haverá desconstituição de uma paternidade registrada, pois no registro de nascimento dessa criança não consta paternidade alguma;  3) a paternidade já é uma realidade social e afetiva, que apenas busca ser declarada (não constituída), se não houver a adoção unilateral, o que é muito provável, por ser um processo caro e moroso, ela continuará existindo da mesma forma.

É inegável a importância da criança ter o nome do pai em seus documentos, pois a protege do arbítrio e instabilidade dos relacionamentos adultos. Não é raro acontecer daquele que por muitos anos se comporta como pai socioafetivo querer, posteriormente, abandonar essa paternidade. Se a paternidade está formalizada nos registros públicos, somente por meio de um provimento jurisdicional ela poderá ser negada, ou seja, a criança contará com a proteção do poder judiciário nesse momento difícil em que o pai quer abandoná-la.

Ademais, ter a paternidade estabelecida em sua certidão de nascimento assegurará os direitos decorrente da filiação, quer hereditários, quer alimentícios. Afinal, aquele que não é seu pai biológico, mas que se comporta como pai, tanto afetivamente, quanto socialmente, deve assumir, juridicamente, a responsabilidade por essa relação construída socialmente e que, certamente, cria expectativas na criança, que é um ser especial, em desenvolvimento, para quem é tão importante ter segurança e estabilidade.

Nesse sentido, andaram bem os Estados do Pernambuco (Provimento 09/2013), Maranhão (Provimento 21/2013) e Ceará (Portaria 15/2013), em que já há expressa previsão normativa da averbação de reconhecimento de filho socioafetivo diretamente pelo serviço de registro civil das pessoas naturais.

MARCELO SALAROLI DE OLIVEIRA é Diretor da ARPEN e Registrador em Capivari.

Fonte: Carta Forense | 05/05/2014.

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TJ/SP: Adoção – Sucessão da avó biológica – Pretensão das netas adotadas após morte do pai – Inventário – Despacho de exclusão – Agravo de instrumento improvido.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 426.226.4/2, da Comarca de São Paulo, em que são agravantes ADRIANA MALUF BOGOSSIAN GESUELE e OUTRA, sendo agravados AZIZ BOGOSSIAN e OUTROS:

ACORDAM, em 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o relatório e voto do Relator, que integram este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores Joaquim Garcia (Presidente, com voto), Silvio Marques Neto e Álvares Lobo.

São Paulo, 06 dezembro de 2006

SILVIO MARQUES NETO

Relator

Agravo de Instrumento n° 426.226.4/ 2

Agravantes: ADRIANA MALUF BOGOSSIAN GESUELE e OUTRA Agravados: AZIZ BOGOSSIAN e OUTROS

Comarca: SÃO PAULO

VOTO N° 16.753

EMENTA – ADOÇÃO – SUCESSÃO DA AVÓ BIOLÓGICA – PRETENSÃO DAS NETAS ADOTADAS APÓS MORTE DO PAI – INVENTÁRIO – DESPACHO DE EXCLUSÃO. Agravantes não contempladas no testamento da avó falecida na vigência do Código Reale. Conflito da lei no tempo. Direito adquirido. Mãe casada em segundas núpcias e adoção pelo marido. Adoção na vigência do Código Civil de 1916 e antes do Código de Menores. Ruptura completa do vinculo parental com desaparecimento do direito sucessório. Prevalência da regra “tempus regit actum” quando da abertura da sucessão. Agravo de instrumento improvido.

RELATÓRIO.

Agravo de instrumento interposto contra decisão que excluiu as agravantes da sucessão da avó biológica. O fundamento básico foi o de terem sido adotadas pelo atual cônjuge da mãe, rompendo o parentesco com a família do pai biológico. Entendeu-se também que as agravantes não seriam legatárias vez que a autora da herança dispôs em testamento sobre toda a parte disponível em favor dos filhos que sobreviveram ao pai delas (fl. 18).

Alegam as recorrentes que deve ser aplicado ao presente caso o Código Civil de 1916, não podendo lei posterior regrar sobre o direito adquirido. O vínculo surgido da adoção é restrito a adotante e adotado, estando prejudicado apenas o pátrio poder, o direito de visita, de guarda e Alimentos, mas não o direto sucessório. Foram nominalmente citadas no testamento, sendo então legatárias.

Processou-se o recurso com efeito suspensivo (fl. 36). Foram juntadas as informações (fl. 43). Os agravados responderam (fl. 68).

A D. Procuradoria Geral de Justiça manifestou-se pelo provimento do recurso de (fl. 48).

FUNDAMENTOS.

O tormentoso tema levantado neste recurso estava a merecer uma monografia, no mínimo um acórdão em apelação, não em um simples agravo de instrumento. Além disso, com a Emenda Constitucional 45/2004 não existem mais condições para estudo aprofundado e longas digressões.

Existem duas estranhas omissões nas razões do recurso. Não se sabe por que as agravantes não propuseram este recurso contra o inventariante ou herde nos da autora da herança e por que omitiu a data da morte do pai delas.

As agravantes são filhas biológicas de José Bogossian e Lilian Maluf Bogossian. O pai era filho legitimo e herdeiro necessário de Faride Nasser Bogossian autora do espólio em questão.

José suicidou-se durante a gravidez da filha Adriana. Tempos depois, a mãe contraiu novas núpcias com Arnaldo Napoleone Gesuelie, seu atual marido. Como nessa época as meninas estavam em idade escolar, decidiram fazer a adoção unilateral a fim de evitar problemas para elas. É inegável que a adoção foi feita com a melhor das intenções e o adotante foi o verdadeiro pai das recorrentes desde tenra idade. Sobre esse ato alguém já disse que “a maternidade é um dom da natureza e a adoção é um dom de Deus”.

As recorrentes foram adotadas por Arnaldo Napoleone Gesuelle em 02/08/77 (fl. 28/29), sendo aplicável ao caso o Código Civil de 1916. As adoções foram feitas por escritura pública e após os trâmites legais devidamente averbadas nos assentos de nascimento.

O testamento de 30.03.98 (fl. 26), apesar de fazer referência nominal às agravantes, dispôs dos bens da seguinte forma: metade dos bens disponíveis foi deixada para o filho Ivan Bogossian e a outra metade para os filhos Aziz Bogossian e Roger Bogossian, sendo ressaltado que a legitima deveria ser dividida em partes iguais a todos os filhos. Portanto, não há que se falar em sucessão testamentária, uma vez que as recorrentes não foram contempladas.

Para mais fácil entendimento, principalmente com relação às diversas normas surgidas no curso dos acontecimentos, segue um resumo cronológico.

Vigia o Código Civil de 1916 quando nasceram Cristiane em 1968 e Adriana em 1969. Ao que parece o pai biológico José morreu dia 03.06.1969 e Adriana nasceu cinco meses depois no dia 08.11 do mesmo ano.

A mãe Lilian casou-se de novo e Arnaldo adotou as meninas por escritura de 1977, averbadas em 1978.

Só no dia 10.10.79 surgiu o Código de Menores, Lei 6.697, que criou duas espécies de adoção. A disposição era para o futuro e não atingiu as recorrentes. Para todos os efeitos a adoção delas continuou a ser a agora chamada adoção plena.

Ambas ainda eram menores quando foi promulgada a Constituição em 1988. Dois anos depois, em 13.7.90, já obedecendo à nova ordem, entrou em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei 8.069. Estava instituído todo um novo regime para as adoções. Nesse ano as agravantes já eram maiores.

No dia 30.03.98 a avó Faride faz lavrar seu testamento.

Seguiu-se em 2.002 a promulgação do Código Reale que entrou em vigor dia 10.01.2003. Em 2004 faleceu a avó biológica.

Com base nesses elementos serão examinadas as questões levantadas pelas partes e que se resumem em conflito das leis no tempo e direito adquirido.

Pretendem as recorrentes, legalmente adotadas por terceiro, participar da herança da avó biológica por representação do pai biológico pré-morto. A abertura da sucessão deu-se na vigência do Código Reale em 2004. Nessa ocasião, conforme artigo 1.784 a herança transmitiu-se de imediato aos herdeiros legítimos e testamentários. É com relação a essa data que as agravantes devem provar preencher os requisitos para herdar. Também essa a disposição do artigo 1.787 do Código Reale e 1.577 do Código Beviláqua.

Até a data do óbito nenhum direito hereditário existe. Não há direito a herança de pessoa viva como previsto tanto no artigo 1.784 acima citado como no 1.572 do código anterior. Antes da abertura da sucessão existe apenas expectativa direito. Mesmo assim não se trata de uma vocação absoluta tanto que é possível ocorrer a exclusão da sucessão (CR 1.814 e CB 1.595). Também é possível que ainda em vida o ascendente perca todos os seus bens, nada deixando aos sucessores.

Acrescente-se que a adoção é um ato complexo. Antes era feita por escritura pública (CC art. 375). Hoje é por meio de um processo (ECA art. 47 e CC art. 1.623). Com a escritura ou a decisão judicial aperfeiçoa-se o ato da adoção. Alguns dos efeitos dele decorrentes e dependentes de eventos futuros, como a abertura de sucessão de um ascendente, só podem ser analisados com base na legislação vigente quando desse evento. O magistrado paulista Artur Marques da Silva Filho, no seu trabalho de colaboração para “O Novo Código – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale” (LTr, 1ª ed., p. 1.199) ensina que “A adoção tal como concebida pelo legislador de 2002, é ato jurídico complexo que estabelece vinculo jurídico de filiação. É ato jurídico porque promana inicialmente da vontade autônoma das pessoas envolvidas (art. 1.621, CC). Contudo, os efeitos jurídicos se produzem ex lege (art. 227, § 6º, da CF, e 1.626, CC, dentre outros). Por essa razão afirma à página 1.215 que com adoção desaparece completamente o vinculo parental, exceto para efeitos matrimoniais enquanto que dois efeitos jurídicos interessantes surgem entre adotado e adotante: alimentos e sucessão.

Foi dito nas razões recursais que adquiriram o direito à sucessão quanto adotadas sob a égide do Código Beviláqua e o atual não pode retroagir, daí o equivoco da decisão atacada. Na verdade, segundo referido despacho, as agravantes não adquiriram nenhum direito à herança quando foram adotadas, pelo contrário, perderam o direito. Se alguma expectativa de direito existia surgiu com o nascimento estabelecendo-se o vinculo parental pelo sangue.

Admitido sem discussões que não há direito a herança de pessoa viva, não há que se falar em direito adquirido. Observe-se que quando do falecimento da autora do espólio em tela, abriu-se a sucessão e nesse momento ela já não tinha Cristiane e Adriana como netas.

Desde logo se verifica que o Ministério Público das duas instâncias se equivocou quando se manifestou pelo provimento do recurso. O parecer no JUÍZ O de origem nem tem nenhum fundamento (fl. 30) e nesta instância foi baseado no artigo 378 do código antigo. Consta lá que os direitos decorrentes do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder.

Em resumo, segundo as agravantes, elas teriam um direito adquirido pelo parentesco natural desde quando nasceram e as leis posteriores não podem alterar essa situação. Essa a questão a ser examinada doravante. Acontece que, como já mostrado acima, a capacidade de herdar é verificada no momento em que a sucessão é aberta e o chamado direito de sucessão não é absoluto e permanente.

A sociedade e a legislação correspondente, em constante evolução e aperfeiçoamento, não podem permanecer estratificadas nas normas vetustas sob o argumento do direito adquirido, sob pena de não progredirem ou injustamente criarem categorias diversas de cidadãos. Se fosse absoluto e imutável o direito de herdar e os outros decorrentes da sucessão biológica e não haveria necessidade de disposições como do artigo1.577 do Código Civil antigo e 1.787 do atual.

Tomemos, por exemplo, o casamento civil. Ele gera um “status” e do qual decorrem direitos e obrigações. As sucessivas alterações legais acompanhando a evolução da sociedade podem e devem alterar esses direitos e obrigações sem atentar contra o “status”. A redação original artigo 233 do Código Civil de 1916 dizia que “O marido é o chefe da sociedade conjugal“. Sem dissolver o casamento, e sem deixar de considerar a família formada com o casamento como a base da sociedade, em razão da evolução dessa mesma sociedade, veio a nova redação com o Estatuto da Mulher Casada mantendo a chefia com o marido, mas estabelecendo que essa função seria exercida com a colaboração da mulher. Seguiu-se a Constituição de 88 estabelecendo no artigo 226, § 5º, que “os direitos e deveres da sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher“.

Nota-se que na busca da igualdade e da harmonia a mulher passou da condição de submissa a colaborara para depois ser igualada. Nada disso alterou o “status” de homem e mulher casados, ou do próprio casamento como base e sustentáculo da sociedade. Apenas os consectários, ou direitos decorrentes do direito básico, matrimônio, é que foram alterados. Ninguém, nem os casados sob o regime do Código Beviláqua, ousaria contestar a divisão de poderes entre marido e mulher.

Igual evolução ocorreu com a adoção. No Código Civil havia uma só espécie e realizada por simples escritura pública. Com o Código de Menores passou a ter duas categorias, simples e plena com inúmeras diferenças. Nessas duas legislações o adotado era sempre diferente dos filhos biológicos. Essa distinção básica repugnava à sociedade. Sérgio Gischkow Pereira, ilustre Desembargador Gaúcho, em estudo intitulado “O Direito da Família e o Novo Código Civil: Principais Alterações” a propósito do Código Civil que entrava em vigor afirmou enfaticamente que “Em contrapartida, o novo Código termina com regras absurdas, como a que, no Código em vigor, permite sucessão do adotado em relação ao pai natural e vice-versa”. (Revista “Seleções Jurídicas – Advocacia Dinâmica”, abril 2003, p. 24).

Uma vez que a adoção é um ato de amor, condição bastante repisada pelas agravantes, não se justificava essa distinção. Disseram elas que foram adotadas para evitar chacotas e embaraços na vida escolar. Então não havia como admitir a distinção popularmente conhecida como entre filhos legítimos e adotivos. Também disseram que estavam desamparados após a morte do pai, por isso a mãe se casou de novo e o marido as adotou. A adoção das agravantes veio então no sentido de amparo também material.

A Constituição no artigo 227, § 6º estabeleceu que “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação“. Isso significa dizer que o filho adotado passou a ter o mesmo “status” daquele havido naturalmente pelo casal adotante, como se também tivesse sido por eles gerado. Não se conhece maior forma de amor familiar e filial do que essa disposição.

Nessa esteira veio o artigo 41 do ECA dispondo que “A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vinculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais“. No aspecto da sucessão, que interessa aqui, o parágrafo segundo ainda acrescentou que “É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o quarto grau, observada a ordem de vocação hereditária“.

Aquela integração e igualdade do adotado com a família adotante passou a ser de tal grau que o artigo 47 do ECA mandou cancelar o registro de nascimento original (§ 2º) e permitiu que no novo registro fosse alterado até o prenome (§ 5º). É o mesmo que nascer de novo na nova família.

Ora, não se está revogando ou desconsiderando o ato de adoção, mas apenas dando a esse mesmo ato novos efeitos criados especialmente em benefício dos adotados.

Se direitos e deveres foram igualados dentro da família adotante, o adotado não pode pretender um benefício extra que o desiguale dos filhos havidos no casamento. É um contra censo, e repugna à lógica admitir que o adotado quebre o princípio da igualdade absoluta criado em seu favor e passe a reclamar, com base na filiação biológica, um duplo direito hereditário. Sim, pois é herdeiro e sucessor dos adotantes, situação que não tinha antes quando da adoção, mas quer conservar o direito sucessório na família biológica.

As regras instituídas pela Constituição são auto aplicáveis e contra elas não existe o direito adquirido. Por essas razões Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, citando Hélio Borghi, afirmam que “fica absolutamente revogada a distinção anterior, situação altamente injusta, como referido, passando tais filhos a terem os mesmos direitos, vale dizer, em iguais proporções como os outros filhos do adotante, quanto à sucessão deste. Assim, não mais vigoram, em termos práticos, os artigos 376, 377 e 1.605, parágrafo 2º, do Código Civil Brasileiro“. (“Inventários e Partilhas”, LEUD, 13ª ed. , p . 51).

Na seqüência, esses mesmos consagrados autores, falando dos efeitos da adoção, afirmam que ocorre o desligamento do vinculo ainda que a adoção tenha ocorrido na vigência do Código Civil de 1916, caso dos autos, por efeito do principio da igualdade adotado na atual Constituição, salvo “se a abertura da sucessão se deu antes” dela. “Mutatis mutandis”, se a sucessão foi aberta na vigência da atual Constituição e atual Código Civil, a adoção feita pelo Código Beviláqua rompeu integralmente o vinculo dos adotados com a família biológica.

Outro magistrado paulista, Márcio Antônio Boscaro, em sua obra “Direito de Filiação” (RT; ed. de 2002, p. 133), também afirma que esse é o entendimento aceito nesta Corte conforme Acórdão inserto em JTJ (LEX) 165/203, para em seguida afirmar que o Colendo Superior Tribunal de Justiça não destoa desse posicionamento conforme dois arestos e cita: “O primeiro deles, publicado na RSTJ 44/150, estabeleceu que o artigo 227, § 6º, da Constituição Federal não poderia ser aplicado a uma sucessão já aberta anteriormente à sua entrada em vigor” e segue justificando que “quando da promulgação da vigente Magna Carta, a herança já havia sido transmitida aos herdeiros, consoante a lei então em vigor“.

Na revista eletrônica “Jus Navegandi”, n°. 232, de 25/2/04, em trabalho doutrinário intitulado “Tribunal de Justiça de Minas Gerais, direitos adquiridos e súmula vinculante”, o advogado e constitucionalista Enéas Castilho Chiarini Júnior, também por raciocínio inverso mostra o acerto da decisão aqui agravada dizendo: “Ora, se a propriedade dos bens se transmite com a morte, isto, no caso em tela, se deu em maio de 1988, antes da Constituição Federal de 1988, onde, pelo direito vigente, o adotado não teria qualquer direito à sucessão. Nesse momento os demais sucessores passaram a ser proprietários dos bens hereditários. Houve a transmissão causa mortis dos bens. Já havia, portanto, por parte dos demais sucessores, o direito adquirido àqueles bens”. E mais adiante: “É claro que, segundo as lições de Alexy, não existe hierarquia entre Direitos Fundamentais, então, neste caso, estar-se-ia diante de um problema a ser solucionado pela regra da proporcionalidade. Neste caso, quanto à limitação da impossibilidade de descriminação dos filhos, me parece que se trata de uma medida adequada, quanto à preservação dos direitos adquiridos. Também parece ser uma medida necessária, à medida que não é possível garantir os direitos adquiridos sem limitar-se a isonomia entre os filhos“. (http://jus2.uol.com.br/doutrj na/texto.asp?id=4883) .

Adotando-se a invocada regra da proporcionalidade, entendo que deva prevalecer a proibição de discriminar os filhos adotivos baseada no princípio da igualdade, em detrimento do direito adquirido no caso de se entender que a adoção pelo Código Civil antigo não rompeu os laços de sangue. Ademais, como já referido acima, o próprio fundamento da adoção, proteger o adotado e melhorar sua situação, estará sendo desvirtuado.

Para finalizar, confirmando o bem lançado despacho do ilustre Juiz João Batista Silvério da Silva, trago à colação ementa de um Acórdão desta Corte relatado pelo Desembargador Manoel Matheus Fontes sobre hipótese análoga: “Inventário – Filha natural adotada por outro casal – Exclusão – Alegado direito a sucessão de pai biológico, conforme art. 378 do CC Inadmissibilidade. Hipótese em que a CF/8, art. 227, § 6º e o art. 41 do ECA, atribuíram a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, desligando-o de qualquer vinculo parental, inclusive sucessório, com os pais biológicos. Não há ofensa ao 5º, XXXVI da CF/88. A adoção é ato perfeito e acabado, válido porque celebrado por meio de escritura pública, única forma viável, segundo a legislação da época. Não necessita, para valer, de sentença judicial transitada em julgado, come atualmente previsto para as adoções de criança e adolescentes (art. 47 da Lei 8.069/90)”. (AI 157.262/1, Iguape, Julg. 05/9/91).

No mesmo sentido:

“Sucessão – Menor impúbere, adotado por terceiros, objetivando participação na herança de sua mãe biológica – Inadmissibilidade – Adoção Plena, de natureza irrevogável, atribuindo a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, desligando-o de qualquer vinculo parental, inclusive sucessório, com os genitores biológicos – Caracterização – O art. 378 do CC não abrange a adoção do menor impúbere e é incompatível com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n°. 8.069/90, art. 41 e 48) e com os preceitos do art. 227 da CF – Recurso não provido.” (AI 197.547.4/4, 7ª Câm., Rel. Leite Cintra, Julg. 05.9.01, v. u.).

Destarte, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

SILVIO MARQUES NETO

Relator

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCEDOR

Agravo de Instrumento n° 426 226-4/2-00

Comarca de São Paulo

Agravo de instrumento tirado contra a decisão copiada às fls. 18/19, que nos autos do inventário de Fande Nasser Bogossian excluiu as agravantes do processo, por não serem herdeiras e nem legatárias de sua avó biológica.

Após o voto do Relator, o I Des. Silvio Marques, pedi vista para exame do processo, ante as inúmeras facetas apresentadas e ainda considerando o memorial ofertado pelo advogado dos agravados.

Realmente, as agravantes não são legatárias no testamento juntado aos autos fls. 26/7. Ali só foram contemplados com a parte disponível os filhos da falecida Ivan, com metade da parte disponível e a outra metade dividida em partes iguais para Aziz e Roger. Observa-se que o filho Alberto não foi contemplado com qualquer quinhão da parte disponível, o mesmo ocorrendo com as agravantes, filhas de José, falecido anteriormente à sua mãe, Faride.

É que para ser contemplado em um testamento a menção deve ser clara e evidente, não se pode presumir que a testadora teria a vontade de contemplá-las.

No tocante à sucessão, as agravantes procuram ser herdeiras representando o pai biológico. Contudo, o atual Código Civil, em seu art. 1 787, estabelece que:

“Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela.“

Assim, necessário saber se após a adoção, ocorrida na década de 1.970, permaneceu o vínculo com a família do pai biológico.

Nessa parte, o voto do culto Relator me parece inatacável, porquanto rebateu todos os pontos do recurso, não merecendo qualquer reparo.

Com a adoção, a integração na nova família é total, e em feliz síntese o voto do Relator, após apontar o art. 47 do ECA, menciona “É o mesmo que nascer de novo na nova família”.

Ora, a sucessão foi aberta com o falecimento da avó biológica das agravantes, ocorrido no ano de 2004, já na vigência do atual Código Civil, do ECA e da Constituição Federal de 1988, que em seu art. 227, § 6º estabeleceu que:

“Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quais quer designações discriminatórias relativas à filiação.”

Em conseqüência, verifica-se inexistir razão às agravantes, pois, com a adoção o vínculo com a família biológica restou totalmente rompido Caso contrário as agravantes herdariam do pai adotivo e do pai biológico, ferindo o preceito constitucional acima transcrito Entendo nada mais ser preciso acrescentar para acompanhar integralmente o voto do I. Relator, Des. Silvio Marques, negando provimento ao Agravo de Instrumento.

ÁLVARES LOBO

3º Juiz

Clique aqui e confira o texto orginal.

Fonte: Blog do 26 I 01/02/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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