TJ/SC: JUSTIÇA INVALIDA NEGÓCIO ENTRE PAI MORIBUNDO E FILHOS EM FRAUDE À EXECUÇÃO

A 1ª Câmara de Direito Civil negou o recurso de herdeiros contra sentença que invalidou a venda de bens realizada pelo pai, então moribundo, à própria família, por prejudicar os direitos de terceiros de boa-fé.   

De acordo com o processo, houve ação de reparação de danos contra o pai, em que os demandantes foram vitoriosos – obtiveram direito a indenização de 400 salários mínimos por danos morais. Contudo, os quatro imóveis do devedor foram vendidos a seus filhos um dia antes de sua morte, um ano e cinco meses após a publicação da sentença condenatória.   

A câmara manteve o entendimento do juiz da comarca porque a alienação aos filhos aconteceu no curso da ação ajuizada pelos recorridos. Os desembargadores disseram que a venda fraudulenta provocou a insolvência do devedor, tanto que a certidão de óbito revela não haver bens em nome do falecido.   

Segundo a relatora da matéria, desembargadora Denise de Souza Luiz Francoski, no caso dos autos está configurada a fraude à execução, já que presente "o requisito subjetivo 'cientia fraudis', pois é presumida a ciência dos filhos adquirentes sobre o processo judicial de reparação de danos que estava em curso".   

Os recorrentes sustentaram não haver bens para pagar a indenização aos autores, nem provas de que o pai, ao negociar com os filhos, tivesse a intenção de fugir das dívidas. A relatora, entretanto, considerou que a sentença de origem não merece reforma pois, como ressaltou o juiz de primeiro grau, a alienação dos bens consistiu em "manobra negocial". A magistrada afirmou que a fraude poderia ser reconhecida de ofício, conforme entendimento do TJSC. A votação foi unânime.

Fonte: TJ/SC I 12/11/2013.

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1ª VRP|SP: Registro de imóveis – Dúvida inversa – Os donos, em seu desquite, prometeram doar um seu imóvel – A doação nunca foi dada a registro (LRP73, art. 167, I, 33) – A mera promessa de doação não é empeço para nenhum outro registro

Processo 0008345-89.2013.8.26.0004

CP 227

Dúvida – Compra e Venda – M. G. – – M. R. C. – – O. C. – – A. R. C. – – E. C. – M. C. –

Registro de imóveis – dúvida inversa – os donos, em seu desquite, prometeram doar um seu imóvel – a doação nunca foi dada a registro (LRP73, art. 167, I, 33) – a mera promessa de doação não é empeço para nenhum outro registro – o imóvel objeto de promessa de doação nunca foi partilhado pelos desquitados – um desses desquitados veio a falecer, e no respectivo arrolamento só foi partilhada a metade do imóvel que caberia aos filhos, mas nada se dispôs sobre a outra metade, que caberia ao dono desquitado ainda vivo – portanto, a partilha foi feita erroneamente (CPC73, arts. 993, IV, e 1.023, II-III) e não há título que permita manter a continuidade (LRP73, arts. 195 e 237) – defeito que impede o ingresso do formal de partilha – dúvida inversa procedente.

1. Maria Galhardi, Maria Rosa Canossa, Osvaldo Canossa, Antonio Reinaldo Canossa e Elisabete Canossa suscitaram (fls. 02-08) dúvida inversa (fls. 135; prenotação 430.099 – fls. 205) para ver registrado um formal de partilha (fls. 153-203) passado nos autos de arrolamento dos bens deixados por Marino Canossa (autos 2.309/99 da 1ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional IV – Lapa da comarca de São Paulo).

1.1. Segundo a dúvida inversa, Maria Galhardi fora casada em regime da comunhão universal com Marino Canossa. O casal desquitou-se em 1973 (fls. 187). Maria Rosa Canossa, Osvaldo Canossa e Antonio Reinaldo Canossa são filhos comuns do casal.

1.2. Maria Galhardi e Marino Canossa foram donos do imóvel da transcrição 59.614 (fls. 25), do 16º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo (16º RISP).

1.3. No desquite os cônjuges prometeram doar esse imóvel aos filhos (fls. 40-46). A doação nunca foi feita, a despeito de instância de Maria Galhardi (fls. 35-38).

1.4. A metade ideal de Marino Canossa, como nunca foi doada aos filhos, foi então partilhada causa mortis em favor desses mesmos filhos Maria Rosa Canossa, Osvaldo Canossa e Antonio Reinaldo Canossa (fls. 186, 159 e 184).

1.5. O 16º RISP exigiu que fosse apresentada a carta de sentença do desquite de Marino Canossa e Maria Galhardi Canossa, segundo a qual tivesse sido atribuída metade ideal do imóvel; depois, informou que o imóvel não poderia ter sido partilhado, porque teria cabido aos filhos; finalmente, esclareceu o 16º RISP que não poderia ser feito nada, porque o imóvel deveria ser doado aos filhos mediante escritura pública.

1.6. Ora, a doação não seria mais possível, porque Marino Canossa teria falecido; ademais, de uma forma ou de outra, estaria claro que o imóvel, ao fim e ao cabo, pertenceria a Maria Galhardi (metade) e a Maria Rosa Canossa, Osvaldo Canossa e Antonio Reinaldo Canossa (metade), e a situação do imóvel deveria ser regularizada.

1.7. Os suscitados trouxeram procuração ad iudicia (fls. 09-10) e fizeram juntar documentos (fls. 11-135; o título formal está a fls. 153-203).

2. O 16º RISP prestou informações (fls. 143-144).

2.1. Segundo as informações, o imóvel da transcrição 59.414 foi adquirido na constância do casamento entre Marino Canossa e Maria Galhardi Canossa; no arrolamento, porém, Marino Canossa foi qualificado como desquitado e, além disso, os requerentes só tratam da metade ideal desse imóvel. Por isso, na primeira devolução foi solicitado aos interessados que apresentassem formal de partilha passado no desquite (fls. 34).

2.2. Os interessados então provaram que o desquite não houve partilha, e que os cônjuges tinham prometido doar o imóvel aos filhos, entre os quais havia menores (fls. 40-46); diante dessa informação, o formal foi devolvido, porque, presuntivamente, o bem fora doado, e ao 16º RISP pareceu correto respeitar a promessa de doação.

3. O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida, i. e., para que se mantivesse a recusa do 16º RISP (fls. 146-148).

4. É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir.

5. Por força do princípio da continuidade, uma inscrição (lato sensu) subsequente só transfere um direito se o direito por transferir efetivamente estiver compreendido, objetiva e subjetivamente, na inscrição (lato sensu) antecedente que lhe dê fundamento (ou seja: para que se faça a inscrição subsequente, é necessário que o disponente possa, objetiva e subjetivamente, dispor do direito, o que só se pode concluir pela própria inscrição antecedente). É o que diz a LRP73: Art. 195. Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro. Art. 237. Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.

6. Em que pesem as opiniões em contrário (em particular, a do próprio 16º RISP), o pactum de donando constante do desquite (fls. 40-46), ainda que contemplasse menores, não poderia ser impedimento para registro nenhum (datum sed non concessum que exista promessa de doação): tal pacto, mesmo que constasse de termo judicial, não passara de negócio jurídico obrigacional, e o fato de constar a intenção de doar não significou que os promitentes tivessem deixado de ser donos, o que só sucederia se a doação houvesse sido levada ao registro, o que não se fez. Nesse aspecto, portanto, o ingresso do formal de partilha (fls. 153-203) não ofenderia a continuidade do registro.

6.1. Confira-se, nesse sentido, o que decidiu esta 1ª Vara de Registros Públicos nos autos 0051841-11.2012.8.26.0100 em 22 de julho de 2013.

7. Ofensa à continuidade do registro existe por outra causa, corretamente apontada pelo Ministério Público (fls. 147-148).

8. Como dito, o domínio objeto da transcrição 59.414 (fls. 25) ainda toca a Marino Canossa e a Maria Gagliardi Canossa: afinal, ainda que tenha sido averbado desquite entre esses donos (averbação 2 – fls. 25), não houve partilha aquando do término da sociedade conjugal (fls. 40-46).

9. Portanto, para que se observasse o princípio da continuidade e se admitesse o registro do formal, no arrolamento dos bens deixados por Marino era necessário que todo o imóvel (e não apenas sua metade ideal: cf. fls. 159) houvesse sido partilhado, como o que se reconheceriam não apenas o direito dos filhos herdeiros Maria Rosa, Osvaldo e Antonio Reinaldo, como ainda o direito da proprietária Maria.

9.1. Nesse sentido, o Cód. de Proc. Civil é claro: Art. 993. Dentro de 20 (vinte) dias, contados da data em que prestou o compromisso, fará o inventariante as primeiras declarações, das quais se lavrará termo circunstanciado. No termo, assinado pelo juiz, escrivão e inventariante, serão exarados: […] IV – a relação completa e individuada de todos os bens do espólio e dos alheios que nele forem encontrados […] Art. 1.023. O partidor organizará o esboço da partilha de acordo com a decisão, observando nos pagamentos a seguinte ordem: […] II – meação do cônjuge; III – meação disponível; […]

9.2. De resto, decide a jurisprudência: […] 1. Cuidam os autos de dúvida de registro de imóveis, inversamente suscitada por Marcos Issomoto, referente ao ingresso no 1º Registro de Imóveis de São José dos Campos de formal de partilha expedido pelo Juízo de Direito da 5ª Vara Cível de São José dos Campos, nos autos do inventário dos bens deixados pelo falecimento de Ângelo Caggegi. Após regular processamento, com manifestação por parte do oficial e do representante do Ministério Público, a dúvida foi julgada procedente (por equívoco mencionou-se ‘improcedente’ na sentença) para o fim de manter a recusa do registro do título, devido à inclusão no inventário de apenas metade ideal do bem imóvel deixado pelo falecido, excluída a meação do cônjuge sobrevivo (fls. 52 a 54). […] Quanto ao recurso do interessado Marcos Issomoto, tem-se que não comporta provimento, como decidido pela respeitável decisão recorrida, nos termos, ainda, do parecer da Douta Procuradoria Geral de Justiça. Com efeito, o inventário dos bens deixados pelo falecimento de Ângelo Caggegi, deveria ter abrangido, necessariamente, a totalidade do imóvel aqui discutido e não apenas a metade ideal pertencente ao falecido, ante o disposto no art. 993, IV, do Código de Processo Civil, segundo o qual do inventário deve constar ‘a relação completa e individualizada de todos os bens do espólio e dos alheios que nele forem encontrados’. Efetivamente, com a morte, o patrimônio do casal, existente na data do óbito de um dos cônjuges, assume o estado de indivisão, a qual somente se resolve com a partilha. Daí por que, na hipótese em discussão, mostra-se indispensável a partilha da totalidade do imóvel objeto do título que se pretende registrar, sem o que permanece o estado de indivisão. Não se diga que, no caso, a metade do imóvel já pertencia ao cônjuge sobrevivente desde o casamento, pois a comunhão decorrente deste último, como sabido, é pro indiviso, não podendo a parte ideal pertencente a cada um dos consortes ser destacada, a não ser no momento em que dissolvida a sociedade conjugal e realizada a partilha. Por essa razão, precisamente, a necessidade de o formal de partilha fazer menção à totalidade do bem para ter ingresso no registro predial. Não tem sido outro, aliás, o entendimento deste Conselho Superior da Magistratura, conforme se verifica no seguinte julgado, relatado pelo eminente Desembargador José Mário Antonio Cardinale, então Corregedor Geral da Justiça, com ampla referência à jurisprudência do colegiado: ‘Registro de Imóveis. Dúvida. Registro de carta de adjudicação expedida em autos de inventário. Necessidade de se arrolar a totalidade dos bens. Recurso provido para reformar a sentença que autorizou o registro da adjudicação da metade ideal. (…) (…) se é certo que o direito do cônjuge supérstite à meação deriva do regime matrimonial de bens e não successionis causa (cfr. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. VI, n. 446), não menos correto é que dessa premissa não se infere a divisão dos bens em frações ideais. Por isso que se forma uma comunidade hereditária (cfr. Theodor Kipp, Derecho de Sucesiones, t. V, v. II, § 114), que se ultima com o desfecho do processo sucessório. A comunhão decorrente do casamento é ‘pro indiviso’. Ou seja, a parcela ideal pertencente a cada cônjuge não pode ser destacada, o que somente ocorre quando dissolvida a sociedade conjugal. Em sendo a morte a causa da extinção do casamento e da comunhão, a metade só se extremará com a partilha, posto que indivisível antes dela. Ensina Afrânio de Carvalho que “não importa que, em se tratando de cônjuge sobrevivente casado no regime da comunhão de bens, metade ideal do imóvel já lhe pertença desde o casamento, porque o título reúne essa parte ideal, societária, com a outra, a sucessória, para recompor a unidade real do de cujus. A partilha abrange todo o patrimônio do morto e todos os interessados, desdobrando-se em duas partes, a societária e a sucessória, embora o seu sentido se restrinja por vezes à segunda. Por isso, dá em pagamento ao cônjuge sobrevivente ambas as metades que lhe caibam, observando dessa maneira o sentido global da operação, expressa na ordem de pagamento preceituado para o seu esboço, a qual enumera, em segundo lugar, depois das dívidas, a meação do cônjuge e, em seguida, a meação do falecido que, na hipótese, passa também ao cônjuge” (Registro de Imóveis, Forense, 3ª Ed., RJ 1982, pág. 281). A propósito do tema, o Colendo Conselho Superior da Magistratura do Estado, apreciando caso em que o Sexto Cartório de Registro de Imóveis da Capital recusara registro de carta de adjudicação exibida por viúva meeira, decidiu na mesma direção: ‘Com o falecimento do marido, procedeu ela (cônjuge sobrevivente) ao inventário. Fê-lo, todavia, indicando somente a metade ideal do imóvel. Ora, nos termos do art. 923, IV, do Código de Processo Civil, o inventário deve conter a ‘relação completa e individuada de todos os bens do espólio e dos alheios que nele forem encontrados. O imóvel, no seu todo, era bem comum ao falecido e à apelante. Devia, pois, figurar no inventário’ (ap. cível 146-0, Capital, 29.12.80, Rel. Des. Adriano Marrey; apud Narciso Orlandi Neto, Registro de Imóveis, ed. 1982, pp. 30-32). O espólio é uma universalidade de bens que reúne todos aqueles que integravam o patrimônio do casal, em comum até a data do óbito de um dos cônjuges. Com a morte, esse patrimônio assume inteiramente o estado de indivisão já referido, sendo indispensável a partilha do todo, para resolver essa situação’ (Apelação Cível n. 62.986-0/2, Araraquara). No mesmo sentido decidiu-se nas apelações cíveis 5.054-0, Capital, 27.1.86, e 5.444-0, 5.446-0, 5.818-0 todas de Taquaritinga, e 017289-0/7 de Campinas. Para permitir o ingresso do título no fólio real, a carta de adjudicação deverá fazer menção à totalidade do bem.’ (Ap. Cív. n. 458-6/1 – j. 06.12.2005). […](Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Apel. Cív. 670-6/9 – São José dos Campos, j. 08/03/2007, Rel. Gilberto Passos de Freitas)

9.3. Confira-se, ainda, o que ficou decidido por esta 1ª Vara de Registros Públicos nos autos 0016159-58.2013.8.26.0100, em 5 de agosto de 2013, e 0050913-60.2012.8.26.0100, em 8 de outubro de 2013.

10. Porém, como assim não se procedeu, é força reconhecer, do ponto de vista formal (que é o único que interessa ao registro), que não haja título que permita definir qual tenha sido o destino do imóvel. Assim, no arrolamento dos bens de Marino Canossa é necessário fazer sobrepartilha (Cód. de Proc. Civil, arts. 1.040-1.041), para que, apurado correta e claramente o destino de todo o domínio objeto da transcrição 59.414, possa dar-se ao registro o formal que então se obtiver.

11. Do exposto, julgo procedente a dúvida inversa suscitada a requerimento de Maria Galhardi, Maria Rosa Canossa, Osvaldo Canossa, Antonio Reinaldo Canossa e Elisabete Canossa perante o 16º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo (prenotação 430.099). Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Desta sentença cabe apelação, com efeito suspensivo, dentro em quinze dias, para o E. Conselho Superior da Magistratura. 

Oportunamente, cumpra-se a LRP, art. 203, I, e arquivem-se os autos.

P. R. I.

São Paulo, .
Josué Modesto Passos
Juiz de Direito

(D.J.E. de 06.11.2013 – SP)

Fonte: Blog do 26 I 07/11/2013.

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Filiações plurais

* Jones Figueirêdo Alves

Cada família tem seu direito de família, diria Carbonnier (“a chaque famille son droit”), indicando que o direito de família não pode ser feito por normas fechadas, exigindo-se que doutrina e jurisprudência se adicionem em visão aberta que enxergue a família em seu “locus” de realizações pessoais e digna, portanto, de compreensões metajurídicas.

Assim, parentalidades são diversas, consolidadas pelo sangue (bio), pela consanguinidade com afeto (bioafetiva) e pelo trato, fama e nome, como a posse de estado de filho (socioafetiva); todas elas importando seus vínculos, o reconhecimento jurídico das situações fáticas e legais e, sobremodo, atendidas as relações entre pais e filhos como fenômenos parentais que transcendem os normativos atuais por existirem, antes de mais, como verdades concretas de realidade vividas e fundadas no valor afeto como bem jurídico.

Bem é certo diferentes a “verdade do sangue” e a “verdade do coração”, que são verdades que funcionalizam a filiação, conforme Marie-Thèrese Meldeurs em seu pioneiro artigo sobre os novos fundamentos do conceito de filiação (1972).

Impende, daí, considerar distintas (i) as filiações apenas biológicas, (ii) as filiações bioafetivas concomitantes (vínculo biológico + afetividade) e (iii) as filiações socioafetivas ocorrentes, estas últimas predominantes ou não. As primeiras estão na mera genitura, sem a função paterna exercida. Genitor é apenas quem procria. Pai é algo que acrescenta nas relações de vida.

Sucede, então, cogitar sobre a multiparentalidade quando é de admitir-se, em situações pontuais, coexistentes a parentalidade socioafetiva e a biológica (filiações plurais). Cuida-se da teoria tridimensional da filiação, em seus critérios bio-afeto-ontológicos, reconhecidos presentes a um só tempo.

A lei não oferece conceitos jurídicos de paternidade/maternidade, sequer constrói os seus estatutos próprios. Mas ao tratar da parentalidade, cuida defini-la em seu amplo espectro, dispondo o artigo 1.593 do Código Civil que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”.

Pois bem. A parentalidade socioafetiva como modalidade de parentesco civil, sob a cláusula “outra origem”, adicionada pelo novo Código (para além dos casos de adoção) não é apenas criação jurídica da lei. Antes, recepciona a lei as situações fáticas e variadas que plasmam espécies de parentalidades, como representações suficientes de pais e filhos, que assumem-se, recíproca e conscientemente, por afeição, como se pais e filhos fossem, inexistente o “jus sanguinis”. Nessa toada, tais parentalidades consolidadas são reconhecidas e merecem amparo jurídico.

De fato, uma nova ordem jurídica coloca-se ao encontro das situações parentais mais diversas, onde a família apresenta-se como “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.” Esse conceito de família, o primeiro que se conhece ofertado pelo ordenamento jurídico nacional é o contido na lei 11.340/06 (artigo 5º, II) e no ponto, faz acrescentar o elemento da “vontade expressa” como novo liame familiar-parental, no plano civil. Esse significante tem sua precisão cirúrgica, definindo outros vínculos que não os meramente biológicos.

Sobrevém situações de fato que, inexoravelmente, estão a reclamar a multiparentalidade, em seus devidos efeitos jurídicos, à luz dos dispositivos legais existentes (artigo 1.593, CC; lei 11.340, artigo 5º, II), conforme as variantes de cada situação concreta. Vejamos hipóteses:

(i) A indução a erro daquele que registra suposto filho, sob a crença de ser o pai biológico por si só não pode macular o vinculo socioafetivo do pai registral, consolidado ao longo do tempo; a tanto permiti-lo defende-lo frente ao pai biológico quando este ciente da condição que lhe tenha sido até então sonegada;

(ii) Mesmo na ausência de ascendência genética, o registro realizado de forma consciente, consolida a filiação socioafetiva. Essa circunstância opera-se quando o companheiro da mãe solteira registra o filho trazido por ela. Essa relação de fato deve ser reconhecida e amparada juridicamente. “Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família” (STJ – 3ª turma, RESp. 1.259.460-SP. Rel.Min. Nancy Andrighi, j. em 19/6/12);

(iii) Filiações ectogenéticas, na espécie dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, onde por ficção legal é genitor o marido da mulher (artigo 1.597, inciso V; do Código Civil), configuram este também como pai socioafetivo. Ao pai biológico (dador do esperma), a multiparentalidade pode ocorrer quando em face do reconhecimento da identidade genética por direito personalíssimo do filho, ocorram relações parentais também afetivas.

(iv) Posse errada de filho (troca de recém-nascidos), apurada ao depois, onde a filiação socioafetiva consolidada não cede e não haverá de prejudicar a biológica.

A família multiparental, formada por filiações plurais, já existe na jurisdição prestada. São significativos os julgados:

(i) 11/2011: a juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes, em Rondônia, declarou a dupla paternidade admitindo em registro o pai biológico que passou a se relacionar com a filha adolescente, mantendo o do pai registral e socioafetivo (Proc. nº 0012530-95.2010.8.22.0002),

(ii) 10/2012: Acórdão da 1ªCâmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, onde Relator o des. Alcides Leopoldo e Silva Jr., determinou o registro de um jovem com os nomes de seu pai biológico, de sua mãe biológica e de sua madrasta, como mãe socioafetiva (AC 0006422-26.2011.8.26.0286; DJESP 11/10/2012).

(iii) 08/2013: decisão da juíza Carine Labres, da Comarca de São Francisco de Assis (RS) admitiu pedido da madrasta e das crianças enteadas, em ação declaratória de maternidade, sem excluir o nome da mãe biológica do registro.

Bem de ver dos julgados que a multiparentalidade tem sido admitida, para todos os fins legais, podendo ser concomitante ou sucessiva, mas em todos os casos voluntária e não imposta.

Lado outro, a 4ª turma do STJ definiu no voto do ministro relator Luís Felipe Salomão que a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do filho resultantes da filiação biológica: certo que “a paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente”.

Parentalidade múltipla, em todos os ditames, é espiritual, antes de jurídica, no melhor sentido canônico, como a de José, marido de Maria, que teve como filho socioafetivo o próprio filho de Deus. Por isso mesmo, Pai é aquele que se a(pai)xona.

Disso é feita a multiparentalidade, pela fortuna de espirito de quem possui, por dádiva de vida, mais de um pai ou uma mãe. Direitos sucessórios de ambos? Sim, porque essa fortuna será sempre menor que aquela. Afinal, quem herda do procriador (herança de sangue, sem afeto), por lógica jurídica pode cumular heranças dos pais, cujos vínculos maiores da bioafeição e socioafeição o tornaram mais afortunado.

_____________________

* Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do TJ/PE, diretor nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família ecoordena a Comissão de Magistratura de Família.

Fonte: Migalhas I 01/10/2013.

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