Testamento vital e seu perfil normativo (parte 1) – Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

A ampliação dos limites de expectativa de vida na sociedade ocidental implicou variegadas consequências antropológicas, sociológicas, religiosas, jurídicas e morais. Conceber a indissolubidade do vínculo matrimonial para pessoas com expectativa de vida de 40 anos, como se dava no início do século XX, é algo bem diverso quando a existência humana pode-se prolongar até aos 80 anos. A relação com a morte também foi dramaticamente alterada. Parte integrante do cotidiano, com sucessivas ocorrências na família, na vizinhança ou no bairro, o sepultamento dos mortos era uma cerimônia plena de elementos litúrgicos, simbólicos ou formais, que, com sua refinada elaboração, se projetava até aos aspectos arquitetônicos. A morada dos mortos seguia a lógica da habitação dos vivos.

O prolongamento da vida não se deu apenas em face da melhoria das condições sanitárias, alimentares e educacionais. A vida também se prolonga por eficientes e caríssimos tratamentos médico-hospitalares. E é nesse ponto que se radica o estudo do chamado “testamento vital”, também conhecido por expressões como testamento biológico, instruções prévias ou diretivas antecipadas de vontade,[1] a respeito do qual já se encontra alguma literatura jurídica.[2] O advogado Ernesto Lippmann, especialista na matéria e que tem proferido diversas palestras a esse respeito para um público não jurídico, de modo objetivo, explica que o “testamento vital”, diferentemente do “testamento civil”, “visa ser eficaz em vida, indicando como você deseja ser tratado — do ponto de vista médico — se estiver em uma situação de doença grave e inconsciente”, na medida em que se constitui em uma “declaração escrita da vontade de um paciente quanto aos tratamentos aos quais ele não deseja ser submetido caso esteja impossibilitado de se manifestar”.[3]

Em termos doutrinários, o “testamento vital” é uma expressão bastante equívoca, a despeito de sua inegável popularização. Trata-se de uma declaração de vontade emitida por uma pessoa natural, em pleno gozo de suas capacidades, cujo conteúdo é uma autorização ou uma restrição total ou parcial à submissão do declarante a certos procedimentos médico-terapêuticos, na hipótese de não mais ser possível emitir esse comando, em face da perda de autodeterminação, seja por lesões cerebrais, seja por ele se encontrar em estado terminal. Há quem o considere uma espécie de testamento[4] e quem nele reconheça uma “figura que, em realidade, não se insere no campo do Direito das Sucessões, nem pode ser tomada como um verdadeiro testamento, ao menos em sua acepção tradicional”, o que implica localizar seu estudo no campo do Biodireito e não do Direito das Sucessões.[5]

A declaração de vontade, sob o nome vulgar de “testamento vital”, pode ter por objeto disposições sobre: a) a realização ou não de procedimentos médico-terapêuticos; b) a delimitação de quais procedimentos poder-se-iam realizar; c) a pré-exclusão de certos procedimentos; d) o estabelecimento de um lapso para a continuidade dos tratamentos, após o qual, permanecendo o estado vegetativo, se teria a recusa prévia a sua continuidade.

Não se discutirá, ao menos por agora, a relação entre o testamento vital e os limites ao exercício pleno da autodeterminação sobre tratamentos ou procedimentos médicos futuros. Essas questões ficarão para outro momento. Por agora, veja-se qual o marco infralegal existente sobre o tema, o que nos remete, de modo específico, ao texto da Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, publicada na Primeira Seção do Diário Oficial da União, de 31 de agosto de 2012, que “dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes”.

A resolução, em seu artigo1o, define que o objeto das “diretivas antecipadas de vontade” (DAVs) corresponde ao “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. A resolução exonera o médico do dever de cumprir o conteúdo das DAVs quando estas se revelarem desconformes ao Código de Ética Médica (parágrafo 2o do artigo 2o). No entanto, as DAVs “prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares” (parágrafo 3o do artigo 2o).

É possível que essas DAVs sejam comunicadas diretamente ao médico pelo paciente, o que, a despeito da Resolução do CFM não o afirmar de modo expresso, pressupõe a hipótese de: a) revogação de DAVs anteriormente elaboradas; b) a necessidade de comprovação dessas novas disposições (parágrafo 4o do artigo 2o).

Se as DAV’s (a) não forem conhecidas ou se (b) não houver representante designado pelo paciente para expressá-las ou (c) familiares do paciente que assim o façam, bem como se (d) não houver consenso entre os familiares, “o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente” (parágrafo 5o do artigo 2o).

A resolução do Conselho Federal de Medicina antecipou-se a um debate jurídico que talvez merecesse ser realizado no plano legislativo, embora seja compreensível a necessidade de se estabelecer algum balizamento deontológico para uma prática que começa a ser identificada em diversos hospitais brasileiros. Em linhas bem gerais, a resolução atribui ao médico um papel altamente complexo e difícil de interpretar a vontade do paciente e de confrontá-la com os limites de seu código de ética profissional.

A discussão prévia sobre a adequação ao ordenamento jurídico é um tema que será trabalhado em outra coluna, quando examinado o problema à luz do Direito Comparado. No entanto, é importante salientar a diferenciação entre as DAVs e a eutanásia, como muito bem expôs Jorge de Figueiredo Dias,[6] ao categorizar as “ajudas à morte” em três níveis: 1)“a ajuda à morte ativa direta, compreendendo aqueles casos em que, por meio de um comportamento ativo (v.g., a administração de uma injeção letal), se produz a morte ou se apressa, em maior ou menor medida, a ocorrência da morte”; 2) “a ajuda à morte ativa indireta, abrangendo os casos em que não é de excluir, ou é mesmo razoavelmente seguro, que a medicação atenuante das dores ou indutora do estado de inconsciência (v.g., a administração de doses crescentes de morfina) possa ter como consequência não intencionada ou mesmo indesejada o apressar do momento da ocorrência da morte”; 3) “a chamada ajuda à morte passiva, compreendendo os casos em que uma omissão ou uma interrupção do tratamento determina um encurtamento do tempo de vida por forma tal que este deve considerar-se objetivamente imputável àquela, v.g., a renúncia a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento intensivo que teriam a virtualidade de prolongar a vida do paciente”.

Segundo o autor, catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, a terceira hipótese, a ajuda à morte passiva, é “a de mais difícil e questionável decisão jurídico-penal nos casos de espécie”, na medida em que “é constituída por aqueles casos de renúncia a medidas de prolongamento da vida sempre que o paciente se não encontra em condições de exprimir a sua vontade”. Assim, “estando em causa doentes inconscientes ou em estado análogo, relativamente aos quais o processo da morte se iniciou já (…), o médico tem o direito — e porventura o dever — de interromper medidas absolutamente inúteis do ponto de vista do ‘tratamento’ e de uma salvação humanamente impossível, sem verdadeiramente ter de curar de qual seria a vontade hipotética do paciente se ele a pudesse exprimir”.

No entanto, ainda com base no texto de Jorge de Figueiredo Dias, “mais complexos são os casos em que o enfermo incapaz de exprimir a sua vontade não pode considerar-se um moribundo, antes pode viver ainda meses ou mesmo anos, mas perdeu de forma irrecuperável a consciência (casos de ajuda à morte em sentido amplo). Fala-se a este propósito de ‘estados vegetativos permanentes’, de ‘coma vígil irreversível’, de “síndroma apálico”, quando — se apreendo exatamente a realidade médica correspondente — o córtex cerebral (o pallium) entrou definitivamente em colapso, conservando-se apesar de tudo a função do tronco cerebral. Que, em casos desta natureza, se não pode defender sem mais a cessação do dever e da posição de garante do médico ou da pessoa titulada, parece seguro e comummente aceite. Desenham-se todavia a propósito duas orientações opostas”.

A primeira dessas opiniões é no sentido de que se devem manter os cuidados médicos até aos limites das possibilidades técnicas. A interrupção do tratamento de pessoas não moribundas, “mesmo quando pudesse considerar-se que nesse sentido correria a vontade presumida do paciente, significaria sempre um homicídio a pedido, como tal punível.”

A segunda opinião orienta-se pela admissibilidade da interrupção do tratamento médico, sob o fundamento de que não seria razoável supor que o paciente desejasse continuar a sofrer.

Como forma de se evitar essas discussões, o autor português entende que se deva atribuir “um relevantíssimo e crescente valor os outrora chamados ‘testamentos de paciente’, ‘testamentos de vida’, ‘vitais’ ou ‘biológicos’; hoje preferentemente cognominados ‘diretivas antecipadas de vontade no âmbito da prestação de cuidados de saúde’ e para os quais inclusivamente se recomenda, com larga aceitação, a criação de um registo nacional”. Segundo Jorge de Figueiredo Dias, são inconsistentes as refutações de parte da dogmática ao valor jurídico das DAVs, que as equiparam a expressões do consentimento presumido para fins de atuarem causa de justificação. E tal se dá porque as DAVs, “sobretudo se periodicamente reiteradas”, apresentar-se-iam como “o mais forte indício da vontade presumida do declarante e só podem ser desobedecidas se forem conhecidas razões que definitivamente as contrariem. Nem sequer se pode pensar em argumentar, em rigor, com os “interesses” do paciente porque, como justamente assinala Roxin, ‘o apálico privado para sempre da consciência e das sensações não pode, desde que entrou nesse estado, ter mais quaisquer interesses: estes pressupõem a possibilidade da decisão pessoal’”.

A defesa das DAVs, nos termos do quanto formulado por Jorge de Figueiredo Dias, é possível, mas não se deve esquecer a permanente (re)discussão de seu fundamento jurídico, do que se cuidará mais amiúde em outra coluna, e, ainda, dos problemas relativos à sua formalização. Dito de outro modo, a relevância de uma DAV, que tem por objeto a manutenção do mais valioso de todos os “bens” humanos (à falta de qualificativo melhor), exige que se questione o nível de rigor formal desse documento e a necessidade de sua reiteração dentro de prazos razoáveis. Se para um negócio jurídico como a venda e compra de um automóvel, exige-se considerável formalismo, o que se dizer de uma declaração de vontade que consubstancia um comando de consequências profundas para a vida de quem a emite? Somente por esse aspecto do problema é que se deve realmente pensar em uma normatização de dignidade legislativa para se enfrentar questões tão sérias como a relativa ao vulgarmente chamado “testamento vital”.

Na próxima coluna, o Direito Comparado retoma algumas questões aqui enunciadas.

________________________________________

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Direito das sucessões. Atualizado por Carlos Roberto Barbosa Moreira. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. v. 6. p. 184.

[2] Citando-se apenas artigos publicados em periódicos nacionais: DADALTO, Luciana. Reflexos jurídicos da Resolução CFM 1.995/12. Revista bioética, v. 21, n. 1, p. 106, 2013; ALVES, Cristiane Avancini. Diretivas antecipadas de vontade e testamento vital : considerações sobre linguagem e fim de vida. Revista jurídica, Porto Alegre, v. 61, n. 427, p. 89-110, maio 2013; BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese : direito de família, v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013; CABRAL, Vívian Boechat. O testamento vital e a efetividade da vontade do titular do bem jurídico vida. Revista brasileira de direito das famílias e sucessões, v. 14, n. 28, p. 22-47, jun./jul. 2012; MIRANDA, Verônica Rodrigues de. O testamento vital. Revista Síntese : direito de família, v. 14, n. 74, p. 53-71, out./nov. 2012.

[3] LIPPMANN, Ernesto. Testamento vital : o direito à dignidade. São Paulo: Matrix, 2013. p. 17.

[4] “O testamento, considerado um negócio jurídico personalíssimo e ato de última vontade de uma pessoa, é instituto não restrito a valores ou bens patrimoniais, mas extensivo a situações existenciais. E justamente na eventualidade de inexistência do exercício da manifestação da vontade é que se revela eficaz o ato que decidiu sobre esse momento, o qual se conhece como testamento vital, ou living will, servindo, sobretudo, para oficializar a escolha do médico que apressou os últimos momentos de existência unicamente vegetativa” (RIZZARDO, Arnaldo. Direito das sucessões. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p .219).

[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 183.

[6] DIAS, Jorge de Figueiredo. A "ajuda médica à morte": uma consideração jurídico-penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 100, p. 15, jan. 2013.

Autor: Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).

Fonte: CNB | 16/08/2013.

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É garantido o direito de nome ao nascituro

Nome ao Natimorto

Ao nascituro que nasce sem vida, feto que falece no interior do útero ou no parto, como tal havido natimorto, após uma gestação superior a vinte semanas, não é dado alcançar direito personalíssimo ao nome e sobrenome. Cumpre-se somente o registro do óbito fetal, em livro próprio – “C-Auxiliar” (Lei nº 6.015/73, art. 53), com indicação dos pais, dispensado o assento de nascimento. O filho, já esperado pelo nome que lhe seria dado, torna-se apenas o registro do feto que feneceu como sombra de si mesmo e feto, enquanto tal, por não ter vindo à luz com vida, mesmo que por mínima fração de tempo.

Embora comece do nascimento com vida a personalidade civil da pessoa (art. 2º, Código Civil), certo é, porém, que desde a concepção são ressalvados os direitos do nascituro, como a alimentos, dispondo este, por isso, de uma personalidade jurídica formal. Em período inferior de gestação, onde se tem ocorrente o aborto espontâneo ou o induzido – caso diverso ao natimorto – sequer é exigido registro de óbito.

Pois bem. Essa espécie de mortalidade tem se constituído em evento jurídico a exigir novas atuações da doutrina, dos tribunais, da legislação e de políticas públicas de saúde, quando cerca de 3,3 milhões de crianças, a cada ano, no mundo, são natimortos, com morte intra-uterina nos três últimos meses de gestação.

Nomeadamente são postas questões novas, a exemplo: (i) o feto anencéfalo é um natimorto cerebral; (ii) “a proteção que o Código Civil confere ao nascituro alcança o natimorto, no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura” (Enunciado nº 01, da I Jornada de Direito Civil – CJF-STJ,11-13/09/2002) e (iii) existe o direito de os pais registrarem os filhos natimortos com nome e sobrenome.

No ponto, a identificação do natimorto se apresenta como a possibilidade de exercerem os pais a atribuição de nome ao filho nascido sem vida. Neste sentido, revisão normativa da Corregedoria Geral de São Paulo (estado que registra cinco mil natimortos por ano) empreendida ao seu Código de Normas de Serviço (Cap. XVII, Tomo II, item 32), cuidou de facultar o direito de atribuição de nome ao natimorto, sem necessidade de duplo registro (nascimento e óbito).

De tal permissivo administrativo, em março passado, o casal Elias Germano Lúcio e Vanessa Gomes Lúcio, perante o cartório de Barueri (SP), efetivou o registro de sua filha natimorta Sara, dando-lhe o nome escolhido que em vida usaria. Primeiro casal brasileiro a levar a registro de óbito o nome da filha que não nasceu e que nada obstante “concepto não nascido”, houve-se assim por identificada, certo que em nascida com vida haveria de usá-lo, com seu alcance personalíssimo.

Nessa mesma linha, recente projeto de lei – PL nº 5.171/2013 -, de autoria do deputado Ângelo Agnolin, altera a redação do parágrafo 1º do art. 53 da Lei 6.015 (Lei dos Registros Públicos), para no caso de ter a criança nascido morta, ser o registro feito em livro próprio, “com os elementos que lhe couberem, inclusive o nome e o prenome que lhe forem postos” (NR). A inserção adverbial “inclusive” significando “também”, afasta qualquer controvérsia acerca dos elementos registrais cabíveis.

Nesse aspecto, em 25 de outubro de 2007, o desembargador gaúcho Rui Portava, da 8ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em voto vencido no julgamento da Apelação Cível nº 70020535118 divergia por já entender que “em nenhum momento a lei determina que o registro a ser assentado no Livro C Auxiliar não possa fazer menção ao nome que os pais haviam escolhido para a criança”.

E acentuava, com precisão, que a lei diz apenas que o registro fará referência aos “elementos que couberem”, “mas não explicita quais são e quais não os cabíveis”. De fato. Como destacado na doutrina adiantada de Teixeira de Freitas, por ele referida, “as pessoas por nascer existem, porque, suposto não sejam ainda nascidas, vivem já no ventre materno”.

Então, desde a concepção e durante a vida intra-uterina, a criança por nascer não será uma mera perspectiva de filho, mas uma pessoa a chegar, com personalidade jurídica de fato, tendo direito a um nome. O filho gestado significa o projeto parental já alcançado, de tal modo que, por isso mesmo, o nascituro já recebe dos pais um nome. Isso é fato que tem sido recorrente, a tanto que é preparada a sua chegada pondo-se-lhe o nome que o representa. Mas não é só.

A fragilidade emocional de pais de natimortos, que lidam com o luto, vulneráveis pela perda do filho, mães de mãos vazias, parturientes de parto inútil, compõem uma realidade de vida que não pode deixar de ser percebida pela ordem jurídica. Isso já acontece, em alguns Estados, com benefícios de licenças-maternidade para mães servidoras que sofreram aborto ou parto natimorto, a fim de que o retorno ao trabalho somente ocorra quando atenuados os graves danos emocionais decorrentes da gravidez interrompida e da perda da criança.

Urge, portanto, melhor proteção jurídica ao natimorto e aos seus pais, nessa condição, a exemplo da liberação célere do corpo e sua entrega à família; os benefícios estatutários, o acompanhamento psicológico pós-trauma, as medidas protetivas de amparo e, sobretudo, do direito ao nome ao natimorto. Mais que urgente, também se apresenta, a retificação dos assentos de óbito de natimortos, lavrados sem nome, se assim os seus pais requererem (art. 110, lei nº 6.015/73).

Inegavelmente, há um luto social diante do natimorto, filho dos pais que não o tiveram, e futuro cidadão que a sociedade não o recebeu. Esse luto tem, por certo, relevância jurídica, não resumida ao fato registral e estatístico. Essa questão foi posta em projeto de pós-graduação de Mariana Undicattti Barbieri Santos, Oficial de Registro Civil de Ribeirão Bonito (SP), o que inspirou o normativo da Corregedoria de Justiça paulista.

O nome ao natimorto é, afinal, um direito humanitário, no seu espectro mais denso. Na palavra de Rui Portanova, bem é certo que, omitir o nome representa, “uma crueldade para com os pais, que já passaram pelo traumático evento da criança morta, e não precisam passar por uma segunda “morte” do filho, desta vez causa pelo desprezo da ordem jurídica.”

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JONES FIGUEIRÊDO ALVES – o autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Assessorou a Comissão Especial de Reforma do Código Civil na Câmara Federal. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

Fonte: TJPE | 02/08/2013.

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O tabelião de notas como amicus curiae no procedimento de dúvida registral

Por João Pedro Lamana Paiva [1]

Recentemente, através do Provimento CG nº 14/2014, o Corregedor-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Des. José Renato Nalini, após acatar sugestão apresentada pelo Juiz-Assessor da Corregedoria, Luciano Gonçalves Paes Leme (que lavrou o Parecer nº 143/2013-E, juntado aos autos do processo nº 2012/00124108-DICOGE), alterou disposições das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral de Justiça paulista, para admitir a participação do tabelião de notas, no procedimento de dúvida, na qualidade de amicus curiae, acolhendo parcialmente, dessa forma, proposta apresentada pelo Colégio Notarial do Brasil-Conselho Federal (CNB/CF) e pelo Colégio Notarial do Brasil-Seção São Paulo (CNB-SP).

O normativo administrativo baixado pela insigne Corregedoria paulista tem em mira enfrentar a polêmica e não recente questão relativa à possibilidade de o notário poder, em sede de procedimento de dúvida, sustentar a defesa da escritura pública por ele lavrada, quando esta tenha sido objeto de qualificação negativa no exame procedido pelo registrador.

A figura processual do amicus curiae ganhou relevo, muito recentemente na história jurídica do país, depois de a Lei nº 9.868/1999, nos termos do § 2º de seu art. 7º, ter passado a admiti-lo em sede de ação direta de inconstitucionalidade, já que, ao mesmo tempo, vedava a intervenção de terceiros no processo. Desde então, nossa suprema corte passou a admitir a prática processual nas arguições de inconstitucionalidade do controle concentrado por ela operado.

Amicus curiae, na dicção oferecida pelo glossário jurídico do Supremo Tribunal Federal, é expressão que significa, na sua literalidade, “Amigo da Corte” e apresenta a seguinte descrição de verbete: “Intervenção assistencial em processos de controle de constitucionalidade por parte de entidades que tenham representatividade adequada para se manifestar nos autos sobre questão de direito pertinente à controvérsia constitucional. Não são partes dos processos; atuam apenas como interessados na causa. Plural: Amici curiae (amigos da Corte).” [2]

Dessa forma, temos o surgimento do amicus curiae, apesar de suas origens remotas provindas do Direito Romano, como uma estraneidade ao rito da dúvida registral que, não se caracterizando como “parte”, termina sendo admitido como um terceiro “especial”, exatamente no momento em que nele é vedada a intervenção de terceiros…

Logo, a admissão do amicus curiae, figura caracteristicamente reservada a instituições que titulem uma representatividade legitimadora peculiar para o processo, coloca em relevo a necessidade de viabilizar-se uma solução adequada para a participação do notário no contexto do procedimento.

O procedimento de dúvida, tido como de jurisdição voluntária e, tradicionalmente por essa razão, tem sido alvo de reservas quanto à possibilidade de nele serem admitidas as figuras características da intervenção de terceiros. Esse purismo jurídico tem de dar espaço a sua admissão, quando razoáveis e adequadas à realização de uma justiça mais efetiva.

Nesse aspecto, como se pode observar, há uma grande similitude com aquilo que é previsto no processamento da ADI, pela Lei nº 6.898/1999. Talvez daí provenha a inspiração jurídica para uma assimilação da figura inovadora ao procedimento de dúvida. É importante frisar que a LRP não cogita da possibilidade de intervenção, por parte da singela figura do amicus curiae, no rito procedimental da dúvida registral.

Por outro lado, o que expressamente admite a LRP, no procedimento de dúvida, é a possibilidade de terceiro prejudicado, em pé de igualdade com o interessado no registro e com o Ministério Público, manejar o recurso de apelação contra a sentença proferida, a qual pode ser recebida em duplo efeito, nos termos do que estabelece o art. 202. Isso coloca em evidência a seriedade do problema revelado a partir da necessidade de ser viabilizada a participação do notário no procedimento, em primeiro grau de jurisdição, já que não lhe será possível a caracterização como terceiro prejudicado.

Veja-se que a LRP admite o ingresso de um terceiro na relação processual tão-somente em grau de recurso, se e quando venha a ser atingido pelos efeitos da sentença proferida, o que difere sensivelmente daquela participação reservada ao amicus curiae, cuja ocorrência vai-se dar já em primeiro grau de jurisdição, antes de proferida a sentença.

Logo, não é bem na condição de “amigo da corte” a situação em que admitida a interferência do Tabelião de Notas no processamento da dúvida registral, mas na condição mais própria de assistente simples enquanto terceiro que pode ser atingido por efeitos reflexos do julgamento proferido, quando viabilizem o surgimento de uma relação de direito material com o assistido.

Seu interesse jurídico, portanto, é de natureza diversa, como bem já sustentávamos ao examinar com maior profundidade essa questão em nossa monografia de conclusão do Curso de Especialização em Direito Registral Imobiliário da PUC-MINAS, a qual deu origem ao livro que dedica toda sua primeira parte a examinar “O procedimento de dúvida no registro de Imóveis: aspectos práticos e possibilidade de participação do notário”, o qual já se encontra em sua terceira edição. [3]

Assim, estamos convencidos de que, independentemente da existência de norma administrativa que o determine, basta ao assistente (no caso, o Tabelião de Notas) que demonstre inequivocamente seu interesse jurídico no êxito do interessado no registro para que venha a ser admitido, não como “parte”, mas como coadjuvante daquele que tenha interesse na manutenção da escritura, já que a decretação de sua anulação terá repercussões imediatas não somente em relação a seu patrimônio, pela via da responsabilidade civil, em ação autônoma decorrente do julgamento da dúvida, mas também em relação a sua credibilidade como autor do ato notarial, enquanto profissional do Direito dotado de fé pública a quem incumbe orientar juridicamente aos interessados na realização do ato ou negócio jurídico.

Aliás, as especificidades do procedimento de dúvida são de tal ordem que uma nova disciplina legal poderia regular-lhe nesse sentido específico, possibilitando, inclusive, que o registrador pudesse oferecer resposta à argumentação do tabelião, proporcionando, ao magistrado, o enriquecimento do debate jurídico, por meio de um “contraditório possível” entre os dois especialistas em matéria de direito notarial e registral, de modo que a decisão final venha a proporcionar um ganho de qualidade e adequação à resolução do caso concreto.

Por outro lado, ainda que nossa visão não seja absolutamente coincidente com aquela albergada pela norma administrativa paulista, que atribuiu ao tabelião de notas, ainda que facultativamente, a condição de amicus curiae, no desenvolvimento do procedimento de dúvida registral, reconhecemos, entretanto, o aspecto positivo da medida, por não se ter omitido no enfrentamento dessa importante questão processual, garantindo, de qualquer forma, a manifestação desse profissional do Direito, nos autos, previamente à prolação da sentença, de modo a oferecer-lhe oportunidade para externar seu qualificado auxílio na resolução de relevantes questões de direito que estão relacionadas diretamente ao exercício de seu múnus público e venham a ser objeto de controvérsia jurídica submetida à apreciação jurisdicional.

Porto Alegre-RS/agosto/2013


[1] Registrador titular do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre-RS.

[3] PAIVA, João Pedro Lamana. Procedimento de dúvida no registro de imóveis. 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 81 e seguintes.

Fonte: Observatório do Registro | http://www.observatoriodoregistro.com.br.

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