Recurso Especial – Usucapião – Estrangeiros – Pessoa jurídica brasileira – Controle estrangeiro – Equiparação – Requisitos especiais – Possibilidade jurídica do pedido


  
 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.641.038 – CE (2016/0205813-6)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : DEL MONTE FRESH PRODUCE BRASIL LTDA

ADVOGADOS : MANOEL LEANDRO DE NOROES MILFONT E OUTRO(S) – CE003176

EDSON MENEZES DA NÓBREGA FILHO E OUTRO(S) – CE015937

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO. ESTRANGEIROS. PESSOA JURÍDICA BRASILEIRA. CONTROLE ESTRANGEIRO. EQUIPARAÇÃO. REQUISITOS ESPECIAIS. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.

1. Ação ajuizada em 01/10/2004. Recurso especial interposto em 26/08/2013 e atribuído a este Gabinete em 25/08/2016.

2. O propósito recurso consiste em determinar se, à luz dos arts. 1º, § 1º, 8º da Lei 5.709/71, é juridicamente possível a usucapião por pessoa jurídica brasileira, cujo capital social seja majoritariamente controlado por estrangeiros.

3. A legislação impõe uma série de condições para a aquisição de terras rurais por estrangeiros, pessoas naturais ou jurídicas, pois nesta questão está envolvida a defesa do território e da soberania nacional, elementos imprescindíveis à existência do Estado brasileiro.

4. Por força do art. 1º, § 1º, c/c art. 8º da Lei 5.709/71, a pessoa jurídica brasileira também incidirá nas mesmas restrições impostas à estrangeira, caso participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior.

5. As mesmas limitações existentes na aquisição de terras rurais existentes para as pessoas estrangeiras – sejam naturais, jurídicas ou equiparadas – devem ser observadas na usucapião desses imóveis.

6. Recurso especial provido para afastar a impossibilidade jurídica do pedido.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Participaram do julgamento os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.

Brasília (DF), 06 de novembro de 2018(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto por DEL MONTE FRESH PRODUCE BRASIL LTDA., com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/CE.

Ação: de usucapião rural, de imóvel denominado Fazenda Ouro Verde III, cuja área é de 343 hectares, conforme fls. 31-33 (e-STJ), alegando preencher os requisitos legais para a aquisição originária dessa área.

Sentença: extinguiu o processo, sem resolução do mérito, ao acolher preliminar de carência da ação, consistente na impossibilidade jurídica do pedido, em função do disposto nos art. 1º, § 1º, e 8º da Lei 5.709/71, que regula a aquisição de imóveis rurais por estrangeiros.

Acórdão: negou provimento à apelação interposta pela recorrente, em julgamento assim ementado:

CONSTITUCIONAL. USUCAPIÃO DE IMÓVEL POR EMPRESA ESTRANGEIRA DE CAPITAL NACIONAL. IMPOSSIBILIDADE. VEDAÇÃO CONTIDA NA LEI Nº 5.709/71. RECEPÇÃO. NORMA EM CONSONÂNCIA COM O TEXTO CONSTITUCIONAL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

– Na presente lide empresa Del monte Fresh Produce Brasil LTDA., empresa nacional de capital estrangeiro, pretende usucapir propriedades rurais situadas na Chapada do Apodi. Diante da vedação expressa à usucapião por empresas estrangeiras ou nacionais com maioria do capital internacional, contida na Lei nº 5.709/71, o magistrado de piso acolheu a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido e extinguiu a lide sem resolução do mérito. O apelante, dentre outros temas devolvidos, pretende seja declarada a não recepção do art. 1º, § 1º, da Lei nº 5.709/71, argumentando que a Emenda Constitucional 06/95 teria revogado o artigo 171, que estabelecia distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, e que a limitação constitucional à aquisição de propriedade, prevista no art. 190, é direcionada apenas a empresas estrangeiras, não atingindo as brasileiras, seja qual a origem de seu capital.

– Da interpretação sistemática e do princípio da unidade da Constituição, conclui-se inexistir a pretendida incompatibilidade do § 1º, do art. 1º da Lei 5.709/71 com a Constituição Federal. Limitar a aquisição da propriedade de patê do território nacional por estrangeiros ou por empresas brasileiras controladas por estrangeiros é dar efetividade à soberania nacional (art. 1º, inciso I, CF), princípio fundamental da República Federativa do Brasil, garantindo a independência do Estado brasileiro (art. 4º, inciso I, CF) na definição das políticas agrárias a serem implementadas, em busca do almejado desenvolvimento nacional (art. 3º, inciso II, CF).

– Incidente de inconstitucionalidade rejeitado.

– Sentença mantida.

Embargos de declaração: acolheu os embargos opostos pela recorrente, sem efeitos modificativos, a fim de esclarecer que sua natureza de pessoa jurídica brasileira, com capital estrangeiro.

Recurso especial: alega contrariedade ao disposto no art. 1º, § 1º, e 8º da Lei 5.709/71. Sustenta, ainda, a existência de dissídio jurisprudencial.

Admissibilidade: o TJ/CE não admitiu o recurso na origem e, após a interposição de agravo, à fl. 504 (e-STJ) determinou-se sua conversão em recurso especial, para melhor análise.

Parecer do MPF: de lavra do Subprocurador-Geral da República, Maurício Vieira Bracks, opina pelo não conhecimento do recurso especial, por incidência da Súmula 83/STJ.

Mencione-se, por fim, que a recorrente também interpôs recurso extraordinário às fls. 385-406 (e-STJ).

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

O propósito recurso consiste em determinar se, à luz dos arts. 1º, § 1º, 8º da Lei 5.709/71, é juridicamente possível a usucapião por pessoa jurídica brasileira, cujo capital social seja majoritariamente controlado por estrangeiros, conforme transcrição abaixo:

Lei 5.709/71

Art. 1º – O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel rural na forma prevista nesta Lei.

§ 1º – Fica, todavia, sujeita ao regime estabelecido por esta Lei a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior.

(…)

Art. 8º – Na aquisição de imóvel rural por pessoa estrangeira, física ou jurídica, é da essência do ato a escritura pública.

Assim, pretende-se discutir se, na vedação constante no art. 8º da Lei 5.709/71, a pessoa jurídica brasileira, cuja maioria do capital social seja controlado por estrangeiros, também é equiparada à pessoa jurídica estrangeira.

1. DA AQUISIÇÃO DE TERRAS POR ESTRANGEIROS

A aquisição de imóveis rurais por estrangeiros há tempos é uma preocupação do legislador pátrio. Afinal, nesta questão está envolvida a defesa do território e da soberania nacional, elementos imprescindíveis à existência do Estado brasileiro, cujas dimensões continentais apenas aumentam a complexidade e o escopo do problema.

Desde o Império são editadas leis que dispõem a aquisição de terras por estrangeiros no Brasil. Benedito SILVÉRIO RIBEIRO identifica o Ato Complementar 45/1969, quer permitia a aquisição de terras apenas por brasileiros ou estrangeiros residentes no país, como um dos precursores da Lei 5.709/71 (Tratado de Usucapião. V. 1. S. Paulo: Saraiva, 2012, p. 328).

Tal legislação impõe uma séria de condições para a aquisição de terras rurais por estrangeiros, pessoas naturais ou jurídicas.

A título de exemplo, as pessoas naturais estrangeiras apenas poderão adquirir imóvel rural no Brasil se residirem no país e se tal imóvel não exceder 3 (três) módulos de exploração indefinida – MEI. Se o imóvel possuir entre 3 a 50 MEIs, dependerá de aprovação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e, se for superior a 50 MEIs, a aquisição será possível apenas com autorização do Congresso Nacional. Para as pessoas jurídicas estrangeiras, é necessária ainda a apresentação de projeto de exploração vinculado aos objetivos estatutários. Para uma melhor explicação dos limites, ver Michel HAVRENNE (A aquisição de imóveis rurais por estrangeiros no Brasil. In: RT, v. 101, n. 919, maio 2012).

2. DAS PESSOAS JURÍDICAS BRASILEIRAS CONTROLADAS POR ESTRANGEIROS

A controvérsia se reveste de contornos mais complexos quando se envolve a possibilidade de aquisição de terras rurais por pessoas jurídicas brasileiras, com sede e administração no país, mas cujo capital social seja controlado por pessoas, físicas ou jurídicas, estrangeiras. Aliás, essa é exatamente a hipótese dos autos.

O § 1º do art. 1º da Lei 5.709/71 realiza expressa essa equiparação, conforme os termos legais: “§ 1º – Fica, todavia, sujeita ao regime estabelecido por esta Lei a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior”.

Em âmbito administrativo, a Advocacia-Geral da União – AGU manifestou-se três vezes sobre o mencionado art. 1º, § 1º, da Lei 5.709/71, por meio dos pareceres LA-04/1994 (anexo ao Parecer GQ-22), LA-01/1997 (anexo ao Parecer GQ-181); e LA-01/2010.

De forma resumida, o Parecer LA-04/1994 (anexo ao Parecer GQ-22) dispôs que o art. 1.º, § 1.º, da Lei 5.709/1971, não foi recepcionado pela CF/88, em razão de suposta incompatibilidade material com a redação de seus arts. 171 e 190. A seguir, o Parecer LA-01/1997 (anexo ao Parecer GQ-181) reexaminou o Parecer LA-04/1994, em razão da revogação do art. 171 da CF/1988 pela EC 06/1995. Manteve a conclusão do Parecer LA-04/94, mas apontou que, com a revogação do art. 171, não haveria impedimento para que a legislação ordinária restringisse, em certos casos, a aplicação do capital estrangeiro no Brasil.

Por fim, em 2010, foi publicado o Parecer CGU-1/2008-RVJ (anexo ao Parecer LA-01/2010), que revogou os pareceres anteriores sobre o tema, além de afirmar ser possível o controle da aquisição de imóveis rurais por pessoas jurídicas brasileiras controladas por estrangeiros. Tal parecer foi aprovado pelo Presidente da República, gerando efeitos vinculativos à Administração Pública, nos termos do art. 40, § 1º, da LC 73/93.

Na esfera judicial, ainda existe controvérsia não resolvida acerca da recepção do § 1º do art. 1º da Lei 5.709/71, atualmente pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF nº 342/DF e na ACO nº 2.463/DF.

Também de forma resumida, a ADPF nº 342/DF foi ajuizada pela Sociedade Rural Brasileira, especificamente para questionar a não recepção do mencionado dispositivo legal, bem como acerca da constitucionalidade da posição da AGU. Neste processo, ainda não há manifestação do STF, apenas parecer da Procuradoria-Geral da República, no sentido da recepção do art. 1º, § 1º, da Lei 5.709/71.

Por sua vez, a ACO nº 2.463/DF foi ajuizada pela UNIÃO e pelo INCRA em face do ESTADO DE SÃO PAULO, visando a declaração de nulidade da orientação normativa contida no Parecer nº 461-12-E da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que reconhecia a não-recepção do já citado dispositivo legal e, assim, permitia a aquisição de terras rurais por pessoas jurídicas brasileiras, sem distinções.

Nestes autos, em 1º/09/2016, houve o deferimento do pedido liminar pelo Min. Marco Aurélio, para suspender os efeitos no Parecer nº 461-12-E da Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo, até o julgamento definitivo da ação.

Feita a exposição acima, é importante consignar, contudo, que não houve, nas razões do recurso especial, qualquer pleito de declaração de inconstitucionalidade incidental acerca do art. 1º, § 1º, da Lei 5.709/71 e, considerando que este tema já se encontra sob o escrutínio do Supremo Tribunal Federal, também não se faz pertinente, neste momento, suscitar de ofício tal discussão.

3. DA APLICAÇÃO DA LEI 5.709/71

Nas razões do recurso especial, o recorrente argumenta que a melhor interpretação sistemática da Lei 5.709/71 implicaria a exclusão da equiparação feita no art. 1°, § 1°, do campo de aplicação de seu art. 8º, que é assim redigido: “na aquisição de imóvel rural por pessoa estrangeira, física ou jurídica, é da essência do ato a escritura pública”.

Assim, prossegue a recorrente, tais dispositivos legais não poderiam ser aplicados à hipótese, o que permitiria a ocorrência da usucapião do imóvel rural apontado na inicial.

No entanto, esta não parece ser uma interpretação possível para os dispositivos legais em discussão. Por força do art. 1º, § 1º, c/c art. 8º da Lei 5.709/71, a pessoa jurídica brasileira também incidirá nas mesmas restrições impostas à estrangeira, caso participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior.

De outro lado, também não se verifica correta a interpretação conferida pelo Tribunal de origem ao art. 8º da Lei 5.709/71, no sentido de afastar a possibilidade de usucapião. No entanto, as mesmas condicionantes devem ser observadas tanto na aquisição derivada quanto na originária.

Com efeito, as mesmas limitações existentes na aquisição de terras rurais existentes para as pessoas estrangeiras – sejam naturais, jurídicas ou equiparadas – devem ser observadas na usucapião desses imóveis. Por exemplo, como argumenta SILVÉRIO RIBEIRO, o estrangeiro – pessoa natural – apenas usucapir imóvel rural apenas se ele for residente no país e se a dimensão da terra não exceder 3 (três) módulos de exploração – MEIs (Op.cit., p. 334).

Da mesma forma, é possível que a pessoa jurídica estrangeira ou equiparada – tal como a recorrente – utilize a via prescricional comum para a aquisição de imóvel rural, desde que preencha todos os requisitos previstos na legislação. Com efeito, não poderá se socorrer da usucapião especial de imóvel rural, prevista no art. 191 da CF/88, mas a usucapião comum ainda lhe está ao alcance.

Entre os requisitos que deverão ser demonstrados, na lição de SILVÉRIO RIBEIRO (Op.cit., p. 374-375) e de HAVRENNE (Op.cit.), encontram-se: (i) a demonstração de que o imóvel rural se destine à implantação de projetos agrícolas, pecuários ou industriais, vinculados aos objetivos estatutários da pessoa jurídica usucapiente (art. 5º da Lei 5.709/71); (ii) comprovação de que “a soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, não ultrapassa 1/4 da superfície dos Municípios onde se situem, comprovada por certidão do Registro de Imóveis” (art. 5º do Decreto 74.965/74, que regulamenta a Lei 5.709/71); (iii) comprovação de que as pessoas de mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias, em cada Município, de mais de 40% (quarenta por cento) do limite fixado no item anterior (art. 5º, § 1º, do Decreto 74.965/74); e (iv) a dimensão de totalidade dos imóveis rurais da pessoa jurídica usucapiente não poderá exceder 100 (cem) módulos de exploração – MEIs, nos termos art. 23 da Lei 8.629/1993.

De fato, o julgamento referido no bojo do acórdão recorrido não se presta a corroborar o entendimento esposado pelo Tribunal de origem. Mencione-se, novamente, o recurso citado:

CIVIL. IMÓVEL RURAL CUJA ÁREA EXCEDE DE 50 (CINQÜENTA) MÓDULOS. DEFESA DA POSSE, POR ESTRANGEIRO. POSSIBILIDADE. Mesmo que não tenha adquirido a propriedade do imóvel rural, o estrangeiro pode defender a posse que recebeu e mantém em função de negócio ajustado por instrumento particular – posse que, evidentemente, não induzirá ao usucapião por força do que dispõe a Lei nº 5.709, de 1971. Recurso especial não conhecido. (REsp 171.347/SP, Terceira Turma, julgado em 14/03/2000, DJ 12/06/2000, p. 105).

O precedente invocado, em realidade, não pugna pela impossibilidade total da usucapião de imóvel rural por estrangeiros, mas que a aquisição prescritiva não seria possível naquela hipótese, por ser contrária aos preceitos contidos na Lei 5.709/71.

Não se trata, portanto, de um pedido juridicamente impossível, mas que deve ser escrutinado, com toda a parcimônia e rigor, pelos órgãos jurisdicionais frente aos requisitos prescritos em lei.

Como afirmado no REsp 1.356.142/SP (Terceira Turma, DJe 17/10/2017), “não cabe ao julgador, ao analisar a possibilidade jurídica, determinar se o autor tem ou não razão, não havendo que se confundir a impossibilidade jurídica do pedido com o mérito da causa”.

De todo o exposto, conclui-se pela incorreção do acolhimento da preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, considerando que o Tribunal de origem deixou de analisar todos os requisitos existentes para a aquisição – originária ou derivada – de imóveis rurais por estrangeiros.

Esta Terceira Turma, no julgamento do REsp 1.331.115/RJ (Terceira Turma, DJe 22/04/2014), afirmou que “a impossibilidade jurídica do pedido consiste, no plano da ação e não da relação de direito material, na inexistência da pretensão em abstrato no ordenamento jurídico”. Dessa forma, para sua configuração é preciso que haja na lei vedação da existência da própria ação.

Na hipótese dos autos, não há nada no ordenamento jurídico que obste prima facie o reconhecimento da usucapião. É certo, contudo, que os requisitos há requisitos estritos e rigorosos, mas que devem ser devidamente auferidos pelos órgãos de jurisdição ordinária.

Forte nessas razões, CONHEÇO do recurso especial e DOU-LHE PROVIMENTO, com fundamento no art. 255, § 4º, III, do RISTJ, para afastar a impossibilidade jurídica do pedido e fazer retornar os autos ao 1º grau de jurisdição para o devido julgamento do mérito da hipótese.

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:

Cuida-se de recurso especial interposto por Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda., com fundamento nas alíneas do permissivo constitucional, no qual impugna acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará assim ementado (e-STJ, fl. 321):

CONSTITUCIONAL. USUCAPIÃO DE IMÓVEL POR EMPRESA ESTRANGEIRA DE CAPITAL NACIONAL. IMPOSSIBILIDADE. VEDAÇÃO CONTIDA NA LEI Nº 5.709/71. RECEPÇÃO. NORMA EM CONSONÂNCIA COM O TEXTO CONSTITUCIONAL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

– Na presente lide empresa Del Monte Fresh Produce Brasil LTDA., empresa nacional de capital estrangeiro, pretende usucapir propriedades rurais situadas na Chapada do Apodi. Diante da vedação expressa à usucapião por empresas estrangeiras ou nacionais com maioria do capital internacional, contida na Lei n° 5.709/71, o magistrado de piso acolheu a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido e extinguiu a lide sem resolução do mérito. O apelante, dentre outros temas devolvidos, pretende seja declarada a não recepção do art. 1º, §1º, da Lei n° 5.709/71, argumentando que a Emenda Constitucional 06/95 teria revogado o artigo 171, que estabelecia distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, e que a limitação constitucional à aquisição de propriedade, prevista no art. 190, é direcionada apenas a empresas estrangeiras, não atingindo as brasileiras, seja qual for a origem de seu capital.

– Da interpretação sistemática e do principio da unidade da Constituição, conclui-se inexistir a pretendida incompatibilidade do § 1º, do artigo 1º, da Lei 5.709/71 com a Constituição Federal. Limitar a aquisição da propriedade de parte do território nacional por estrangeiros ou por empresas brasileiras controladas por estrangeiros é dar efetividade à soberania nacional (art. 1º, inciso I, CF), princípio fundamental da República Federativa do Brasil, garantindo a independência do Estado brasileiro (art. 4°, inciso I, CF) na definição das políticas agrárias a serem implementadas, em busca do almejado desenvolvimento nacional (art. 3°, inciso II, CF).

– Incidente de inconstitucionalidade rejeitado.

– Sentença mantida.

Trazido a julgamento desta Terceira Turma, a Relatora Min. Nancy Andrighi proferiu percuciente voto no sentido de dar-lhe provimento.

Em sua fundamentação, afastou a impossibilidade jurídica do pedido, ressaltando que sua análise se dá no plano da ação, de modo que sua configuração dependeria da expressa vedação legal, o que não existiria para o caso dos autos. Acrescentou ainda que, no caso de usucapião pretendida por pessoa jurídica nacional de capital majoritário estrangeiro deveriam ser observados, além das condições gerais para prescrição aquisitiva comum, os requisitos para aquisição de propriedade imóvel previsto na Lei n. 5.709/1971, ressalvando a impossibilidade de aquisição de propriedade por usucapião especial constitucional (art. 191 da CF/1988).

Por se tratar de questão nova no âmbito desta Corte Superior, pedi vista dos autos para um exame aprofundado.

Como bem ponderou a relatora em seu voto, a questão dos autos revela a preocupação antiga do legislador com a proteção e a integridade do território nacional, elemento essencial da soberania dos Estados nacionais modernos, e que sempre teve uma maior complexidade num país de dimensões continentais, como é o Estado brasileiro. Além disso, a questão continua atual e delicada, renovando-se neste momento de crescente fluxo de pessoas, o que tem potencializado os conflitos entre nacionais e estrangeiros.

Embora a questão dos autos não se refira à aquisição de propriedade por estrangeiros, mas sim por pessoa jurídica nacional de capital estrangeiro, é fato que a legislação ainda em vigor equiparou o tratamento entre estas empresas e os estrangeiros, sejam pessoas naturais, sejam pessoas jurídicas. A par da discussão dos eventuais reflexos da mudança constitucional sobre a validade e eficácia da Lei n. 5.709/1971, após a Emenda Constitucional n. 6/1995, a lei se presume constitucional, uma vez que, apesar da judicialização da questão perante o Supremo Tribunal Federal – ainda pendente de decisão –, até o momento não houve a suspensão de sua eficácia. Do mesmo modo, como bem demonstrou o voto da Relatora, a legislação infraconstitucional e os pareceres vinculativos da AGU reforçam a plena eficácia da Lei no ordenamento jurídico brasileiro.

Assim, a questão posta nos autos devolve a esta Terceira Turma o debate acerca da interpretação sistemática dos arts. 1º e 8º da Lei n. 5.709/1971, a fim de definir se de sua redação resulta em impossibilidade jurídica do pedido de usucapião e consequente extinção do processo sem resolução de mérito.

A impossibilidade jurídica do pedido, enquanto condição da ação, é reconhecida pelo sistema processual brasileiro como pré-requisito à resolução do mérito da demanda instaurada. Traduz-se na transposição para o direito processual das condições de validade dos atos jurídicos, que se encontram explicitadas no art. 104 do CC/2002. Nesse paralelo, reconhecer a impossibilidade jurídica do pedido significa afirmar que a pretensão veiculada não atende a via prevista em lei ou esbarra em via defesa em lei, não se podendo ser compreendida de forma desconectada da relação de direito material, como aliás bem salientou esta Terceira Turma no julgamento do REsp n. 1.331.115/RJ, em que se reconheceu a possibilidade jurídica do pedido porque a pretensão de direito material perseguida encontrava assento na legislação material. O acórdão ficou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE OBRIGAÇÕES. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 458 DO CPC. INOCORRÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. PEDIDO. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA. CAUSA DE PEDIR. EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE.

…………………………………………………………………………………………………..

6. A formulação de pedido que objetiva tutela jurisdicional assegurada, em tese, pelo ordenamento jurídico em razão dos fatos narrados pela parte na petição inicial, em razão da adoção da teoria da asserção, resulta em possibilidade jurídica do pedido.

7. Uma vez ultrapassado o conhecimento do recurso especial, em atenção ao princípio da celeridade processual e desde que não viole o devido processo legal, abre-se ao STJ o conhecimento integral do processo, o que implica o julgamento da causa e a aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ.

8. A exceção do contrato não cumprido tem incidência temporária e efeito primordial de indução do contratante renitente ao cumprimento das obrigações contratual e voluntariamente assumidas.

9. Na hipótese dos autos, em que à época da sentença, a obrigação já se encontrava plenamente satisfeita por uma das partes, não há espaço para incidência da exceção do contrato não cumprido, por ausência de pressupostos legais.

10. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para, afastando a impossibilidade jurídica do pedido, aplicar o direito à espécie.

(REsp n. 1.331.115/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 22/4/2014)

Desse modo, é de se concluir que a impossibilidade jurídica do pedido será peremptoriamente declarada quando houver expressa vedação legal, assim como quando o objeto jurídico pretendido concretamente não encontrar amparo no ordenamento jurídico (REsp n. 1.733.387/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 18/5/2018; REsp n. 1.661.571/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 17/5/2017; REsp n. 1.314.946/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 9/9/2016; REsp n. 1.551.968/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, DJe 6/9/2016; REsp 820.759/ES, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 8/11/2007, p. 173; entre outros).

Diante dessas considerações, acompanho a Relatora Min. Nancy Andrighi quanto à questão central do voto, relativa à interpretação dos dispositivos destacados da Lei n. 5.709/1971.

Com efeito, esclarece o caput do art. 1º da referida lei o objeto de sua regência “o estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel rural na forma prevista nesta Lei“. A forma legalmente prevista, todavia, não específica se a aquisição será derivada ou originária, devendo, por isso, ser observada em qualquer caso de aquisição de imóvel rural por estrangeiro, pessoa natural ou jurídica, e equiparados.

Nesse passo, a determinação do art. 8º da Lei n. 5.709/1971 de que a escritura pública será da essência do ato de aquisição não é suficiente para afastar a aquisição originária. Isso porque a escritura pública é mero documento dotado de natureza jurídica probatória, o qual incrementa o grau de certeza de atos privados em virtude de sua forma solene e disponibilidade pública. Todavia, todos esses atributos são passíveis de substituição pela jurisdição estatal, exercida no bojo da ação judicial de usucapião. Outrossim, o novo Código de Processo Civil viabiliza a usucapião extrajudicial, a qual terá início justamente por meio de escritura pública na qual se declare o exercício da posse do imóvel usucapiendo, o que afasta qualquer interpretação de incompatibilidade da escritura pública e da aquisição pela via prescritiva.

Com esses fundamentos, acompanho integralmente o voto da Relatora Min. Nancy Andrighi.

É como voto. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.641.038 – Ceará – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 12.11.2018

Fonte: INR Publicações.

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