Registro de Imóveis – Retificação registral – Alteração de medidas perimetrais com ampliação da área do imóvel – Loteamento informal implantado sob a vigência do Decreto-lei nº 58/1937 – Aprovação do loteamento indemonstrada – Registro não ocorrente – Vias de circulação e praças convertidas em domínio público pela afetação ao uso comum resultante de fato administrativo – Transferência para o domínio público que se operou nos termos em que de fato estabelecido o loteamento – Inaplicabilidade da teoria do concurso voluntário – Falta de razoabilidade da impugnação oposta pelo ente municipal – Questionamento fundado em fatos inidôneos para fins de transmissão de bens para a dominialidade pública – Ofensa à propriedade descartada – Devolução dos autos ao Registrador para que dê prosseguimento à retificação administrativa – Recurso provido.

Número do processo: 189503

Ano do processo: 2015

Número do parecer: 103

Ano do parecer: 2016

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 2015/189503

(103/2016-E)

Registro de Imóveis – Retificação registral – Alteração de medidas perimetrais com ampliação da área do imóvel – Loteamento informal implantado sob a vigência do Decreto-lei nº 58/1937 – Aprovação do loteamento indemonstrada – Registro não ocorrente – Vias de circulação e praças convertidas em domínio público pela afetação ao uso comum resultante de fato administrativo – Transferência para o domínio público que se operou nos termos em que de fato estabelecido o loteamento – Inaplicabilidade da teoria do concurso voluntário – Falta de razoabilidade da impugnação oposta pelo ente municipal – Questionamento fundado em fatos inidôneos para fins de transmissão de bens para a dominialidade pública – Ofensa à propriedade descartada – Devolução dos autos ao Registrador para que dê prosseguimento à retificação administrativa – Recurso provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

ANNA PAOLA SECCO DE FELICE, LAIS SECCO DE FELICE e NELSON SECCO DE FELICE requereram a retificação da descrição do imóvel objeto da mat. n° 27.291 do 18° RI desta Capital, bem como do estado civil de dois deles.[1]

O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO impugnou a retificação, que, afirma, repercutiria, caso acolhida, em área pertencente ao domínio público municipal. Esclareceu que avançaria sobre a rua José Piragibe, de acordo com o plano de arruamento 180, oficializado pela Lei n° 4.371/1953. Além disso, argumentou que implicaria aumento da área titulada.[2]

O profissional de engenharia que assinou a planta e o memorial descritivo prestou esclarecimentos em mais de uma ocasião.[3] A Municipalidade, em seus pronunciamentos, manteve sua posição contrária à retificação.[4] Os requerentes questionaram a impugnação[5], rejeitada pelo Oficial de Registro[6].

Interposto recurso administrativo pelo MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, com reiteração de suas considerações anteriores[7], os requerentes apresentaram contrarrazões[8] e, ato contínuo, os autos, com nova manifestação do Oficial de Registro[9], foram enviados à MM Juíza Corregedora Permanente.

Após, com o parecer do Ministério Público[10] e novos pronunciamentos da Municipalidade[11], dos requerentes[12] e do Ministério Público[13] –, o recurso foi acolhido, considerando-se fundamentada a impugnação, e, assim, por se entender que a controvérsia versa sobre direito de propriedade, resolveu-se pela remessa dos requerentes às vias ordinárias[14].

Contra essa r. decisão monocrática da Corregedoria Permanente, os requerentes interpuseram recurso administrativo, quando reafirmaram que a impugnação é infundada e alegaram que a discussão, na realidade, não envolve direito real de propriedade nem se ajusta ao precedente lembrado na sentença combatida[15].

Com o recebimento do recurso[16], o ente municipal ofereceu sua resposta[17] e, em seguida, depois da chegada dos autos a esta Corregedoria, a Procuradoria Geral de Justiça propôs a confirmação da r. decisão recorrida[18].

É o relatório. OPINO.

O imóvel a que se refere a pretendida retificação, objeto da mat. n° 27.291 do 18.° RI desta Capital, que nenhuma alusão faz indicativa de sua derivação de algum loteamento, localiza-se na rua José Piragibe, n° 36, Vila Indiana, Butantã.[19] Por sua vez, conforme o cadastramento municipal, situa-se na quadra 367 do setor fiscal 82.

Trata-se de imóvel anteriormente identificado na transcrição n° 81.410 do 10.° RI desta Capital, que se filia à transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital. Em nenhuma dessas, consta inscrição de loteamento.[20] Na última delas, há, todavia, averbações de abertura de vias públicas, entre elas a relativa à rua José Piragibe, antiga rua onze, lançada em 13 de agosto de 1956, sem menção a plano de arruamento.[21]

Os requerentes afirmam que as medidas perimetrais do imóvel são diversas das lançadas no assento predial e sua área total é outra, mais ampla. Ou seja, buscam uma retificação (direta, bilateral e administrativa) de fatos constantes do registro, de sorte a resguardar a compatibilidade da realidade registral com a extrarregistral. Porém, para o impugnante, a pretensão implica avanço sobre área pertencente ao domínio público municipal; não respeitaria o plano de arruamento n.° 180, que, observo, todavia, não figura dos arquivos do 1° nem do 18.° RI desta Capital.

Inclusive, apesar de sua afirmação, a Municipalidade não demonstrou a aprovação do plano de arruamento; nem dele nem do plano de loteamento.O assentimento municipal sequer pode ser extraído da Lei Municipal n° 4.371/1953[22], cuja relação com aqueles planos não se estabeleceu. Não se comprovou, com efeito, que a oficialização objeto dessa lei abarcou o arruamento em discussão.

Aliás, a despertar confusão, o impugnante ora alega aprovação de um plano, ora a do outro, mas conforme advertência de José Afonso da Silva,arruamento e loteamento são institutos distintos, malgrado constituam espécies de parcelamento do solo e decorram de operações voluntárias normalmente desenvolvidas por particulares; ou seja, não se confundem, ainda que o último pressuponha o primeiro.[23]

O arruamento, esclarece José Afonso da Silva, “é a divisão do solo mediante a abertura de vias de circulação e a formação de quadras entre elas. … consiste no enquadramento da gleba por sua divisão em quadras. Se se traçarem quatro ruas formando uma quadra, já se pode dizer que houve arruamento; mas a formação de um lote já não basta para caracterizar o loteamento. Este é um tipo de parcelamento do solo que se configura no retalhamento de quadras para a formação de unidades edificáveis (lotes) com frente para via oficial de circulação de veículos.”[24] Assim sendo, oloteamento, em cotejo com o arruamento, vai além da mera intervenção no sistema viário.

Na situação dos autos, de todo modo, e à vista da documentação exibida[25], infere-se que houve apresentação de um plano de loteamento que contemplou o plano de arruamento. A propósito, José Afonso da Silva assinala que “não raro se emprega a expressão ‘plano de loteamento’ com a abrangência do plano de arruamento, como era exemplo a alínea ‘c’ do inciso I do art. ‘1° do Decreto-lei 58/1937, quando dizia que doplano de loteamento … deverá constar o programa de desenvolvimento urbano ou de aproveitamento industrial ou agrícola.”[26]

Nada se demonstrou, entretanto, volto a frisar, a respeito da efetiva aprovação do plano (projeto) de loteamento para a área em apreço, objeto da transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital, que teria sido idealizado pela Sociedade Civil do Butantã. O impugnante isso não provou. O que se tem, unicamente, é uma planta de loteamento, com plano de arruamento, que, não levada a registro, mantida, portanto, nos arquivos municipais, integraria um suposto (e não exibido) plano (projeto) de loteamento.

Desse modo, quanto às vias públicas e praças que formam o parcelamento (de fato) do solo urbano que contemplou a área identificada na transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital, executado (no mínimo) irregularmente, não cabe, in concreto, cogitar de ocorrência de transferência de propriedade privada ao domínio público resultante de (indemonstrada) aprovação municipal de um desconhecido projeto de loteamento.

Nessa linha, é inapropriado invocar o instituto do concurso voluntário, mormente nos termos em que compreendido pela Municipalidade, e, assim, sob a ótica – a qual não se acede – de antigos precedentes do E. STF[27], que, de toda forma, ainda que prestigiados por julgamentos mais recentes do C. STJ[28], não servem de paradigma para o caso vertente, porque ausente a demonstração da aprovação do plano de loteamento.

Ressalvo, com todas as vênias, aliás, a discordância quanto à compreensão do concurso voluntário, porque, comungando da justa doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, “a teoria em causa exige, para formação do concurso, ato posterior, distinto da simples aprovação.”[29] Esse entendimento, inclusive, foi prestigiado pelo E. STF, igualmente em vetusto julgamento, ocorrido no dia 27 de maio de 1969, no RE n° 59.065/SP, rel. Min. Djaci Falcão.

Sob outro prisma, e deixando momentaneamente de lado a questão do concurso voluntário, também não é admissível firmar, aqui, qualquer vínculo entre a incorporação das vias urbanas e praças ao patrimônio público e os comandos emergentes dos arts. 22 da Lei n° 6.766/1979 e 4.° (já revogado) do Decreto-lei n° 271/1967, porquanto não houve inscrição nem, particularmente, regularização do loteamento sob a vigência de qualquer um desses diplomas legais.

Na realidade, esse bens, vias de circulação e praças que compõem o loteamento irregular em foco, consolidado há décadas, foram transferidos ao domínio público por destinação, com respaldo no (à época vigente) art. 66, I, do CC/1916[30] (atual art. 99, I, do CC). Dito de outra forma, foram incorporados à propriedade pública pela afetação ao uso comum, ao uso indistinto de todos, destino natural desses característicos logradouros públicos.

Essa era a regra, àquele tempo – sempre então que inocorrente (a comum) doação à Municipalidade feita pelo loteador –, mesmo para os loteamentos urbanos regulares, porque o Decreto-lei n° 58/1937, em seu art. 3.°, ao cuidar dos efeitos de sua inscrição, previa somente a inalienabilidade das vias e praças que o integravam, da qual não era autorizado retirar – porque não era nem é modo de aquisição de domínio previsto em lei –, a transferência da propriedade privada ao Município.

Enfim, antes da disciplina introduzida pelo Decreto-lei n° 271/1967, sucedida pela da Lei n° 6.766/1979, com expresso regramento do modo e do momento da conversão do domínio privado em público – e mesmo atualmente para loteamentos ilegais, mormente para os irregulares –, a aprovação do loteamento pela Municipalidade, sequer ocorrente, não bastava para que as vias e praças, espaços livres e áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto (plano) de loteamento e do memorial descritivo, fossem incorporados ao patrimônio do Município.

Precisas, a esse respeito, as considerações de Celso Antônio Bandeira de Mello, ao abordar o regime jurídico anterior ao Decreto-lei n° 271/1967:

A tese que imputa à aprovação do projeto de loteamento poder instaurador de propriedade pública sobre vias e áreas livres carece de base legal ou principiológica.

De um lado, o Decreto-lei 58 em nada abona esta inteligência. De outro lado, a aprovação é simples ato administrativo de concordância com um projeto. O loteador, ao submetê-lo à Prefeitura, está simplesmente a revelar intento de vir a lotear um bem. Pode não fazê-lo, entretanto. Pode não registrá-lo. Pode não vender lote algum. Pode não executar qualquer arruamento.

Posto que não realize qualquer ato jurídico apto a transferir domínio nem qualquer ato material donde resulte utilização pública, seria um contrassenso que viesse a perder a propriedade das áreas em questão e outro contrassenso que o Poder Público se transformasse em proprietário de ruas que não existem.[31]

Não parece realmente coerente com o texto à época em vigor afirmar que a aprovação do plano de loteamento transferiria a propriedade privada para o domínio público, se, enquanto não inscrito o empreendimento imobiliário, ainda alienáveis, pelo loteador, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta, conforme interpretação a contrario sensu do art. 3.° do Decreto-lei n° 58/1937.

Além disso, o plano de loteamento sequer pode ser qualificado como título translativo de propriedade. Não por outra razão, aliás, era comum, na vigência do Decreto-lei n° 58/1937, que os entes municipais exigissem, dos loteadores, a doação (ou o compromisso de doação) das áreas correspondentes às vias urbanas de circulação e aos demais logradouros públicos, como uma das condições para concordar com o empreendimento imobiliário projetado.

Sob outro ângulo, tampouco, ainda sob a regência do Decreto-lei n° 58/1937, era suficiente, à transmudação da propriedade privada em pública, a inscrição do loteamento. Pontuou-se, acima, que não havia textual disposição legal atribuindo-lhe tal eficácia. E não seria razoável, ademais, cogitar, para a eventualidade da frustração do projeto de loteamento, de uma propriedade pública resolúvel, sujeita, sem base normativa, a uma condição resolutiva.

Alinha-se, nesta senda, à sagaz conclusão de Mário Bernardo Sesta, a lembrar de que a inalienabilidade não é traço absoluto nem exclusivo dadominialidade pública e, por isso, com sua previsão acautelatória no art. 3.° do Decreto-Lei n° 58/1937, apenas se buscou “proteger interesses vinculados condicionadamente a uma realidade que se prenuncia, que é possível mas não necessária”; “tutelar interesses à futura área urbana eventual e possivelmente decorrente do plano de loteamento inscrito, tornando, desde a inscrição, inalienáveis as áreas destinadas ao uso comum.”[32]

Essa inalienabilidade, consequentemente, não traduz nem consubstancia a passagem de bens privados para o domínio público. Até em virtude disso, o Decreto-lei n° 58/1937, em seu art. 6.°, alínea b, permitia o cancelamento da inscrição dos loteamentos urbanos, a pedido do proprietário, e independentemente da anuência da Municipalidade, se ainda não comercializados os lotes mediante compromissos averbados ou caso obtido o consentimento dos promitentes compradores.

Adere-se, assim, à compreensão de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem, “nos loteamentos urbanos anteriores ao Decreto-lei 271 de 28.2.1967, e em quaisquer loteamentos rurais, a dominialidade pública nasce com a concreta afetação fática das vias públicas ao uso da coletividade, seguindo igual destino, por derivação, as demais áreas previstas para fins públicos.”[33] (grifei)

Não destoa Mário Bernardo Sesta, cuja posição, em atenção ao seu lúcido desenvolvimento, merece transcrição:

Ninguém duvida… que vias públicas, praças e logradouros em geral, destinados a uso comum do povo, sejam bens públicos

Cumpre, pois, dentro da perspectiva antes traçada, analisar quando, no regime do Decreto-lei 58/37, sobreviria a dominialidade pública sobre aqueles tratos da terra.

Quando o loteamento deixa de ser projeto e passa a ser realidade; quando o sistema de acesso aos lotes é aberto e logradouros públicos ao menos delineados; quando lotes são compromissados, então o novo trato urbano passa a existir. Naturalmente ocorrerá então a afetação das áreas comuns ao uso comum do povo a que se destinam. Afetadas ao uso comum do povo, passarão então a integrar a dominialidade pública.

O interesse público se atualiza no momento em que o loteamento passa a ser realidade, e a destinação das áreas de uso público vai inseri-los nodomínio público municipal.

O que nos interessa sobremodo… é fixar que, até a afetação, o que existe é tão-somente domínio particular… No regime do Decreto-lei 271/67, a afetação coincide com o registro; no regime do Decreto-lei 58/37 a afetação é posterior ao registro e se dá pelo efetivo uso comum do povo sobre as áreas que forem ao mesmo destinadas e/ou pelo mesmo tomadas.[34] (grifei e sublinhei)

Dentro desse contexto, na situação examinada nestes autos, impõe reconhecer que a implementação do loteamento, a envolver a execução do arruamento, ocorrida há mais de cinco décadas, marcou a incorporação à dominialidade pública das vias de circulação e praças, em suma, dos logradouros públicos então contemplados no empreendimento imobiliário.

Aliás, em se tratando de loteamento informal, não antecedido de (comprovada) aprovação pelo ente municipal nem de inscrição na serventia predial, a conclusão se impõe com mais força, pois, embora acima descartada, sequer é possível associar a conversão do domínio particular em público a um desses fatos. Esse o pensamento de José Afonso da Silva: “se as vias foram abertas em loteamento irregular, ou clandestino, elas se tornarão bens de uso comum do povo por destinação…”[35].

Complementa Celso Antônio Bandeira de Mello, ao focar o fato da afetação oriundo da utilização de vias postas em público em situação relacionada com loteamentos ilegais: “…é dever jurídico do Poder Público embargar operações de retalhamento do solo, se procedidas contra a lei. Se omitiu-se no dever de embaraçar e frustrar retalhamento ilegítimo do solo municipal e à sombra desta omissão surgiram, medraram e se desenvolveram interesses de munícipes, se foram abertas e postas em público vias de circulação, não lhe cabe, ao depois, erigir-se no poder de renegá-las, pois tais vias já serão vias coletivas, isto é, do Município.”[36]

Ou seja, a transferência dessas áreas para o domínio público se operou, no caso, nos termos em que de fato implantado o loteamento. O arruamento e o alinhamento (“limite entre a propriedade privada e o domínio público”[37]) persistem, aliás, sem oposição da Municipalidade, há mais de cinquenta anos.

Ao longo desses anos, não se revelou, em particular, que outro, de fato, foi o traçado da rua José Piragibe (antiga rua onze), via pública que entesta o imóvel objeto da pretendida retificação. Não se embargou a tempo as obras (há décadas consolidadas) de urbanificação. Não se exigiu, em momento oportuno, a regularização do loteamento, também não assumida pelo impugnante.

Por outro lado, é de rigor sublinhar que a afetação, instituto típico do direito administrativo, definido por J. Cretella Júnior como “o fato ou o pronunciamento do Estado que incorpora uma coisa à dominialidade da pessoa jurídica pública”[38], não é necessariamente expressa; não deriva forçosamente de ato administrativo ou normativo.

Quanto a isso, Floriano de Azevedo Marques Neto é categórico: “a afetação advém de um fato jurídico, podendo corresponder ou não a um ato jurídico ou legislativo.”[39] (grifei) Maria Sylvia Zanella Di Pietro compartilha desse entendimento.[40] E sobre o tema ainda vale reproduzir o escólio de José dos Santos Carvalho Filho:

deve destacar-se que a afetação e a desafetação constituem fatos administrativos, ou seja, acontecimentos ocorridos na atividade administrativa independentemente da forma com que se apresentem. …O fato administrativo tanto pode ocorrer mediante a prática de ato administrativo formal, como através de fato jurídico de diversa natureza. Significa que, até mesmo tacitamente, é possível que determinada conduta administrativa produza a afetação ou a desafetação, bastando, para tanto, verificar-se no caso o real intento da Administração.[41](grifei)

Aperfeiçoou-se, no caso, há décadas e por força da concretização do loteamento, uma relação de afetação natural; afetação (automática) resultante do uso das vias urbanas e praças integrantes do empreendimento, entregues e vocacionadas ao atendimento de finalidade pública, em suma, consagradas a uma utilização de interesse geral da coletividade.

Logo, infundamentada a impugnação do Município de São Paulo, que se escora, para afirmar que a retificação avança sobre bem público, em plano de loteamento imobiliário que (não registrado e cuja aprovação sequer foi comprovada) não foi estabelecido consoante inicialmente planejado.

A planta de loteamento apresentada não se presta a demonstrar – nem a sugerir – a interferência alegada. Por meio dela – ou mesmo mediante sua aprovação (indemonstrada) –, nenhum bem foi incorporado ao patrimônio público. A dominialidade pública surgiu da execução do loteamento, da forma como efetivado. Assim, não há que se cogitar de controvérsia sobre direito de propriedade. E o decidido no processo CG n° 73.299/2015 não serve de parâmetro para a hipótese em debate.

Procedeu com acerto, enfim, e respaldo no subitem 138.19, I, do Cap. XX das NSCGJ, o Oficial, ao rejeitar a impugnação. A propriedade alegada pelo Município de São Paulo, hipoteticamente atingida pela invasão assinalada na planta exibida[42], ficou no plano ideal, no campo das intenções. Não transpôs a planta do loteamento. Limitou-se ao projeto. Não passou de uma quimera; uma ficção. E para isso foi determinante o beneplácito do impugnante, que tacitamente concordou com as vias urbanas e praças que foram, de fato, destinadas, no plano fenomênico, ao patrimônio público.

Em momento algum, a Municipalidade de São Paulo demonstrou que a implantação do loteamento, em sua origem, foi outra. Lançou somente suspeitas, dúvidas, que antes, isso sim, favorecem os requerentes. Com efeito, pondera que, em 1958, “a praça em frente ao imóvel (retificando) não estava implantada e a maioria dos lotes defronte a praça estavam vazios, com limites imprecisos.”[43] Disso, contudo, não se extrai que a execução do empreendimento imobiliário observou a planta de loteamento em poder do impugnante. Ao contrário, permite deduzir que houve implantação parcialmente diversa, consoante afirmam os requerentes.

Isso, além do mais, é reforçado por outra declaração da Municipalidade, de acordo com quem as plantas existentes em seus arquivos “registram a existência de espaço livre próximo ao imóvel retificando, bem como uma praça defronte à área retificanda, hoje denominada Capitão Santana, que foi implantada com tamanho menor que o projetado, o que implicou em ganhos expressivos de áreas aos lotes lindeiros.”[44] Ora, essa afirmação deixa claro que a implantação do loteamento não se orientou, em sua plenitude, pelo perspectivado. Dá amparo à tese dos requerentes.

Dessa maneira – considerado o momento em que, à época dos acontecimentos, dava-se a passagem dos bens privados para o domínio público, então sob o regramento do Decreto-lei n° 58/1937 –, justifica-se a posição assumida pelo Oficial de Registro, pois, na situação em discussão, operou-se nos termos em que realizado o arruamento, com sua disponibilização ao uso comum, e, por conseguinte, na forma em que perfectibilizado o loteamento.

Agora, não há razão alguma para lançar mão aqui da desnecessária teoria do concurso voluntário, de origem francesa (offre de concours),invocada, aliás, mas com conclusões distintas, tanto pelos requerentes, acompanhados pelo Oficial de Registro, como pelo ente municipal. Penso que em nada contribui para a segurança jurídica – em atenção, especialmente, às controvérsias sobre sua correta apreensão e aplicação aos casos de loteamento –, além de ser prescindível, valoradas a prevalência e a suficiência do instituto da afetação.

Na oportuna crítica de Celso Antônio Bandeira de Mello, essa construção teórica “presume necessário um ato onde já pode existir um ‘fato’ de afetação ocorrido – ora com a explícita aquiescência do Poder Público, quando se trata de loteamento aprovado e registrado, ora propiciado pela inércia do Poder Público, quando se trata de loteamento clandestino.[45] (grifei)

Interessa ainda salientar que as diversas averbações de vias urbanas na transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital[46] – realizadas sem amparo em planta de arruamento, mas com base em certidões expedidas pelo ente municipal, de que é exemplo a pertinente à rua José Piragibe[47] –, nada beneficia a tese do impugnante. Antes, ao reverso, indica a falta de aprovação e de registro do loteamento, sua informalidade, expressa em prática comum ao tempo do Decreto-lei n° 58/1937[48], e, logo, substancia o caráter infundado da impugnação.

Em arremate, é necessário realçar que ora se analisa unicamente a impugnação oposta pela Municipalidade de São Paulo, rechaçada, porque ausente o direito de propriedade declarado, jamais existente, à luz das informações e dos documentos expostos. Isto é, a retificação pretendida não interfere na propriedade do impugnante, no conteúdo de seu direito; não importa indevida aquisição (então por via oblíqua) de propriedade pertencente ao ente municipal.

De toda maneira, cabe destacar que, nada obstante não se preste à aquisição ou à perda de propriedade (com ressalva das situações do art. 213, II, §§ 6° e 9°, da Lei n° 6.015/1973), a retificação administrativa (não contenciosa) pode envolver alteração de medidas perimetrais e ampliação ou redução da área do bem imóvel identificado no registro retificando, caso não coloque em risco direitos de terceiros.

Segundo José Marcelo Tossi Silva, “também erros relativos à descrição da área e dos limites perimetrais do imóvel, quando originados em equivocada descrição contida na escritura pública, são passíveis de correção mediante retificação direta do registro imobiliário, na esfera administrativa, desde que cabalmente comprovados e que não causem qualquer espécie de prejuízo aos alienantes do imóvel e demais terceiros.”[49] (grifei)

Em resumo: à vista do exposto, admitida a falta de razoabilidade da impugnação apresentada pela Municipalidade de São Paulo, impõe-se, provido o recurso, a devolução dos autos ao Oficial de Registro, a quem competirá, nos termos do subitem 138.20. do Cap. XX das NSCGJ, dar prosseguimento à retificação.

Cabe, com efeito, ao Registrador, uma vez superado o questionamento em exame, aferir a presença dos demais requisitos exigidos para fins de retificação administrativa. Avaliar, em particular, mediante deliberação recorrível, se a retificação, já descartada a invasão agitada pela Municipalidade de São Paulo, não desborda os limites intra muros, se respeita “os limites tabulares do imóvel objeto do registro a ser retificado e dos imóveis confinantes contidos em seus respectivos registros … e, igualmente, os limites dos direitos registrados”[50], com socorro, sempre que necessário, a diligências e vistorias externas, bem como a livros e documentos que compõem o acervo de sua serventia.

Pelo todo aduzido, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência propõe o provimento do recurso no sentido de rejeitar a impugnação oposta pelo Município de São Paulo, ora considerada infundada, e, com isso, devolver os autos ao Oficial do 18.° RI desta Capital, para que dê regular prosseguimento à retificação administrativa.

Sub censura.

São Paulo, 4 de maio de 2016.

Luciano Gonçalves Paes Leme

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso para rejeitar a impugnação oposta pelo Município de São Paulo, considerada infundada, e devolver os autos ao Oficial do 18.º RI desta Capital, para que dê regular prosseguimento à retificação administrativa. Publique-se. São Paulo, 05 de maio de 2016. (a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral da Justiça. Advogados: ZULMIRA MONTEIRO DE ANDRADE LUZ, OAB/SP 62.145 e DANIEL MESQUITA DE PAULA SALLES, OAB/SP 288.510.

Diário da Justiça Eletrônico de 16.05.2016

Decisão reproduzida na página 52 do Classificador II – 2016

Notas:

[1] Fls. 7-124.

[2] Fls. 167-169.

[3] Fls. 184-194; 216-219.

[4] Fls. 212-215; 227-229;

[5] Fls. 237-244.

[6] Fls. 246-248.

[7] Fls. 252-260.

[8] Fls. 264-275.

[9] Fls. 1-6.

[10] Fls. 283-284.

[11] Fls. 287-291.

[12] Fls. 294-298.

[13] Fls. 302.

[14] Fls. 303-307.

[15] Fls. 314-325.

[16] Fls. 326.

[17] Fls. 328-343.

[18] Fls. 354-357.

[19] Fls. 59-64.

[20] Fls. 65-72 e 366.

[21] Av. 08-Fls. 67.

[22] Fls. 242.

[23] Direito urbanístico brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 326-327.

[24] Direito urbanístico brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 326-327.

[25] Fls. 169.

[26] Direito urbanístico brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 328.

[27] RE n° 84.327/SP, rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 28.9.1976; e RE n° 89.252-4/SP, rel. Min. Thompson Flores, j. 8.5.1979.

[28] REsp n° 76.784/PR, rel. Min. Carlos Menezes Direito, j. 27.5.1997; REsp n° 900.873/SP, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 28.9.2010; e REsp n° 1.137.710/PR, rel. Min. Castro Meira, j. 6.6.2013.

[29] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In: Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 89.

[30] Art. 66. Os bens públicos são: I. Os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças.

[31] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 92.

[32] Loteamentos e vias públicas. In: Revista de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais. n°s 45-46, ano IX, p. 55.

[33] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 98.

[34] Loteamentos e vias públicas. In: Revista de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais. n.°s 45-46, ano IX, p. 55-56.

[35] Direito urbanístico brasileiro. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 202.

[36] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In: Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 94.

[37] Hely Lopes Meirelles. Direito municipal brasileiro. 12.ª ed. Atualizada por Célia Marisa Prendes e Márcio Schneider Reis. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 409.

[38] Bens públicos. 2.ª ed. São Paulo: EUD, 1975, p. 122.

[39] Regime jurídico e utilização dos bens públicos. In: Tratado de direito administrativo. Adilson de Abreu Dallari, Carlos Valder do Nascimento, Ives Gandra da Silva Martins (coords.). São Paulo: Saraiva, 2013, p. 415. v. 2.

[40] Direito Administrativo. 10.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 534-535.

[41] Manual de Direito Administrativo. 30.ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1.216.

[42] Fls. 169.

[43] Fls. 258, primeiro parágrafo, e 335, penúltimo parágrafo.

[44] Fls. 213, item 3, 257, item 5, e 335, antepenúltimo parágrafo.

[45] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In: Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 95.

[46] Fls. 65-72.

[47] Fls. 67, av. 08, e 367.

[48] Cf. Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei. Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais (loteamento e desmembramento). 4.ª ed. Campinas: Millennium, 2014, p. 44.

[49] O procedimento de retificação de registro imobiliário no direito brasileiro. In: Direito imobiliário brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. Alexandre Guerra; Marcelo Benacchio (coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 1.108.

[50] José Marcelo Tossi Silva. O procedimento de retificação de registro imobiliário no direito brasileiro. In: Direito imobiliário brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. Alexandre Guerra; Marcelo Benacchio (coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 1.114.

Fonte: INR Publicações.

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ANOREG/SP envia para todos os Cartórios um Kit com manuais de atendimento

Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (ANOREG/SP), com o objetivo de auxiliar as unidades paulistas no atendimento e disponibilização de acessibilidade ao público, enviará para todos os Cartórios um Kit de manuais para ser lido por todos os funcionários da Serventia. O material impresso contribuirá para a melhoria e padronização do atendimento à população.

As publicações e envio das cartilhas faz parte das estratégias da Anoreg/SP pela busca incessante de uma melhor experiência dos cidadãos com os serviços cartorários.

Cada cartório receberá uma via de cada manual, contudo a versão digital estará disponível para acesso no site www.anoregsp.org.br, na seção “Publicações” e na categoria “Manuais e Cartilhas”.

O Kit contém os seguintes materiais:

Fonte: Anoreg/SP | 14/11/2017.

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Jurisprudência mineira – Remessa necessária – Apelação cível – Ação de indenização por danos materiais e morais – Anulação de testamento – Delegação de serviço público – Responsabilidade objetiva – Responsabilidade subsidiária do Estado

REMESSA NECESSÁRIA – APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – ANULAÇÃO DE TESTAMENTO – DELEGAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO – PRESERVAÇÃO DO CARÁTER PÚBLICO – RESPONSABILIDADE OBJETIVA – ART. 236 DA CF/88 – ART. 22 DA LEI Nº 8.935/94 – RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ESTADO – FORÇA ECONÔMICA PARA SUPORTAR A CONDENAÇÃO – PRECEDENTES DO STJ – LEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO

– Os Notários e Oficiais de Registro possuem responsabilidade objetiva direta pelos danos causados a terceiros, segundo o art. 22 da Lei nº 8.935/1994. O desenvolvimento de atividade estatal delegada deve se dar por conta e risco do delegatário (inteligência do art. 236, § 1°, da CR/88).

– A responsabilidade do Estado, em relação aos serviços notariais, é objetiva e subsidiária, ou seja, o Estado só tem responsabilidade pelos atos praticados pelos Oficiais Cartorários caso estes não possuam força econômica para suportarem os valores atribuídos a título de indenização por ato cometido em virtude da delegação.

– O dano material é o prejuízo financeiro efetivamente sofrido, que importa em diminuição do patrimônio. O dano de ordem material, assim, divide-se em dano emergente, isto é, o que a parte lesada efetivamente perdeu, e o que razoavelmente deixou de ganhar (os chamados lucros cessantes). Não restou configurado o dano emergente, visto que os autores nunca foram possuidores dos bens deixados em testamento, já que a anulação do ato praticado em desconformidade com as prescrições legais produz efeitos ex tunc, retroagindo a nulidade à sua origem.

Apelação Cível/Remessa Necessária nº 1.0261.12.002213-0/001 – Comarca de Formiga – Apelantes: 1º) Estado de Minas Gerais – 2os) João Pinto Neto e outro, Ana Luiza Leal Pinto – 3ª) Lina Maria Portela – Apelados: Estado de Minas Gerais, João Pinto Neto e outro, Ana Luiza Leal Pinto, Lina Maria Portela – Relator: Des. Dárcio Lopardi Mendes

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em rejeitar a preliminar arguida e, em remessa necessária, reformar em parte a sentença. Prejudicado o primeiro recurso. Negar provimento às apelações.

Belo Horizonte, 22 de agosto de 2017. – Dárcio Lopardi Mendes – Relator.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

DES. DÁRCIO LOPARDI MENDES – Trata-se de remessa necessária e apelação cível interposta pelo Estado de Minas Gerais (1º apelante), João Pinto Neto e outro (2os apelantes) e Lina Maria Portela (3ª apelante), contra sentença de f. 333/344, aclarada pelos embargos de f. 359, proferida pelo MM. Juiz da 2° Vara Cível da Comarca de Formiga, que, nos autos da ação de indenização por danos materiais e morais, condenou Lina Maria Portela e o requerido Estado de Minas Gerais, subsidiariamente, a pagarem aos requerentes, a título de danos morais, a importância de R$10.000,00 (dez mil reais) para cada um, acrescida de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, a contar da citação, corrigida monetariamente a partir do arbitramento, bem como importância a título de danos materiais, em valor correspondente a 90% (noventa por cento) das glebas existentes por ocasião da morte do testador João Rodrigues, no valor de R$2.906,569,80, acrescida de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês e de correção monetária, tudo a partir da citação.

Condenou, ainda, os requeridos ao pagamento de despesas processuais e de honorários advocatícios em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, observada a isenção de custas concedida ao Estado.

Em suas razões (f. 351/355), o Estado de Minas Gerais argumenta, em suma, que é subsidiariamente responsável por eventual dano causado a terceiro, devendo ser condenado apenas se comprovada a insolvência da notária/registradora; que não pode haver condenação referente aos danos morais, pois o que ocorreu foram “meros aborrecimentos” causados pela “quebra de expectativa” decorrida da anulação do testamento, o que não pode ser configurado como “abalo à personalidade”; que o Estado não pode ser culpado por atos ilícitos que feriram os direitos de personalidade dos requerentes, praticados por alguns moradores; que o valor fixado a título de danos morais deve ser reduzido, visto que arbitrado de forma elevada.

Alega que não pode ser considerado o termo inicial para incidência de correção monetária na apuração dos danos materiais, a data da citação, mas sim a partir do desapossamento sofrido pelos requerentes, com fundamento na Súmula nº 43 do STJ.

Assevera, por fim, que, para a correção monetária a incidir sob a condenação, nos termos do art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, deverá ser mantida a TR (em detrimento do IPC), além dos juros moratórios nos mesmos índices da poupança, ou seja, 0,5% ao mês (ao invés de 1%).

Pede, em sede de preliminar, seja apreciado o agravo retido e sejam julgados improcedentes os pedidos iniciais, em face da ausência de insolvência da notária; pugna pela redução do valor da indenização fixada a título de danos morais, bem como dos honorários de sucumbência fixados, ou, eventualmente, que sejam corrigidos os valores na forma preconizada no recurso. Em suas razões de f. 361/374, buscam os apelantes seja reformada, em parte, a sentença, para considerar a responsabilidade solidária do Estado, bem como para majorar o valor da indenização por dano moral. Com essas razões, requerem a reforma parcial da sentença e informam que litigam sob o pálio da gratuidade.

A apelante Lina Maria Portela, em suas razões de f. 377/391, argui, em preliminar, sua ilegitimidade passiva para responder pelos danos sofridos pelos autores, porquanto não respondeu pela ação anulatória de testamento, não tendo oportunidade de produzir provas no sentido de que o ato fora válido; que não teve oportunidade de se defender na ação anulatória; que em nenhum momento foi negligente ou imprudente. No mérito, assevera que os autores sofreram meros aborrecimentos, que não configuram dano de ordem moral; que, quanto ao dano material, não foi homologada a partilha, com transmissão definitiva dos bens, existindo mera expectativa de direito, não sendo possível falar em prejuízo efetivo. Pede seja acolhida a preliminar arguida, ou, caso ultrapassada, seja totalmente reformada a sentença, julgados improcedentes os pedidos. Junta preparo à f. 392. Recursos recebidos em ambos os efeitos, f. 375.

Contrarrazões apresentadas às f. 397/429 e 430/434.

Parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça às f. 446/450, opinando pelo não provimento do recurso.

Conheço da remessa necessária e das apelações, estando presentes os requisitos de admissibilidade.

De início, ressalto que os recursos serão analisados conjuntamente, restando prejudicada a matéria ventilada em agravo retido, visto que analisada em sede de preliminar.

Assim, cabe salientar que tanto a notária/apelante como o Estado de Minas Gerais são partes legítimas para figurar no polo passivo da presente ação, pois, como cediço, ambos possuem responsabilidade objetiva, eventualmente comprovado o dano pela prática irregular de ato notarial.

Com efeito, a obrigação de indenizar é da pessoa jurídica a que pertencer o agente, ou a que preste um serviço público, delegado do ente estatal, de caráter eminentemente público, com fundamento na doutrina do risco administrativo, como dispõe a Constituição Federal, in verbis:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e também ao seguinte:

[…]

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável no caso de dolo ou culpa.”

Por sua vez, a Lei nº 8.935/94, que dispõe sobre os serviços notariais e de registro, prevê, em seu art. 22, que:

“Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.”

Da análise do dispositivo citado, pode-se concluir que os serviços notariais são exercidos em caráter privado, respondendo os oficiais pelos danos que causarem a terceiros na prática de atos próprios da serventia. Assim, são eles os responsáveis principais, enquanto a responsabilidade do Estado é subsidiária.

A questão da espécie de responsabilidade em casos como o presente é bastante controvertida na jurisprudência, enquanto alguns entendem se tratar de responsabilidade solidária, outros concluem que é subsidiária. A meu juízo, entretanto, nas hipóteses de delegação de serviço estatal, o desenvolvimento da atividade se dá por conta e risco do delegatário, como ocorre nas concessões e permissões de serviço público regidas pela Lei nº 8.987/95.

Nesse sentido, o art. 22 da Lei nº 8.935/94 é claro ao atribuir responsabilidade civil a título principal para os Notários e Oficiais de Registro. Nesse caso, eventual responsabilidade civil do Estado seria objetiva, mas subsidiária.

Nesses termos, o Estado só tem responsabilidade pelos atos praticados pelos Oficiais Cartorários caso estes não possuam força econômica para suportarem os valores atribuídos a título de indenização por ato cometido em virtude da delegação.

Sobre o tema, importante é a lição de Celso Antônio Bandeira de Melo:

“Pode dar-se o fato de o concessionário responsável por comportamento danoso vir a encontrar-se em situação de insolvência. Uma vez que exercia atividade estatal, conquanto por sua conta e risco, poderá ter lesado terceiros por força do próprio exercício da atividade que o Estado lhe pôs em mãos. […] Neste caso, parece indubitável que o Estado terá que arcar com os ônus daí provenientes. Pode-se, então, falar em responsabilidade subsidiária (não solidária), existente em certos casos, isto é, naqueles – como se expôs – em que os gravames suportados por terceiros hajam procedido do exercício, pelo concessionário, de uma atividade que envolveu poderes especificamente do Estado. É razoável, então, concluir que os danos resultantes de atividades diretamente constitutivas do desempenho do serviço, ainda que realizado de modo faltoso, acarretam, no caso de insolvência do concessionário, responsabilidade subsidiária do poder concedente” (Curso de direto administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 745).

Nesse sentido, é a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça:

“Administrativo. Danos materiais causados por titular de serventia extrajudicial. Atividade delegada. Responsabilidade subsidiária do Estado. 1. Hipótese em que o Tribunal de origem julgou procedente o pedido deduzido em ação ordinária movida contra o Estado do Amazonas, condenando-o a pagar indenização por danos imputados ao titular de serventia. 2. No caso de delegação da atividade estatal (art. 236, § 1º, da Constituição), seu desenvolvimento deve se dar por conta e risco do delegatário, nos moldes do regime das concessões e permissões de serviço público. 3. O art. 22 da Lei 8.935/1994 é claro ao estabelecer a responsabilidade dos notários e oficiais de registro por danos causados a terceiros, não permitindo a interpretação de que deve responder solidariamente o ente estatal. 4. Tanto por se tratar de serviço delegado, como pela norma legal em comento, não há como imputar eventual responsabilidade pelos serviços notariais e registrais diretamente ao Estado. Ainda que objetiva a responsabilidade da Administração, esta somente responde de forma subsidiária ao delegatário, sendo evidente a carência de ação por ilegitimidade passiva ad causam. 5. Em caso de atividade notarial e de registro exercida por delegação, tal como na hipótese, a responsabilidade objetiva por danos é do notário, diferentemente do que ocorre quando se tratar de cartório ainda oficializado. Precedente do STF. 6. Recurso especial provido” (STJ – REsp 1087862/AM – Relator: Ministro Herman Benjamin – Segunda Turma – j. em 02.02.2010 – DJe de 19.05.2010).

Portanto, cumpre observar que, em ações em que se pleiteiam a reparação de um dano supostamente causado por ato de Oficial de Cartório Extrajudicial, podem ser demandados tanto o Estado como o Tabelião, ou ambos, como se dá no presente caso, pois, na qualidade de serviço público delegado a particular, qualquer um deles pode responder pelo prejuízo causado, o que afasta a ilegitimidade arguida pelos apelantes.

Por ser esclarecedor, segue trecho do voto vencedor, proferido em sede de preliminar, pelo Desembargador Moreira Diniz nos autos da Apelação Cível nº 1.0702.09.555138-9/001, cuja relatoria coube à Desembargadora Ana Paula Caixeta (DJe de 16.06.2014), ambos desta 4ª Câmara Cível:

“[…] ainda que com alguma conotação de atividade privada, o titular de Cartório age como delegado do Estado, de forma que seus possíveis erros podem levar à responsabilização do Estado. O art. 236 da Constituição Federal, mencionado no voto da eminente Relatora, apenas cria a possibilidade de o Estado delegar a terceiro a atividade cartorária, mas a mesma Constituição mantém o vínculo do Estado com a atividade, ao afirmar que o que se faz é uma delegação. A delegação não constitui repasse definitivo, excludente, da competência, mas apenas empresta a terceiro a competência originária, que, em sua raiz, ainda é mantida em favor do Estado. Quem age sob delegação está sujeito à fiscalização, a certa forma de ‘prestação de contas’, o que não elimina o vínculo responsabilizador do Poder Público, ante terceiros, por situações provocadas pelo desvio no exercício da delegação. Dessa forma, o cidadão que se sentir prejudicado por algum ato cartorial pode ajuizar a ação reparatória contra o titular do Cartório, ou contra o Estado, ou contra ambos”.

Assim, tanto o Notário como o Estado de Minas Gerais são partes legítimas para figurar no polo passivo desta ação, pois ambos possuem responsabilidade objetiva, caso comprovado o dano pela prática de irregular ato notarial.”

Rejeito, pois, as preliminares arguidas e passo ao exame do mérito.

Pois bem.

A responsabilidade civil, consubstanciada no dever de indenizar o dano sofrido por outrem, provém do ato ilícito, caracterizandose pela violação da ordem jurídica com ofensa ao direito alheio e lesão ao respectivo titular, conforme a regra expressa nos arts. 186 e 927 do Código Civil, in verbis, respectivamente:

“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

“Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

O referido instituto, no ordenamento jurídico brasileiro, comporta duas modalidades: a subjetiva, que exige a presença do dano, da conduta do agente, do elemento subjetivo da conduta, consistente no dolo ou na culpa, e o nexo causal entre a conduta e o dano. A outra modalidade é a responsabilidade objetiva, para a qual, também, se exige a presença do dano, da conduta do agente e do nexo causal entre ambos, dispensando, todavia, a verificação de dolo ou culpa.

Essa última modalidade, por penalizar o agente da conduta independentemente de sua intenção de lesionar terceiro, ou de sua negligência, imprudência ou imperícia, é excepcional, e somente será possível em casos expressamente previstos em lei. Assim, enquanto a responsabilidade subjetiva é a regra no Direito Brasileiro, são restritas as hipóteses em que se admite a objetiva, ou seja, independentemente de averiguação de culpa do causador do dano, em razão de sua gravidade, visto que o próprio fundamento do instituto da responsabilidade civil encontra respaldo na necessidade de reparar o dano, em função da culpabilidade de seu causador. Cumpre analisar apenas a configuração do fato, do dano e do nexo causal entre eles. Infere-se dos autos que a questão da declaração de nulidade do testamento através do qual os autores/apelantes foram beneficiados restou superada, diante de sentença transitada em julgado.

E ainda, como mencionado, configurada a responsabilidade objetiva, in casu, tendo em vista que o testamento fora anulado por inobservância de regularidade formal da lavratura do documento, necessário analisar, portanto, se fora demonstrado o sofrimento hábil a ensejar a indenização por dano de ordem moral pleiteado.

O dano moral, salienta-se, é aquele que surte efeitos no ser humano, causando-lhe dor, tristeza, aborrecimento ou qualquer outro sentimento capaz de lhe afetar, sem qualquer repercussão de caráter econômico.

Sobre a configuração do referido instituto, transcrevo a seguinte ilação:

“[…] há danos morais que se presumem, de modo que ao autor basta a alegação, ficando a cargo da outra parte a produção de provas em contrário; assim, os danos sofridos pelos pais em decorrência da perda dos filhos e vice-versa, para um cônjuge relativamente à perda do outro; também os danos sofridos pelo próprio ofendido, em certas circunstâncias especiais, reveladoras da existência da dor para o comum dos homens” (Câmara do TJSP, 30.06.1994, JTJ 167/45). No caso em tela, considerando que restou configurada quebra de expectativa dos apelantes em perceberem bens materiais de considerável valor que lhes foram destinados, alterando sua situação econômica e social, bem como pelo fato de terem sofrido toda sorte de desconforto emocional, já que ridicularizados na região onde residem, conforme prova testemunhal produzida (f. 384/387), não há dúvida de que restou configurado o dano de ordem moral sofrido, bem como a responsabilidade civil da agente cartorária em ressarcir os lesionados. Demonstrada, portanto, a ocorrência de fatos e acontecimentos capazes de romper com o equilíbrio psicológico do indivíduo, necessários para a configuração da pretensão indenizatória, patente é o dever de indenizar. Caracterizado, portanto, o dano moral, passa-se a analisar o quantum indenizatório a ser arbitrado. Este deve ser fixado diante da análise do caso concreto, atendendo-se ao caráter de punição do infrator, no sentido de que o requerido seja desestimulado a incidir novamente em conduta lesiva a terceiros; e ao caráter compensatório em relação à vítima lesionada. Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira (Responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 97) leciona:

“[…] quando se cuida de reparar o dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: ‘caráter punitivo’ para que o causador do dano, pelo fato da condenação, se veja castigado pela ofensa que praticou; e o ‘caráter compensatório’ para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido. Deve o Magistrado levar em consideração, ainda, a extensão dos prejuízos, a situação econômica do ofensor e do ofendido e as circunstâncias do fato lesivo, tomando as devidas cautelas para não tornar inócuo o caráter de punição a que visa esse tipo de compensação.

Sobre o tema, observa Nelson Rosenvald (Direito das obrigações. 2. edição, Rio de Janeiro: Impetus, p. 208):

“Diversamente, a pretensão ao dano moral detém simultaneamente caráter punitivo ao infrator e compensatório à vítima, como duas faces de uma mesma moeda. O sofrimento é irresarcível (aliás, a dor não tem preço), por impraticável a eliminação dos efeitos extrapatrimoniais de uma lesão. Todavia, a vítima não pleiteia um preço por seu padecimento, porém uma compensação parcial da dor injusta com os valores percebidos, como forma de amenizar o seu sofrimento. A frustração da vítima será compensada por uma sensação agradável, capaz de anestesiar o mal impingido. Já a finalidade punitiva consiste em uma espécie de castigo ao ofensor pelo dano causado. Pode ser compreendida pela teoria do valor do desestímulo, caracterizada pela condenação do infrator à reparação em valores elevados, como modo de inibir a reincidência da conduta lesiva em situações análogas, funcionando ainda como fator pedagógico. O dano moral alcança valores ideais, não apenas a dor física ou o reflexo patrimonial. Repita-se, há duas diretrizes que merecem especial destaque: a finalidade da sanção reparatória, não no sentido de pena, mas para que o ato abusivo não se repita; e a finalidade da reparação moral, que visa não à restauração do patrimônio da vítima, mas apenas proporcionar-lhe uma indenização compensatória pela lesão sofrida.”

Dessa forma, atento às circunstâncias concretas e, ainda, aos objetivos maiores a que busca o instituto da responsabilidade civil, entendo que, no caso, a indenização por danos morais fixada no montante total de R$20.000,00 (vinte mil reais) deve ser mantida. Não que tal montante vá servir para corrigir o erro, porquanto impossível, mas serve ao menos para compensar, de certa forma, a dor e dissabores sofridos pelos requerentes.

No que tange à condenação por danos materiais, entretanto, entendo que não agiu com acerto o douto Sentenciante. Isso porque, como cediço, o dano material é o prejuízo financeiro efetivamente sofrido, que importa em diminuição do patrimônio. O dano de ordem material, assim, divide-se em dano emergente, isto é, o que a parte lesada efetivamente perdeu e o que razoavelmente deixou de ganhar (os chamados lucros cessantes).

A respeito do pretendido dano emergente, razão não assiste aos autores, visto que, em regra, a anulação do ato praticado em desconformidade com as prescrições legais produz efeitos ex tunc, retroagindo a nulidade à sua origem, destituindo-se o ato de qualquer efeito.

Na hipótese, conquanto a sentença tenha sido anulada nove anos após a lavratura do testamento e possa ter produzido atos consumados de natureza irreversível, tal como modificação do terreno herdado, por exemplo, diante da boa-fé dos ocupantes, na realidade, não verifico o dano alegado, já que os autores nunca foram possuidores das glebas de terra e outros bens deixados. Ora, não houve perda patrimonial, mas expectativa frustrada de direitos.

Não vislumbro dos autos os alegados danos emergentes. Tampouco há que falar em lucros cessantes. Passo à análise da atualização da condenação.

Quanto à correção monetária, ressalto que é simples instrumento de atualização, capaz de preservar o valor econômico da moeda, objetivando preservar o valor do montante que era devido em momento passado, imprescindível, portanto, sua incidência na condenação.

Em se tratando de danos morais, a jurisprudência é mansa e pacífica no sentido de que o termo inicial para sua incidência é a data da prolação da decisão que estipulou o valor da indenização. Vejamos:

“A correção monetária das importâncias fixadas a título de danos morais e estéticos ‘incide desde a data do arbitramento’ (Enunciado nº 362 da Súmula do STJ)” (REsp 934.969/SP, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, j. em 24.04.2014, DJe de 10.11.2014).

“[…] No que tange à correção monetária da indenização por danos morais, o termo inicial é a data da prolação da decisão que estipulou as indenizações. Precedentes” (REsp 703.194/SC).

“É devida correção monetária sobre o valor da indenização por dano moral fixado a partir da data do arbitramento. Precedentes” (REsp. 931.556/RS).

Eis a Súmula 362 do STJ: “A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento.”

Sobre o tema tratado nos autos, confira-se o aresto do egrégio STJ:

“Agravo regimental no recurso especial. Duplicata sem aceite. Endosso-caução. Protesto indevido. Danos morais. – 1. Não há falar em violação ao art. 535 do Código de Processo Civil, pois o eg. Tribunal a quo dirimiu as questões pertinentes ao litígio, afigurando-se dispensável que venha examinar uma a uma as alegações e fundamentos expendidos pelas partes. 2. A instituição financeira que recebe títulos via endosso-caução, diferentemente do endosso-mandato, responde pelos danos causados em decorrência de protesto indevido. 3. Indenização fixada em R$10.000,00, com correção a partir da data do arbitramento e juros de mora desde o evento danoso. 4. Agravo regimental a que se nega provimento” (AgRg no REsp 1115621/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. em 17.09.2013, DJe de 23.09.2013).

“Processual civil. Agravo regimental no recurso especial. Responsabilidade civil. Falsa acusação de furto em estabelecimento comercial. Abordagem inadequada. Dano moral. Configurado. Fixação do quantum. Relação extracontratual. Correção monetária. Súmula nº 362/STJ. Juros de mora. Súmula nº 54/STJ. – 1. A falsa acusação de furto e a abordagem inadequada dos prepostos do estabelecimento comercial expõem a pessoa a situação vexatória ensejadora de abalo emocional, ensejando, portanto, a indenização por dano moral. – 2. O termo inicial da correção monetária incidente sobre a indenização por danos morais é a data do seu arbitramento, consoante dispõe a Súmula nº 362/STJ: ‘A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento’. – 3. Os juros moratórios, em se tratando de responsabilidade extracontratual, incidem desde a data do evento danoso, na forma da Súmula nº 54/STJ: ‘Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual’. – 4. Agravo regimental desprovido” (AgRg no REsp 1258882/SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, j. em 18.06.2013, DJe de 27.06.2013).

Em se tratando de responsabilidade extracontratual, na indenização por danos morais, a correção monetária é devida desde a data do arbitramento (data da sentença), acrescida de juros moratórios a partir do evento danoso.

Assim, pelo exposto, considerando que o evento danoso ocorreu antes da vigência da Lei nº 11.960/09, em se tratando de danos morais, a quantia deverá ser atualizada com juros à taxa de 1%, ao mês (Código Civil de 2002, art. 406), desde o evento danoso, até a data 29.06.2009, momento em que os juros e a correção (esta desde a data do arbitramento) deverão respeitar o art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação que lhe atribuiu a Lei nº 11.960/09.

Ante o exposto, pelas razões ora aduzidas, rejeito em preliminar arguida e em remessa necessária, reformo parcialmente a sentença para dela decotar a condenação por danos materiais, bem como para determinar que sobre o montante devido a título de danos morais incida a correção nos moldes mencionados acima. Julgo prejudicado o recurso interposto pelo Estado e nego provimento às apelações interpostas.

Custas recursais, ex lege.

DES.ª ANA PAULA CAIXETA – De acordo com o Relator.

DES. RENATO DRESCH – O Estado recorre quanto à sua responsabilidade, entendendo que essa é subsidiária. Tenho entendimento firmado exatamente nesse sentido, ou seja, de que a responsabilidade civil para serviços delegados é apenas subsidiária, respondendo apenas no caso de incapacidade financeira da delegatária.

Portanto, lanço o presente voto para registrar a subsidiariedade da responsabilidade do Estado.

Súmula – REJEITARAM A PRELIMINAR ARGUIDA E, EM REMESSA NECESSÁRIA, REFORMARAM EM PARTE A SENTENÇA. PREJUDICADO O PRIMEIRO RECURSO. NEGARAM PROVIMENTO ÀS APELAÇÕES.

Fonte: Recivil – DJE/MG | 14/11/2017.

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Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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