Cadastro e registro – confusões históricas


  
 

A entrevista abaixo foi dada à jornalista Belisa Frangione, da ARPEN-SP, cujo extrato serviu para a edição da Revista da AnoregSP Cartórios com você (ed. 6, 2017). O texto não foi publicado na íntegra em virtude de decisão editorial. Publico-a aqui, para conhecimento da comunidade de registradores (SJ).

O senhor acompanhou a elaboração do Decreto nº 8.764, de 10 de maio de 2016?

Não, embora tenha sido a primeira pessoa a ser contatada pelos técnicos da Receita Federal do Brasil numa abordagem preliminar na prospecção da matéria. Desde o início das discussões, posicionamo-nos contra a iniciativa do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais – SINTER, tal e como vinha proposta, por entender que seus objetivos essenciais colidiam com a orientação que se fez vencedora na academia e nos meios corporativos de que os cadastros imobiliários e o registro de direitos são instituições que se distinguem claramente. Há farta literatura que justifica a coordenação entre essas instituições, mas não a absorção de atribuições de uma pela outra. Parece que é justamente isso o que se desenha com o advento do Decreto 8.754/2016.  

Quais os riscos que o SINTER pode representar ao registro de propriedade no Brasil?

Tive ocasião de indicar, num texto crítico[1], quais são os riscos que o projeto representa para o Registro de Imóveis no Brasil. Em síntese apertadíssima diria que se anuncia um “contubérnio” entre cadastro e registro e essa confusão mais prejudica do que ajuda a gestão territorial e o fomento dos negócios jurídicos-imobiliários.

Em que medida o sistema registral será afetado?

Partindo-se do pressuposto de que cadastro é cadastro e registro é registro, o Decreto se inclina para a formação de uma base de dados redundante e concorrente, estruturada à margem do próprio Registro de Imóveis e que é apresentada como fonte fidedigna para revelar a situação jurídica dos imóveis. É o que se lê claramente no documento “Crescimento, Produtividade e Desburocratização”, produzido pelo Ministério da Fazenda e Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Eis os objetivos, na visão do Governo:

  1. Implementar o Sinter, que contém um cadastro nacional de imóveis e de títulos e documentos, integrado com cartórios de registros e de uso compartilhado por diversos órgãos da administração pública.
  2. Reduz o custo para a administração pública e setor privado na obtenção de informações seguras sobre a propriedade de bens imóveis, móveis e títulos e documentos.
  3. Melhora o registro da regularização fundiária; aumento da segurança jurídica da propriedade; aumento da proteção do crédito público e crédito imobiliário, contribuindo para a redução do spread bancário [2].

Pode-se perguntar: o que há de significar o “cadastro Nacional de imóveis e de títulos e documentos”? Cadastro imobiliário (que se não confunde com Registro de Imóveis) entende-se; mas “cadastro de títulos e documentos”? O RTD entra no Decreto como. Depois, o que se deve entender por redução de custos de informação para o setor privado? O SINTER vai se encarregar de prover “informações seguras sobre a propriedade de bens imóveis, móveis e títulos e documentos”? Vai expedir certidões? Instaura-se uma concorrência entre publicidade registral e cadastral – tal e como previsto no conjunto representado pelos Decretos 8.764, 8.777 e 8.789, de 2016?

Seja como for, ainda é cedo para saber exatamente como essa infraestrutura vai funcionar.

Penso que devemos contribuir para que o sistema seja funcional, atendendo aos objetivos essenciais do governo e que se não desnature o sistema de publicidade registral, que atende a finalidades muito diversas das esboçadas no projeto já no seu lançamento.

Os registradores estão preparados para as mudanças?

As mudanças somente serão perfeitamente compreendidas quando for baixado o “manual operacional” previsto no decreto do SINTER. O decreto, no que diz respeito à interação entre a Receita Federal e os Registros Públicos é uma caixa preta. A ambiguidade se insinua no articulado regulamentar. Basta aludir ao misterioso “fluxo dinâmico de dados jurídicos produzidos pelos serviços de registros públicos” (art. 1º do Decreto 8.764/2016) para se ter uma ideia das dificuldades que poderemos enfrentar. Fluxo dinâmico será intercâmbio em tempo real? Parece que sim, nos termos do § 1º do art. 5º do Decreto. As informações “deverão ser atualizadas a cada ato registral”, como está grafado. Seremos um ramal da RF? O Comitê Gestor poderá exigir que os registradores entreguem informações e dados que nem mesmo a Lei nº 6.015/1973 exigiu (v. § 3º do art. 5º cc. art. 13). Além disso, o decreto previu que as informações a serem providas pelos Registros Públicos do país à RF sejam constituídas de “documentos nato digitais estruturados que identifiquem a situação jurídica do imóvel, do título ou do documento registrado, na forma estabelecida pelo Manual Operacional” (art. 5º). Isto significa, simplesmente, que todas as informações do RI deverão ser depuradas e “qualificadas”, no prazo definido pela própria RF, lavrando-se um documento (certidão) o que representará um ônus expressivo para os próprios cartórios. Imagine consubstanciar a situação jurídica de centenas de milhares de imóveis, analisando milhões de atos praticados em cada matrícula desde 1976…

Como a população pode compreender essas alterações?

Penso que a população seguirá servindo-se dos cartórios para realização de seus negócios. O problema é sistemático. A redundância é sempre ruinosa para os sistemas. Não vislumbro como a população possa ser prejudicada pela concorrência do SINTER. Nem beneficiada diretamente.

Quem será diretamente responsável pela segurança das informações e como isso será possível?

Os registradores tradicionalmente sempre foram os responsáveis pela guarda e proteção dos dados (livros, fichas, papeis, microfilmes, etc.). É o que rezam os artigos 22 e seguintes da Lei nº 6.015/1973 combinados com o artigo 46 da Lei nº 8.935/1994. Este último artigo dispõe que os “livros, fichas, documentos, papéis, microfilmes e sistemas de computação deverão permanecer sempre sob a guarda e responsabilidade do titular de serviço notarial ou de registro, que zelará por sua ordem, segurança e conservação”. No fundo, a preservação do acervo nos cartórios, nos dias que correm, é fato que ganha uma relevância especial: proteção à privacidade. Há uma abordagem muito bem fundamentada do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Luís Paulo Aliende Ribeiro. Vale a pena a leitura, pela atualidade de suas conclusões [3].

Qual a relação do SINTER com o combate à corrupção?

O combate à corrupção parece ser a bandeira sob a qual a sociedade brasileira se aglutina. Toda iniciativa tendente ao combate à corrupção e à lavagem de dinheiro deve ser prestigiada e apoiada. Contudo, esse impulso saneador não há de servir para justificar que as próprias instituições sejam abaladas. É preciso ir devagar com o andor. A interconexão do Registro com o Cadastro é necessária e isso é incontornável. Eu próprio já me manifestei nesse sentido. Contudo, o modelo proposto representa mais do que uma infraestrutura de inter-relacionamento; na verdade é fusão, intercâmbio “dinâmico” entre o registro e a Receita Federal, e isto não é expressão de um modelo proposto pelos registradores.

Como ocorrerá a cessão desses dados por parte dos cartórios?

Compulsoriamente (§ 4º do art. 5º do Decreto 8.764/2016). Note que todos os demais órgãos ou instituições que participarão do projeto SINTER poderão aderir por meio de convênios. Além disso, os cartórios deverão prover todas as informações estruturadas e “atualizadas a cada ato registral” e enviadas ao SINTER pela internet, no prazo estabelecido pelo Manual Operacional. O prazo de carência para o início do envio das informações será de um ano, contado da data de publicação da primeira versão do tal Manual. Como se vê, estaremos à mercê do que dispuser o “Manual Operacional”.

Afinal, o Projeto SINTER é bom ou é ruim para o país?

Esta pergunta é difícil de responder. O que posso assegurar é que, já na condição de presidente eleito do IRIB, buscarei dar todo o apoio à iniciativa do Governo Federal, corrigindo os rumos sistemáticos que já se podem perceber – inclusive nas declarações das autoridades presentes no lançamento das medidas econômicas do Governo, feitas no dia 15 de dezembro.

O país precisa construir uma sólida ponte entre o Registro de Direitos e o Cadastro. Vamos discutir com o governo como isso pode se dar sem que percamos em segurança jurídica e ganhemos em termos de precisão e agilidade necessários à racional gestão territorial.

[1] V. JACOMINO. Sérgio. O SINTER e os irmãos siameses da gestão territorial…Revista de Direito Imobiliário. Vol. 81, p. 289-313. São Paulo: RT, jul. – dez 2016.

[2] V. íntegra aqui: https://goo.gl/Bd6rZJ. Acesso em 16.12.2016.

[3] O tema da preservação e proteção de dados de caráter pessoal é atualíssimo. Deixo indicado, de passagem, que o decreto colide com o disposto nos incisos II e III do art. 3º e no art. 11 da Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Sobre o tema do aparente binômio tensivo – publicidade registral versus privacidade: RIBEIRO. Luís Paulo Aliende. Publicidade registral e direitos da personalidade. In Revista de Direito Imobiliário n. 59, jan./jul. 2005. V. tb. DIP. Ricardo. Base de dados, registro informático e o acesso à informação registral versus direito à privacidade. In Revista de Direito Imobiliário n. 63, jul./dez de 2007.

SÉRGIO JACOMINO, Registrador Imobiliário em São Paulo, Capital. Presidente eleito do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil para o biênio 2017/2018. Presidente da ABDRI – Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário. Doutor em Direito Civil pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Neto. Especialista em Direito Registral pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CENOR – Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra.

Fonte: Observatório do Registro | 12/05/2017.

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Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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