Academia Notarial Brasileira entrevista o Desembargador Ricardo Dip sobre a Usucapião Extrajudicial (Primeira Parte)


  
 

Iniciamos a publicação de entrevista concedida pelo Des. Ricardo Dip, do Tribunal de Justiça de São Paulo, acerca da usucapião extrajudicial.

1. Qual sua expectativa acerca do novo instituto da “usucapião extrajudicial” que entrará em vigor no próximo dia 18 de março?

RD: Quero, inicialmente, deixar bem claro que encontro aspectos muito louváveis com a norma do art. 216-A da Lei de Registros Públicos, instituidora do que se vem designando por “usucapião extrajudicial”. Digo isto para não parecer que, criticando alguns de seus aspectos, esteja a desmerecê-la em seu todo ou no principal.
À partida, já os nomes “usucapião extrajudicial” ou “usucapião administrativa” são expressões figuradas. Toda usucapião é extrajudicial. O que há, isto sim, é um novo processo extrajudicial de reconhecimento da usucapião. O termo “usucapião administrativa” padece do mesmo traslado: o que há é um novo processo de “jurisdição” administrativa para reconhecer-se a usucapião.
Num plano panorâmico, o art. 216-A incluído agora na Lei de Registros Públicos instituiu uma modalidade de desjudiciarização que, por sua conclusão, merece aplauso, na medida em que relações consensuais não são próprias para a função judiciária.

Penso, todavia, que, em aspectos singulares, o dispositivo pode frustrar-se, além de incorrer, segundo me parece, em uma trasladação de funções, nisto que atribuiu ao registrador público a instrumentação do título usucapional, quando, em rigor, melhor seria que a formação documentária dirigida à matrícula se assinasse ao notário.
A frustração da norma, assim me aparenta, advirá em particular da falta de previsão legislativa de uma base econômico-financeira –que deveria provir do erário, a quem se impõe o custeio do benefício de gratuidade da justiça− para atrair ao campo extrajudicial um volume considerável de pleitos de usucapião.

2. Parece-lhe, pois, que se poderia ter proposto mais atuação notarial quanto a esta usucapião?

RD: As justificações, classicamente, ou são judiciais ou são notariais. Desjudiciarizou-se, embora de modo facultativo, com este novo art. 216-A da Lei de Registros Públicos, o reconhecimento da usucapião. Instituiu-se um processo registrário, com uma documentação antecedente de origem notarial, cifrada, no texto legislativo, a uma, aliás controversa, “atestação” do tempo de posse.
Essa “atestação” só seria possível, a meu ver e ainda assim destituída da eficácia de fé pública, se nós tivéssemos adotado o modelo ortodoxo da justificação notarial.
Em vez disto, instituímos o paradoxo de um processo de morfologia pré-registrária que tem curso no próprio registro… ou seja, uma espécie de autogestação do registro.
Mas, veja-se este ponto, os documentos que se registram no ofício predial devem ser formados, em rigor, fora dele. Ao registro não compete formar os títulos que deve ele próprio registrar. A documentação registral propriamente dita é só a de seus livros, não a que lhes é externa, embora sejam registrárias, por força de lei, certificações de títulos arquivados. A documentação externa ao registro deve produzir-se por fontes diversas do registro destinatário, entre elas a notarial.

Vale dizer que ao notário se deveria ter assinado a tarefa de justificação do processo aquisitivo imobiliário, com audiência do legitimado tabular e dos confrontantes do prédio prescribendo, audição de testemunhas, vista de documentos etc. E ao registrador competiria, no fim e ao cabo, a tarefa de receber o título para praticar o ato que lhe cabe ordinariamente: qualificá-lo e inscrevê-lo com caráter de formal eficácia erga omnes.
Fez-se de modo diverso com o art. 216-A, trasladando-se para o registro uma tarefa morfológica pré-registral.

3. Como o Sr. vê o tema da “atestação do tempo de posse” pelo notário?

RD: Ainda que se dê ao termo “atestação” um sentido menos próprio, alargado, o que se exige para bem entender os contornos desta “atestação do tempo de posse” é distinguir, de um lado, a fé pública notarial, e, de outro, a atividade do notário enquanto jurista privado.
A fé pública notarial é tributária exclusivamente do quanto captado pelos órgãos dos sentidos externos, mais exatamente pela vista e a audição, e percepcionado pelos órgãos dos sentidos internos, especialmente a memória e o senso comum. Ou seja, a fé pública do notário é uma potestas que opera no âmbito do conhecimento sensível. Nec plus ultra.

O que refoge deste domínio não recebe o selo da fé pública, por mais possa produzir, na esfera probatória, uma eficácia indiciária.

O tempo é um acidente que não pode mais do que ser captado sensivelmente em sua presencialidade. O passado já não há, o futuro ainda não há. Aquele, o passado, pode ser apreendido intelectualmente, e o futuro pode ser conjecturado pelo entendimento e adivinhado até pela imaginação, mas um e outro, futuro e passado, não podem ser captados pelos órgãos dos sentidos externos.  Por isso, não são suscetíveis de atrair a fé pública.

4. Significa que não tem valor probatório essa atestação notarial do tempo de posse?

RD: Não é bem isto. Ela tem valor indiciário, como é próprio de todas as provas que se produzem, tal o caso, fora de um processo e à margem do contraditório. Tem valor privado, particular, mas não de documento público.

Quer dizer, essa “atestação”, seja pela audiência de testemunhas, seja pela vista de documentos (de posse-encargo, p.ex.), valerá como um indício a considerar para a confirmação processual posterior. É só no processo e depois de instaurada a via defensiva e contraditória que poderá pôr-se “a prova à prova”. É com a potencialidade de reproduzir essa prova da “atestação” que ela adquire sua valia, de modo que não pode ser uma potencialidade frustrânea.

5. De maneira que o Sr. distingue entre efeitos de fé pública e de indícios na ata notarial para a usucapião?

RD: Exatamente isto.
Veja este exemplo que me parece esclarecedor: o notário exercita com atração de fé pública a afirmação da identidade das testemunhas ouvidas acerca da posse do prescribente. Se o notário diz que identificou ser “Tício di Peruggia” uma dada testemunha por ele ouvida em audiência e narra o que dele diz ter ouvido, isso não pode ser impugnado fora da via jurisdicional; ou seja, é matéria que escapa da qualificação do registrador.

Mas a veracidade do conteúdo da declaração não se acoberta com a fé pública do notário. Fica a salvo para impugnações extrajudiciais, do registrador inclusive. Porque a afirmação dessa veracidade é mero juízo interpretativo do notário, juízo relevante e que possui caráter indiciário; todavia, proposição intelectual, não atrativa da fé pública. É um juízo que poderá selar-se da autoridade do notário, em sua condição de jurista privado, mas não da potestas pública da fé notarial. 

Fonte: Notariado | 08/03/2016.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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