Artigo – OBRIGATORIEDADE DA RESERVA LEGAL: CORRETA INTERPRETAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO – Por Alexandre Scigliano Valerio

* Alexandre Scigliano Valerio

Artigo originalmente publicado no site do CoriMg- Colégio Registral Imobiliário do Estado de Minas Gerais

1.Introdução

O Ministério Público do Estado de Minas Gerais tem recomendado a diversos Oficiais de Registro de Imóveis do Estado que se abstenham de praticar vários atos nas matrículas de imóveis rurais que não possuam averbação de reserva legal (o chamado “bloqueio da matrícula”). Sobre o tema da reserva legal, referida Instituição propôs um Procedimento de Controle Administrativo perante o Conselho Nacional de Justiça, cujo pedido foi julgado procedente. A recomendação tem sido reafirmada mesmo após a implantação do Cadastro Ambiental Rural, solicitando-se que os Oficiais exijam mencionada averbação ou a comprovação do registro da reserva legal no novo Cadastro. O objetivo deste trabalho é dar a correta interpretação dos dispositivos normativos que tratam o tema, inclusive da decisão proferida pelo Conselho Nacional de Justiça.

2.Fatos

Em 26 de março de 2013, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais – MPMG instaurou, perante o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, um Procedimento de Controle Administrativo– PCA, que recebeu o número 0002118-22.2013.2.00.0000 e que tinha por objeto o tema da reserva legal.

Em 25 de fevereiro de 2014, no âmbito do Procedimento em questão, o CNJ adotou decisão final que foi assim ementada:

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. NOVO CÓDIGO FLORESTAL. RESERVA LEGAL. CADASTRO AMBIENTAL RURAL AINDA NÃO IMPLANTADO. AVERBAÇÃO NO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. OBRIGATORIEDADE.

1. O texto do Novo Código Florestal (Lei n.º 12.651/2012, alterada pela Lei n.º 12.727/2012) provocou alterações no sistema de proteção e controle da área de reserva legal das propriedades rurais, uma vez que o referido dispositivo promove consistente modificação na forma de realização do seu registro junto aos órgãos competentes.

2. Somente o Cadastro Ambiental Rural desobriga a averbação no Cartório de Registro de Imóveis. Assim, considerando-se que o registro no “CAR” é fator imprescindível para a total aplicação do preceito legal, enquanto não implantado, permanece a obrigação imposta na Lei nº 6.015/73 para averbação na matrícula do imóvel, pois o Novo Código Florestal não preconiza liberação geral e abstrata.

3. A manutenção da obrigação de averbar no Registro de Imóveis, enquanto ainda não disponível o Cadastro Rural, atende, portanto, ao princípio da prevenção ambiental, tal qual previsto pela Lei nº 6.938, de 1981, em seu art. 2º.

4. Pedido que se julga procedente para manter hígida a obrigação daaverbação da Reserva Legal junto ao Cartório de Registro de Imóveis.

A parte dispositiva da decisão foi assim redigida (destaques nossos):

Pelo exposto, há que se julgar procedente o presente Procedimento de Controle Administrativo para determinar a suspensão da Orientação nº 59.512/2012 e do Provimento nº 242/2012, objetivando manter inalterada a obrigatoriedade da averbação junto aos Cartórios de Registro de Imóveis Rurais, até a efetiva implantação do Cadastro Ambiental Rural previsto na Lei n.º 12.651/12 (Novo Código Florestal).

A decisão vem sendo interpretada pelo MPMG, Requerente do PCA, como reforço de sua antiga orientação, no seguinte sentido: enquanto não averbada, na matrícula de imóvel rural, a especialização da reserva legal, o proprietário do imóvel que é seu objeto não pode ter deferidos, pelos Oficiais de Registro de Imóveis, diversos atos na mesma matrícula. Assim, enquanto não providenciada a averbação da especialização da reserva legal, não pode o proprietário, com relação a seu imóvel, praticar atos tais como vender, doar, alienar fiduciariamente, hipotecar, extinguir condomínio, adjudicar, arrematar, partilharinter vivos ou causa mortis, lotear, desmembrar, retificar área etc. É o que aqui se denominará bloqueio da matrícula.

Em 6 de maio de 2014, data da publicação da Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente 2/2014, o Cadastro Ambiental Rural – CAR foi implantado (art. 21 do Decreto Federal 7.830/2012 e art. 64 da Instrução Normativa). Em 9 de maio de 2014, foi instalado, no Estado de Minas Gerais, o Cadastro Ambiental Rural, mencionado na decisão do PCA0002118-22.2013.2.00.0000. Em 2 de junho de 2004, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais expediu o Aviso 25/2014, dando notícia da referida instalação.

Não obstante (e mesmo após a implantação do CAR), o MPMG continua entendendo, e recomendando aos Oficiais de Registro de Imóveis do Estado, que a especialização da reserva legal deve ser providenciada pelos proprietários dos imóveis rurais, sob pena de não se proceder a nenhum ato na matrícula (in verbis: “como condição para a prática de todos os atos de registro relacionados à respectiva matrícula”). No entendimento do MPMG, ou o proprietário averba na matrícula a especialização da reserva legal ou comprova, no momento da solicitação de ato perante o Oficial de Registro de Imóveis, a inscrição da referida especialização no CAR – sob pena de não se praticar o ato, repita-se. A nova recomendação expressamente cita, em suas considerações, a decisão proferida no PCA 0002118-22.2013.2.00.0000 (penúltima consideração).

Observe-se que, tanto antes como depois da decisão proferida no PCA0002118-22.2013.2.00.0000, o não atendimento da “recomendação” do Ministério Público sujeitava e sujeita o Oficial de Registro de Imóveis a uma ação civil pública (daí a exigência, na nova recomendação, de que o Oficial responda se vai acatá-la ou não, falando-se ainda, nos consideranda, em “apuração de responsabilidade”).

3.Direito

Conforme se mostrará ao longo do presente artigo, a obrigação de se especializar a reserva legal não implica em bloqueio da matrícula, sendo questões absolutamente diversas e que foram confundidas ou deturpadas pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

3.1.Obrigatoriedade da reserva legal (questão pacífica 1)

Grosso modo, a reserva legal é a obrigação, imposta já por lei ao proprietário de imóvel rural, de não explorar ou explorar de forma limitada parte de seu imóvel, tendo em vista a finalidade de preservação do meio ambiente. O assunto era regulado pelo antigo Código Florestal – Lei Federal 4.771/1965 –, sendo hoje normatizado pela Lei Federal 12.651/2012.

Não há nenhuma dúvida sobre a obrigatoriedade da reserva legal e de sua especialização. Conforme a expressão já indica, a reserva é “legal”, ou seja, criada e imposta pela lei. A obrigação do proprietário do imóvel rural é especializar a reserva legal, localizando sua área, ou seja, descrevendo a área onde ela se situa. Desnecessário discutir o assunto, que não encontrará questionamento por quem quer que seja.

3.2.O local de publicidade da especialização da reserva legal (questão pacífica 2)

Tradicionalmente, a especialização da reserva legal ganhava publicidade mediante sua averbação na matrícula do imóvel, nos termos do art. 167, II, 22 da Lei Federal 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos ou LRP e dos art. 16, § 2º e 44, parágrafo único da Lei Federal 4.771/1965, incluídos pela Lei Federal 7.803/1989 (com a Medida Provisória 2.166-67/2001, o dispositivo do art. 16, § 2º passou a estar previsto no mesmo artigo, § 8º, enquanto o art. 44 passou a tratar outro assunto).

Com a adoção da Lei Federal 12.651, de 25 de maio de 2012, que “dispõe sobre a vegetação nativa” e revogou a Lei Federal 4.771/1965, o assunto passou a estar regulado nos art. 12 a 25 da referida Lei. O local de publicidade da especialização da reserva legal deixou de ser a matrícula do imóvel nos Ofícios de Registro de Imóveis e passou a ser o Cadastro Ambiental Rural – CAR, cadastro eletrônico mantido pelas autoridades ambientais, conforme se verifica no art. 18, “caput” e § 4º da referida Lei, a seguir transcritos (destaques nossos):

Art. 18.  A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.

[…]

§ 4o  O registro da Reserva Legal no CAR desobriga a averbação no Cartório de Registro de Imóveis, sendo que, no período entre a data da publicação desta Lei e o registro no CAR, o proprietário ou possuidor rural que desejar fazer a averbação terá direito à gratuidade deste ato.  (Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).

A implantação do CAR demandou tempo, esforço e dinheiro por parte do governo. Dúvida surgiu quanto ao local de publicidade da especialização da reserva legal, enquanto não implantado (ou “efetivamente implantado”) o CAR. Parece-nos que a verdadeira utilidade da decisão proferida pelo CNJ no PCA 0002118-22.2013.2.00.0000 foi a de resolver esta dúvida, determinando que a especialização da reserva legal continuasse a ter publicidade na matrícula do imóvel, enquanto não implantado (ou “efetivamente implantado”) o CARDe fato, a decisão fala em “manutenção da obrigação de averbar [a especialização da reserva legal] no Registro de Imóveis, enquanto ainda não disponível o Cadastro Rural”.

3.3.A ausência de especialização da reserva legal não gera o bloqueio da matrícula; a correta interpretação da manutenção da reserva legal “nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento” do imóvel

O ordenamento jurídico é um conjunto de normas que podem ser divididas em princípios e regras. Na lição de Canotilho ([2000], p. 1124-1125[1], vários são os critérios sugeridos pela doutrina para diferenciar princípios de regras: o grau de abstração (os princípios possuem um grau de abstração relativamente elevado, enquanto as regras possuem um grau de abstração relativamente reduzido), o grau de determinabilidade (os princípios necessitam concretização, enquanto as regras são diretamente aplicáveis), o grau de fundamentalidade no sistema das fontes de direito (os princípios apresentam esse caráter fundamental, seja em virtude de sua posição hierárquica – princípios constitucionais – seja em virtude de sua natureza estruturante), o grau de proximidade da ideia de direito (os princípios se aproximam mais da ideia de direito e de justiça, enquanto as regras se orientam mais a um caráter funcional) e, por fim, o grau de capacidade normogenética (os princípios são o fundamento das regras, justificando sua existência).

É interessante mencionar, ainda segundo o mesmo Autor (obra citada, p. 1125-1126), que os princípios não são, a nível teórico, excludentes uns dos outros, podendo coexistir mesmo se forem eventualmente contraditórios. Enquanto um conflito entre regras deve ser resolvido pela prevalência de uma delas, uma vez que a regra ou é válida ou não, um conflito entre princípios não leva à mesma conclusão: torna-se necessário confrontá-los e ponderá-los de acordo com sua importância, a fim de decidir qual irá prevalecer no caso concreto. Isso se dá sem prejuízo de sua validade, pois os princípios conflitantes continuarão, ambos (ou todos), juridicamente vinculantes.

Assim, o legislador (constitucional, legal e infralegal) realiza a ponderação ou sopesamento dos valores ou princípios (normas abstratas), concretizando-os em regras (normas concretas).

No ordenamento jurídico brasileiro, tanto o direito à propriedade como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado são valores ou princípios constitucionais (art. 5º, XXII; 170, II e III; 186, II; e 225). A ponderação ou sopesamento desses valores ou princípios deve ser feito seguindo-se a hierarquia do ordenamento jurídico.

Nesse contexto, verifica-se, pela leitura do ordenamento jurídico brasileiro atualmente vigente, que o legislador, em nenhum momento, condicionou os atos na matrícula do imóvel rural à especialização da reserva legal (seja na própria matrícula, seja no Cadastro Ambiental Rural).

Um dispositivo usado pelos defensores da tese do bloqueio da matrícula era o hoje revogado art. 16, § 8º da Lei Federal 4.771/1965 (semelhante ao antigo art. 16, § 2º da mesma Lei), que dispunha o seguinte (destaques nossos):

A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código.

Ora, o dispositivo revela norma óbvia, uma vez que a reserva legal é limitação administrativa ou obrigaçãopropter rem, que acompanha o imóvel; assim, as mutações jurídicas por que passa o imóvel (alienação, oneração, parcelamento etc.) não alterarão a reserva legalVejamos a opinião de alguns autores:

a) Antunes[2]:

A reserva legal é uma obrigação que recai diretamente sobre o proprietário do imóvel, independentemente de sua pessoa ou da forma pela qual tenha adquirido a propriedade; desta forma, ela está umbilicalmente ligada à própria coisa, permanecendo aderida ao bem. O proprietário, para se desonerar da obrigação, necessita, apenas, renunciar ao direito real que possui, mediante a utilização de qualquer uma das formas legais aptas para transferir a propriedade. […]

Efetivamente, a reserva legal é uma característica da propriedade florestal que se assemelha a um ônus real que recai sobre o imóvel e que obriga o proprietário e todos aqueles que venham a adquirir tal condição, quaisquer que sejam as circunstâncias. Trata-se de uma obrigação in rem, ob ou propter rem, ou seja, uma obrigação real ou mista[3]. Convém relembrar as palavras de Orlando Gomes sobre a matéria, in verbis: “(as obrigações reais) Caracterizam-se pela origem e transmissibilidade automática. Consideradas em sua origem, verifica-se que provêm da existência de um direito real, impondo-se ao seu titular. Esse cordão umbilical jamais se rompe. Se o direito de que se origina é transmitido, a obrigação o segue, seja qual for o título translativo.” O ilustre Professor Orlando Gomes não está solitário em sua concepção, sendo uma das mais abalizadas vozes de uma corrente amplamente majoritária sobre o tema. […]

b) Machado[4]

A lei visou a dar um caráter de relativa permanência à área florestada do País. A lei federal determina aimutabilidade da destinação da Reserva Legal Florestal de domínio privado, por vontade doproprietário. Nos casos de transmissão por compra e venda como, também, por acessão, usucapião epelo direito hereditário, a área da Reserva, a partir da promulgação da Lei 7.803/1989, continua com os novos proprietários numa cadeia infinita. O proprietário pode mudar, mas não muda a destinação da área da Reserva Legal Florestal.

c) Milaré[5]:

Cabe observar, por fim, que, à vista do caráter propter rem da reserva florestal legal, bem como considerando o seu objetivo precípuo de salvaguardar a manutenção de cobertura florestal necessária à estabilidade do ecossistema local, impõe o Código Florestal, ao proprietário da área averbada, a vedação da alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação de área, com as exceções previstas no Código.

Nenhum desses grandes autores de Direto Ambiental fala em bloqueio da matrícula[6].

O dispositivo atualmente vigente – art. 18, “caput” da Lei Federal 12.651/2012 – dispõe o seguinte (destaques nossos):

Art. 18.  A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.

O novo dispositivo deve ser interpretado em consonância com o art. 2º, § 2º da mesma Lei, que prova que a correta interpretação não é o condicionamento dos atos referidos (transmissão e desmembramento) à especialização da reserva legal – o que não é dito – senão, somente, sua manutenção em tais situações, uma vez que a reserva legal, repita-se, acompanha o imóvel:

Art. 2º

§ 2o  As obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural.

A regra da transmissibilidade da obrigação é confirmada nos artigos 7º, § 2º (áreas de preservação permanente), 18, § 3º (reserva legal em caso de posse) e 66, § 1º (áreas consolidadas em áreas de reserva legal), todos da mesma Lei.

Frise-se, pois: não houve opção legislativa no sentido de se condicionar a transmissão ou o desmembramento (e nem a retificação de área) de imóvel à prévia especialização da reserva legal.

Quando a ponderação de valores levou ao condicionamento (restrição ao princípio da propriedade privada), o legislador o fez EXPRESSAMENTE, como é o caso da certificação de não sobreposição expedida pelo INCRA, a teor do disposto no art. 176, §§ 3º e 4º da LRP, a seguir transcritos:

Art. 176

§ 3º Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1o será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.

§ 4o A identificação de que trata o § 3º tornar‑se‑á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo.

Observe-se que, no caso da certificação do INCRA, houve um escalonamento, ou seja, um cronograma estabelecido pelo governo, e não a extensão da obrigação, restringindo o exercício do direito de propriedade, de forma imediata a todos os proprietários de imóveis rurais. Na presente data, por exemplo, somente matrículas de imóveis rurais acima de 250 ha estão bloqueadas na ausência de certificação do INCRA.

Ora, os mesmos dispositivos acima são inexistentes no caso da reserva legal (!)

Nesse contexto – condicionar – com base em uma “recomendação” do Ministério Público ou em uma decisão do Conselho Nacional de Justiça, que, numa leitura atenta, assim não o diz – atos na matrícula à prévia especialização da reserva legal (averbada na própria matrícula ou inscrita no CAR) configura ato inconstitucional, ilegal e atentatório ao direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), sujeitando o Oficial de Registro de Imóveis a medidas judiciais por parte dos proprietários dos imóveis rurais.

Os Oficiais de Registro de Imóveis não têm, certamente, posição contrária à preservação do meio ambiente. Não é disso que se trata. O que não se pode é, sob o pretexto de se defender o meio ambiente, DISTORCER o ordenamento jurídico vigente, criando uma obrigação e impondo uma sanção que não foram previstas em lei, em completo ferimento, pois, ao princípio da legalidade.

3.4.Qual é a sanção para a ausência de especialização da reserva legal?

As sanções a serem impostas ao proprietário de imóvel rural que não especializa a reserva legal estão previstas no art. 55 do Decreto Federal 6.514/2008: elas são advertência e multa. Transcrevemos o artigo, que descreve, inclusive, o procedimento para regularizar a situação:

Art. 55.  Deixar de averbar a reserva legal: (Vide Decreto nº 6.686, de 2008) (Vide Decreto nº 7.029, de 2009) (Vide Decreto nº 7.497, de 2011) (Vide Decreto nº 7.640, de 2011) (Vide Decreto nº 7.719, de 2012)

Penalidade de advertência e multa diária de R$ 50,00 (cinquenta reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por hectare ou fração da área de reserva legal.

§ 1o  O autuado será advertido para que, no prazo de cento e oitenta dias, apresente termo de compromisso de regularização da reserva legal na forma das alternativas previstas na Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965. (Redação dada pelo Decreto nº 7.029, de 2009)

§ 2o  Durante o período previsto no § 1o, a multa diária será suspensa. (Redação dada pelo Decreto nº 6.686, de 2008)

§ 3o  Caso o autuado não apresente o termo de compromisso previsto no § 1o nos cento e vinte dias assinalados, deverá a autoridade ambiental cobrar a multa diária desde o dia da lavratura do auto de infração, na forma estipulada neste Decreto. (Incluído pelo Decreto nº 6.686, de 2008)

§ 4o As sanções previstas neste artigo não serão aplicadas quando o prazo previsto não for cumprido por culpa imputável exclusivamente ao órgão ambiental. (Incluído pelo Decreto nº 6.686, de 2008)

§ 5o  O proprietário ou possuidor terá prazo de cento e vinte dias para averbar a localização, compensação ou desoneração da reserva legal, contados da emissão dos documentos por parte do órgão ambiental competente ou instituição habilitada. (Incluído pelo Decreto nº 7.029, de 2009)

§ 6º  No prazo a que se refere o § 5º, as sanções previstas neste artigo não serão aplicadas. (Incluído pelo Decreto nº 7.029, de 2009)

Se, durante muito tempo, houve um “clarão normativo” (ausência de sanção específica para o descumprimento da obrigação de especialização da reserva legal), em 2008 tal lacuna foi preenchida. Nesse sentido: Milaré[7] e Melo[8].

3.5.PCA 0002118-22.2013.2.00.0000

Na petição inicial do PCA0002118-22.2013.2.00.0000, o MPMG, somente em um único parágrafo, revelou suareal intenção de condicionar atos na matrícula à especialização da reserva legal.

A partir daí, em todas as 18páginas da exordial –ou seja, em todo o desenvolvimento e na conclusão –a argumentação do Ministério Público é no sentido da obrigatoriedade da reserva legal e da sua publicidade na matrícula enquanto não implantado o CAR, ambos os assuntos, como dito acima, absolutamente pacíficos (!)

A decisão do Conselho Nacional de Justiça, no mesmo Procedimento, e numa leitura atenta, em nenhum momento condiciona atos na matrícula à especialização da reserva legal. O que ela faz é esclarecer que, enquanto não implantado o CAR, a publicidade da especialização da reserva legal continua devendo ser feita na matricula.

Observe-se que, posteriormente à decisão definitiva, o Ministério Público do Estado de Goiás peticionou nos autos alegando seu descumprimento por parte do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, defendendo, especificamente, a tese do bloqueio da matrícula. A decisão proferida pela d. Relatora do Procedimento, datada de 25 de março de 2014, parece ser contrária à tese:

Considerando que o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás tem adotado medidas em consonância com o entendimento firmado pelo Plenário deste Conselho no bojo do presente feito, não há providências a serem tomadas.

3.6.Atos normativos estaduais

Em 30.10.2013, foi publicado, no Diário do Judiciário Eletrônico/TJMG, o Provimento nº 260/CGJ/2013, que “codifica os atos normativos da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais relativos aos serviços notariais e de registro”. Por se estar em fase de transição – obrigatoriedade de especialização da reserva legal no CAR, ainda não implantado à época – a e. CGJMG preferiu não tratar especificamente o assunto “reserva legal”.

A Lei Estadual revogada (14.309/2002), bem como a Lei Estadual vigente (20.922/2013) contêm dispositivos semelhantes aos das Leis Federais vigentes à época de suas adoções (4.771/1965 e 12.651/2012, respectivamente), nada acrescentando à presente controvérsia.

3.7.Regularização fundiária realizada pelo Estado de Minas Gerais

O Estado de Minas Gerais possui um programa de regularização fundiária, disciplinado pela Lei Estadual 11.020/1993, que implica na discriminação de terras devolutas e transferência de seu domínio aos posseiros.

A vingar o entendimento do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, como a regularização fundiária gera um ato de registro de transferência de propriedade, o programa estadual deveria ser paralisado enquanto o Estado não providenciar a especialização da reserva legal de todos os imóveis rurais por ele discriminados[9].

A consequência social de tal paralisação não é, certamente, irrelevante.

3.8.Efeito prático da exigência

Por orientação (“recomendação”) do Ministério Público Estadual atuante em uma das Comarcas do Estado de Minas Gerais (cujo nome será mantido em sigilo), o Oficial de Registro de Imóveis respectivo passou a condicionar os atos nas matrículas de imóveis rurais à averbação da especialização da reserva legal. Após um ano, referido Oficial realizou um levantamento cuja conclusão foi a seguinte:

a) No ano anterior ao da “recomendação” (período de 12 meses): 246 protocolos de títulos relativos a imóveis rurais;

b) No ano posterior ao da “recomendação”, exigindo-se a prévia averbação da especialização da reserva legal(período de 12 meses): 97 protocolos, sendo que destes em apenas 22 a exigência foi cumprida e os títulos puderam ser registrados.

O caso prático revela uma consequência não prevista para a interpretação do Ministério Público: a desatualização da situação jurídica dos imóveis, haja vista que suas matrículas não revelarão seus verdadeiros proprietários, que serão levados para a informalidade.

Para Melo[10]:

A maior consequência de eventual vinculação da reserva florestal legal a atos de registro seria a criação de um mercado imobiliário informal no âmbito rural, já que a economia tem seu ritmo próprio e sempre está à frente do direito, dificultando ainda mais o trabalho das autoridades ambientais.

4.Possível atuação dos Oficiais de Registro de Imóveis

A função dos Oficiais de Registro de Imóveis é conferir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos relativos a imóveis. Os Oficiais de Registro de Imóveis não podem adotar conduta ilegal e não podem converter-se em fiscais ambientais, assumindo um papel que não lhes é conferido legalmente.

Não obstante, os Oficiais de Registro de Imóveis praticam serviço público absolutamente relevante, devendo estar conscientes de sua função social. Sendo assim, e uma vez que já obrigados a comunicar seus atos a uma série de entidades e órgãos públicos, os Oficiais de Registro de Imóveis devem colocar-se à disposição para acordar, com as autoridades ambientais ou com os Promotores e Procuradores de Justiça que atuam em suas Comarcas, se assim solicitados, um cronograma ou um plano de trabalho para o fornecimento decertidões de imóveis rurais que não possuem averbação de especialização de reserva legal ou cujos proprietários não comprovem sua inscrição no CAR. A partir daí, cabe às mencionadas autoridades iniciar a investigação do caso, convocando os proprietários, elaborando termos de ajustamento de conduta ou outros instrumentos adequados, impondo as sanções juridicamente previstas em caso de seu descumprimento etc., tudo nos termos do art. 55 do Decreto Federal 6.514/2008, já transcrito acima.

5.Conclusão

No ordenamento jurídico atualmente vigente, o chamado “bloqueio da matrícula” em virtude da ausência de especialização da reserva legal (condicionamento de diversos atos na matrícula à averbação da referida especialização ou a sua inscrição no CAR) é conduta inconstitucional e ilegal, atentatória, portanto, aos direitos do proprietário de imóvel rural. Os Oficiais de Registro de Imóveis devem cooperar, dentro da lei, para a promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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1. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4ª ed. Coimbra: Almedina, [2000]. 

2. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 12ª ed. amplamente reformulada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 542-543.

3. GOMES, Orlando. Obrigações. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 21.

4. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 12ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 722. No mesmo sentido, após a adoção da Lei Federal 12.651/2012, cf. a opinião do mesmo Autor na seguinte obra: MILARÉ, Edis; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Novo código florestal;comentários à Lei 12.651, de 25 de maio de 2012 e à MedProv 571, de 25 de maio de 2012. São Paulo: RT, 2012, p. 217-218.

5. MILARÉ, Edis.Direito do ambiente; a gestão ambiental em foco; doutrina; jurisprudência; glossário. 7ª ed. rev., atual. e reformulada. São Paulo: RT, 2011, p. 971.

6. Milaré (obra citada, p. 970) menciona a “tentativa de alguns Estados de atrelarem, sem muito sucesso, a obrigação de averbação a atos registrários”.

7. Obra citada, p. 970.

8. MELO, Marcelo Augusto Santana de. Reserva Legal Florestal (RLF). Em: INSTITUTO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO DO BRASIL. Boletim do IRIB em revista. Edição 338, p. 22-34, p. 27 (25º Encontro Regional dos Oficiais de Registro de Imóveis, 11 a 13 de março de 2010, Tiradentes – MG).

9. O alerta foi feito por Sérgio de Freitas Barbosa, Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Rio Pardo de Minas.
 

10. Obra citada, p. 26.

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* O autor é Doutor em Direito Econômico pela UFMG e Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Taiobeiras/MG.

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1ªVRP/SP: Registro civil das pessoas jurídicas – federação sindical – estatuto que prevê mandato de dirigente com prazo distinto daquele previsto na CLT, art. 538, § 1º – princípio da legalidade – impossibilidade de se discutir, no juízo administrativo, a constitucionalidade da norma – pedido de providências indeferido.

Processo 1067890-42.2014.8.26.0100 – Pedido de Providências – Tabelionato de Protestos de Títulos – FEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS DO VESTUÁRIO NO ESTADO DE SÃO PAULO – Registro civil das pessoas jurídicas – federação sindical – estatuto que prevê mandato de dirigente com prazo distinto daquele previsto na CLT, art. 538, § 1º – princípio da legalidade – impossibilidade de se discutir, no juízo administrativo, a constitucionalidade da norma – pedido de providências indeferido Vistos. Trata-se de pedido de providências formulado pela Federação dos Trabalhadores nas Indústrias do Vestuário no Estado de São Paulo diante da negativa do Oficial do 6º Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital em proceder ao registro da Ata de Apuração e Posse da Nova Diretoria, cujo mandato findou-se em 30.06.2014. Relata a requerente que o Estatuto Social prevê o mandato da diretoria em quatro anos. Nestes termos, em 16.04.2014, foi promovida eleição para novo período, com início em 01.07.2014 e término em 30.06.2018, todavia o título foi prenotado sob os nºs 165.711 e 165.712 (fls.44/45), sob a alegação de constituir afronta ao artigo 538, parágrafo primeiro da CLT que prevê o prazo de mandato do quadro diretivo das Federações em 03 (três) anos. Argumenta que o artigo 8º, I da Constituição Federal, estatui a liberdade sindical, proibindo a intervenção do Estado, sendo que esta liberdade estaria afrontada se as entidades sindicais não pudessem fixar o mandato como melhor lhes conviesse. O Oficial prestou informações às fls. 52/54. Assevera que há várias decisões da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça no sentido da necessidade de observância do artigo 538, § 1º, da CLT. O Ministério Público opinou pela improcedência da ação (fls.58/60). É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir. Como bem observou o Oficial Registrador e o Douto Promotor de Justiça, em matéria registral vige o princípio da legalidade estrita, segundo o qual, nas palavras do desembargador fluminense Marco Aurélio Bezerra de Melo: “O atributo da legalidade impõe ao registrador que faça uma análise minuciosa sobre a legalidade do título e dos documentos apresentados, pois se encontrar proibição legal, deverá recusar o registro. Se houver conflito entre a opinião do registrador e do interessado, deverá aquele suscitar o procedimento administrativo de dúvida” (Direito das Coisas. Ed. Lúmen Juris, páginas 136/137). Logo, conclui-se que o Estatuto Sindical deve observar o previsto no artigo 538, § 1º da CLT e, como bem observou o Ministério Público, não é dado ao Ofício de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital e nem a esta Corregedoria Permanente decidir se tal regra está ou não em vigor, quando não há sua revogação expressa, nem tampouco se é inconstitucional, nem mesmo que tenha sido recepcionada ou não. Neste contexto, observa-se que tal questão já foi enfrentada por este Juízo, em decisões proferidas pelos MM Juízes de Direito Drº Josué Modesto Passos e Drº Marcelo Berthe, das quais coaduno e aproveito o ensejo para colacioná-las: “… De fato, se a CF/1988 consagrou o princípio da liberdade sindical e restringiu (mas não eliminou: e. g., art. 8º, II) a intervenção do Estado no assunto, parece que a regra da CLT, art. 538, § 1º, realmente não tenha sido recepcionada; entretanto, como se sabe, o poder de declarar inconstitucional ou não-recepcionada uma lei formalmente em ordem dá-se somente à jurisdição, mas não ao juízo administrativo, como é o caso desta corregedoria permanente. De outro lado, as decisões administrativas, da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, orientam-se de modo firme no sentido de que não se fará controle da constitucionalidade, afirmando-se a inconstitucionalidade de lei ou mesmo reconhecendo a sua não recepção em face da nova ordem constitucional. O efeito de controle concentrado da constitucionalidade na esfera administrativa violaria todo o sistema de controle da constitucionalidade, sem que se observasse o devido processo legal, com o contraditório e a ampla defesa. Daí porque também a outra exigência, que está relacionada ao tempo do mandato, para que seja adequado ao prazo legal estabelecido no artigo 538, § 1º da CLT deve ser tida como procedente. Não haveria como fazer, no âmbito administrativo, qualquer interpretação no sentido de que essa disposição legal não foi recepcionada pela Carta de 1988, por tudo quanto já foi expendido acima”. Neste sentido também é o entendimento do Egrégio Conselho Superior da Magistratura: “O estabelecido nos julgados mais recentes é que o controle da legalidade, lato sensu, não pode ser feito nos estreitos limites do procedimento administrativo, até porque a eventual decisão que a reconhecesse projetaria seus efeitos para além do feito onde tivesse, sido proferida, tendo verdadeiro cunho normativo. Disso resultaria, a rigor, um controle in abstractu, que permitiria até fosse suprimida a vigência de determinada lei ou decreto, quando estes fossem considerados ilegais, em sentido amplo, em face da constituição ou em cotejo com a lei regulamentada, respectivamente. Vale dizer que o controle da legalidade em sentido amplo encerra o próprio controle da constitucionalidade. E este, na órbita dos feitos administrativos, implicaria na prolação de decisões cuja ultratividade assemelhar-se-ia a um controle concentrado, próprio das sentenças proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade, que têm competência estabelecida de modo restritivo na Constituição Federal. Lembra-se, nesse sentido, de julgado mais recente do Conselho Superior da Magistratura, merecendo destaque o que segue: “A propósito assentou-se que em face da normatividade da decisão proferida, a recusa a cumprimento de ato considerado inconstitucional significaria, desde logo, em inaceitável alcance, o descumprimento do disposto nos Decretos-leis 1.958/92 e 2.038/83 (Apelação Cível 3.346-0, relator: Batalha de Camargo)”. Do exposto, indefiro o pedido de providências formulado pela Federação dos Trabalhadores nas Indústrias do Vestuário no Estado de São Paulo perante o 6º Ofício do Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de São Paulo. Consequentemente, julgo extinto o feito, com apreciação do mérito, nos termos do artigo 269, I do CPC. Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo. P.R.I.C. São Paulo, 11 de agosto de 2014. Tania Mara Ahualli Juíza de Direito – ADV: MARGARETH BATISTA SILVA CARMINATI (OAB 126811/SP) 

Fonte: DJE/SP | 22/08/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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1ªVRP/SP: o Oficial não deve praticar ato sem que o tributo seja recolhido, nas hipóteses em que for obrigatório o pagamento. Isso não quer dizer, no entanto, que caiba ao Oficial julgar qual a correta base de cálculo e emitir juízo de valor sobre a interpretação da legislação tributária e dos fatos apurados no processo judicial. Isso é atribuição que cabe à autoridade fiscal.

Processo 1034977-07.2014.8.26.0100 – Dúvida – Registro de Imóveis – SUELI REGINA RIBEIRO BOCCATO – REGISTRO DE IMÓVEIS – partilha de bens – questionamento sobre a isenção do recolhimento ITCMD – desnecessidade de comparecimento ao posto fiscal da autora para apuração da isenção – comunhão universal de bens – configuração de universalidade de bens – restrição ao exame da regularidade formal das exigências legais pelo Registrador – Dúvida improcedente. Vistos. O 14º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA CAPITAL suscitou dúvida, a pedido de SUELI REGINA RIBEIRO BOCCATO, devido à qualificação negativa da Carta de Sentença, emanada do Juízo da 1ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional do Jabaquara desta Capital, nos autos do divórcio consensual requerido pela interessada e seu ex-marido José Maria Chaves Boccato. O Registrador entende que há doação recíproca de direitos, visto que a interessada era casada em regime de comunhão universal de bens com José. Nos autos da ação de divórcio, acordou-se que a varoa ficaria com o imóvel matriculado sob o nº 111.139, desta Serventia, no valor de R$153.515,00. O varão, por sua vez, receberia o imóvel matriculado sob o nº 73.144, registrado no 8º Registro de Imóveis de São Paulo, no valor de R$134.079,00. Deste modo, inferiu a diferença na partilha no valor de R$ 9.718,00, a maior para Sueli. Pelo regime de comunhão adotado, sabe-se que cada meeiro tem direito a 50%(cinquenta por cento) do total dos bens do casal; assim cada um renunciou à metade da fração ideal de cada imóvel em favor do outro meeiro, configurando-se, assim, a doação recíproca de direitos. O Oficial considerou que o ITCMD deve recair sobre o montante global dos imóveis e não no valor diferencial da transação, sendo que haveria a necessidade de declaração da Fazendo Estadual sobre a isenção legal do recolhimento de tributos. O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida, acolhendo as razões exposta pelo Oficial. É o relatório. DECIDO. Com razão a suscitada. Em que pese o entendimento do Oficial em sua exordial e do Douto Promotor de Justiça, tal questão não é nova, e já vem sendo enfrentada pelos Tribunais Superiores. Nesses autos, insurge-se o Oficial no tocante à necessidade de comparecimento da interessada ao posto fiscal para a apuração da hipótese de isenção do ITCMD, determinando a manifestação da Fazenda nos próprios autos em que ocorreu a partilha dos bens. De fato, o art. 22, I, do Decreto nº 46.655/02, editado em atenção a Lei Estadual nº 10.705/2000, é claro em estabelecer a necessidade de protocolo do pedido na repartição fiscal competente. Contudo, conforme se verifica pela declaração apresentada a fls.04/05, o valor do patrimônio é inferior a 2500,00 UFESPs, sendo, portanto, isento de tributação, nos termos do art. 6º, I, “a”, da Lei nº 10.705/2000. Por conseguinte, realmente desnecessário obrigar-se a parte a comparecer ao Posto Fiscal para cumprir mera formalidade, que pode ser realizada nos próprios autos pelo Juiz Competente. No mesmo sentido: “Agravo de instrumento. Arrolamento. Isenção do ITCMD deferida pelo Magistrado, à vista da condição financeira dos recorridos. Alegação de que somente ao Fisco Estadual tocava deferir a isenção. Afastamento. Pleito que pode ser deduzido e apreciado no âmbito do arrolamento. Precedentes da Câmara. Falta, outrossim, de impugnação quanto ao mérito do deferimento, presumindo-se que os recorridos faziam jus à benese, ainda que o pedido tivesse sido deduzido na seara administrativa. Decisão mantida. AGRAVO IMPROVIDO.” (Agravo de Instrumento nº 2003759-50.2014.8.26.0000, 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, rel. Des. Deonegá Morandini, j. 25 de março de 2014). “Agravo interno. Inventário. Imposto de Transmissão Causa Mortis. Isenção. Providência que independe de requerimento na esfera administrativa para o reconhecimento judicial. Formalidade dispensável. Decreto Estadual n. 46.655/02 (RITCMD) e Portaria da Coordenadoria de Administração Tributária-CAT 15/03, não pode se sobrepor à disposição expressa contida no Código de Processo Civil. Recurso insubsistente. Jurisprudência da Corte. Negado provimento” (A.R. n. 0051065-54.2011.8.26.0000/50000, São Roque, Relator Bereta da Silveira). “Apelação Arrolamento Recolhimento do ITCMD – Pretensão da Fazenda para que o inventariante apresente requerimento administrativo junto ao Posto Fiscal, para aferir o tributo recolhido – Desnecessidade – Inteligência do artigo 1.034 do CPC. Precedentes jurisprudenciais – Sentença homologatória mantida. Recurso não provido.” (Apelação nº 0002579-21.2008.8.26.0266, 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. Miguel Brandi, j. 6 de novembro de 2013). No caso em testilha, em relação aos bens partilhados, observo que o regime instituído no matrimônio foi o da comunhão universal de bens. Por este regime, forma-se uma massa patrimonial única para o casal, considerada como um todo, atingindo créditos e débitos e comunicando os bens pretéritos e futuros. É uma fusão de acervos patrimoniais, constituindo uma massa que pertence a ambos, na mesma proporção, em condomínio, razão pela qual cada participante terá direito à meação sobre todos os bens componentes desta universalidade formada, independente de terem sido adquiridos antes ou depois das núpcias, a título oneroso ou gratuito. Desse modo, havendo universalidade de direitos em relação aos bens que compõem a união matrimonial, é necessário partilhar a totalidade do patrimônio. Na universalidade de direito, antes do inventário e partilha, não é possível a atribuição de bens específicos aos titulares daquela. Assim, entendo que o instituto da doação recai somente sobre a diferença na partilha no valor de R$ 9.718,00, transferido a maior para Sueli, não incidindo a cobrança do ITCMD, por expressa previsão legal, já citada. A jurisprudência é firme no sentido de que o fato gerador do ITCMD, no caso da doação, é a transferência da titularidade do domínio, que no caso de imóveis de valor superior a trinta salários mínimos se dá com o registro do título no Serviço competente. A isenção ou não do tributo deve ser analisada à luz da legislação atual. Por fim, houve uma equivocada interpretação do art. 289 da Lei de Registro Públicos, do art. 25 da Lei Estadual 10.705/2000, do art. 134, VI, do Código Tributário Nacional e do art. 30, XI, da Lei n. 8.935/94. O que todos esses dispositivos determinam é que o Oficial zele pelo recolhimento do tributo. Ou seja, ele n&atil
de;o deve praticar ato sem que o tributo seja recolhido, nas hipóteses em que for obrigatório o pagamento. Isso não quer dizer, no entanto, que caiba ao Oficial julgar qual a correta base de cálculo e emitir juízo de valor sobre a interpretação da legislação tributária e dos fatos apurados no processo judicial. Isso é atribuição que cabe à autoridade fiscal. A jurisprudência é firme no sentido de que o fato gerador do ITCMD no caso da doação é a transferência da titularidade do domínio, que no caso de imóveis de valor superior a trinta salários mínimos se dá com o registro do título no Serviço competente. A isenção ou não do tributo deve ser analisada à luz da legislação atual. Ante o exposto, julgo IMPROCEDENTE a dúvida suscitada pelo 14º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA CAPITAL em face de SUELI REGINA RIBEIRO BOCCATO. Não há custas, despesas processuais, nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento. Oportunamente, arquivem-se os autos. P.R.I.C. – ADV: BEATRIZ TIYOKO SHINOHARA TORTORELLI (OAB 53423/SP)

Fonte: DJE/SP | 22/08/2014.

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